Prensa Comando Carabobo/Miraflores
Hugo Chávez no encerramento de sua campanha presidencial em Caracas, outubro de 2012: massivo apoio popular
Qual é esta “primeira vida” a que se refere o título do livro sobre Hugo Chávez?
Sua “primeira vida” é a que se estende desde suas memórias mais antigas até assumir o poder pela primeira vez. Mais do que isso, o livro termina com ele como presidente da Venezuela, tomando posse do cargo em fevereiro de 1999. O acordo entre nós era sobre esta “primeira vida”; a “segunda” deveria ser a de Chávez governando, mas não há material para isso. Em todo caso, não sou eu quem vai fazer isso. E ainda assim, não será igual. Ele aceitou o projeto de trabalhar em conjunto, durante três anos, começando com três ou quatro encontros anuais que preparava muito seriamente, como ficou registrado nas fotografias publicadas no livro: ali se mostra como ele expunha seus documentos e papéis que falam sobre esse trabalho de introspecção. Por isso digo que é algo impossível de se repetir. Pode-se fazer uma “segunda vida” com base em testemunhos de terceiros, mas já não temos mais sua própria visão dos fatos.
No livro, você fala sobre os preconceitos de seus amigos na Europa e de certa esquerda regional contra este emergente que saía dos limites das definições clássicas. Você teve de superar seus próprios preconceitos?
Menos, porque conhecia a Venezuela. Estive ali antes e depois do Caracazo. E vi, desde o primeiro momento, que Chávez era o ídolo das favelas venezuelanas. Além disso, em meus próprios artigos da época, não qualifico o que Chávez fez como um golpe de Estado. Digo que é uma rebelião militar e entrevisto um analista político que diz que é um intervenção militar de tipo nasserista, de militares progressistas. Claro, o mal-entendido ocorria porque ele se sublevava contra um político socialista [Carlos Andrés Pérez Rodríguez], por isso muitas pessoas compararam a situação, de longe, sem estudar o caso, com o que havia ocorrido no Chile em 1973. Chávez teve de lutar durante muito tempo contra esta leitura. De fato, ele organizou a própria rebelião com os partidos que estavam à esquerda dos social-democratas.
O que foi a primeira coisa que o impactou em seu perfil?
A originalidade de sua formação. E isto independentemente da questão pessoal: era uma pessoa muito calorosa, estabelecia rapidamente uma conexão muito interessante com seus interlocutores… Mas fiquei curioso ao ver um militar com um pensamento tão sofisticado; na verdade, um intelectual, com traços de Antonio Gramsci e José Carlos Mariátegui, tendo lido em particular todos os grandes pensadores latino-americanos. Além disso, era uma pessoa de esquerda que não enchia a boca para falar de Karl Marx ou de Lênin. Era muito difícil de ser catalogado, e também muito original. Por outro lado, sendo um militar, era muito geopolítico. Não se podia falar de política sem que ele colocasse sobre a mesa um grande mapa. Não há muitos dirigentes políticos com essas aptidões.
Reprodução
Capa da edição argentina do livro de Ignacio Ramonet
LEGADO
Você afirma que Chávez aproveitou os ataques (tentativas de golpe de Estado, lockout) para ir radicalizando seu projeto. Era possível vislumbrar isso em suas primeiras conversas com ele?
Não. Era possível ver que se tratava de um homem progressista, mas “sui generis”. É preciso recordar que ele não pronunciou a palavra socialismo senão muito depois da tentativa de golpe de Estado de que foi vítima. Ele se via como um patriota progressista. Neste sentido, um de seus objetivos era colocar a Venezuela de pé, refundá-la. Por isso cita Charles de Gaulle: “O patriota é aquele que ama sua pátria; o nacionalista, aquele que detesta todas as demais”. Queria que a Venezuela tivesse consciência do que havia representado no momento das independências. Claro, via-se que era um homem de rupturas, indiscutivelmente. E que era um pensador original. E que ia fazer transformações importantes na distribuição da riqueza. Não se via com clareza a gestação do socialismo do século XXI, mas ele já estava em sua personalidade. O erro que cometeram aqueles que deram o golpe foi o de subestimar precisamente sua capacidade de avançar. De qualquer forma, ele não foi vingativo.
Em regimes com lideranças tão fortes, a ausência do líder deixa certa sensação de orfandade política. É o caso da Venezuela, para além do fato de que Nicolás Maduro seja o abençoado de Chávez e tenha ocupado um lugar importante nesse processo?
Claro que sim. Um líder como Chávez não desaparece silenciosamente. Além disso, poucos líderes morrem pouco após terem ganhado uma eleição, com mais de dez pontos sobre seu rival. Indiscutivelmente, todo o país fica subjugado. E isso não é possível substituir. Tenho grande consideração por Maduro. É um grande dirigente político e vai mostrar isso. Quando morreu Roosevelt, nos Estados Unidos, a mesma orfandade foi sentida. E era um líder diferente.
A situação do governo de Maduro parece crescentemente complicada, com alta inflação, desabastecimento…
É preciso que levemos em conta que Chávez havia conseguido superar todos os obstáculos que se colocaram em seu caminho durante 14 anos. Em certa medida, da mesma maneira como Fidel Castro. Então, fica claro, a desaparição de Chávez, para seus adversários, surge como uma nova oportunidade. Vão se jogar em cima de Maduro e seu governo. Além disso, como a diferença no resultado eleitoral foi muito pequena, pensou-se que seria mais fácil, diante da ausência do escudo protetor. Estamos presenciando uma espécie de batalha final.
Inclusive, você falou de um “golpe de Estado em câmera lenta”.
Sim, é verdade de algum modo. Isto é muito parecido com o que ocorreu antes do 11 de setembro de 1973 no Chile: cortes de eletricidade, de água, bloqueio de rodovias e desabastecimento… O que a imprensa dizia, na época? Pois é, algo parecido ao que diz hoje: que o governo está desgastado, que é incompetente, que não sabe governar. Mas o que eu digo é que não vai haver golpe de Estado. Por quê? Porque não há apoio militar, porque os recursos da PDVSA (Petróleos da Venezuela S.A.) hoje estão do lado do governo, porque não há apoio popular em massa… o que a oposição pretende é que não se possa governar com serenidade.
Sibci
Cena do Caracazo: rebelião popular em 27 de fevereiro de 1989 marca o início da chamada Revolução Bolivariana
AUSÊNCIA
Como se nota a ausência dessa voz portentosa, a de Chávez, na região?
Se você parar e observar, atualmente, vai se dar conta de que tudo o que diz respeito à integração sul-americana não sai do lugar. Onde estão as reuniões da Celac (Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos)? Onde estão as reuniões da Unasur (União de Nações Sul-Americanas)? Onde ficou o entusiasmo por uma América Latina mais integrada? De repente, há uma espécie de ausência de várias coisas.
Que avaliação você faz, na atualidade, do ciclo de governos progressistas? O Chile está a ponto de voltar a eleger Michelle Bachelet [eleita para um segundo mandato presidencial em dezembro de 2013], mas alguns já falam de certo rompimento e de uma possível mudança de rumos.
Não concordo. Em todos os países nos quais um governo foi eleito com esta perspectiva (popular, com um projeto de proteção do Estado de Bem-Estar, com uma política social de inclusão) não houve involução em nenhum deles. As únicas involuções foram as do Paraguai e de Honduras, por golpes de Estado de um novo tipo. E agora, o triunfo de Bachelet. Veremos o que acontece com as eleições em El Salvador e em Honduras, onde a Frente Farabundo Martí tem chances, assim como a esposa de Zelaya. Portanto, não vemos grandes alterações. A dinâmica em favor de todos os governos progressistas, com todos os seus matizes, não foi interrompida.
Você ficou surpreso com o descontentamento nas ruas de algumas cidades do Brasil contra o governo Dilma?
É normal que isso ocorra. Na América Latina, com esses governos, 40 milhões de pessoas saíram da pobreza. Isso quer dizer que chegaram à classe média. Quando elas não existem, o que se quer são as escolas, mas quando elas existem, o que se quer é melhor educação; quando não se têm hospitais públicos, protesta-se por eles; agora, quando eles existem, protesta-se por um sistema de saúde melhor. O estouro da juventude brasileira é perfeitamente legítimo. Quer dizer, deixaram um pouco de lado o quantitativo, que ainda é importante, porque persiste ainda na América Latina um grande volume de pobreza, em favor do qualitativo.
A novidade deste último ano foi a consolidação do assim chamado “eixo do Pacífico”, com a Colômbia, o Peru e o Chile estabelecendo um vínculo mais direto com os Estados Unidos. O que significa isso para a região?
Com certeza, surgiu a Aliança do Pacífico, juntamente com o México. É uma novidade. No entanto, na essência, isso não muda muito. De uma ou outra forma, este esquema sempre foi uma opção. Mas observemos o México. Ali se produziu uma mudança: a volta do PRI (Partido Revolucionário Institucional). E o PRI não é o PAN (Partido da Nção Nacional). E Enrique Peña Neto demonstrou que tem projetos diferentes dos de Felipe Calderón, com uma maior capacidade de escutar as demandas sociais. Timidamente, mas existe. Ollanta Humana é um personagem mais complexo do que parece. Tudo o que pode ser pensado sobre eles não impede que esses quatro países permaneçam na CELAC e que três deles pertençam à Unasur.
Como a situação política argentina se inscreve neste contexto?
Continuo observando que fora do peronismo não há alternativas. Ainda restam dois anos de mandato, e o jogo não está definido. Por conseguinte, não vejo por que a Argentina seria uma exceção para aquilo de que já falamos.
Tradução Henrique Mendes
* Texto publicado originalmente na revista Debate, publicação argentina impressa e eletrônica com foco em política, economia e cultura.
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