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Cena de “Brasil S/A” (2014), longa-metragem de Marcelo Pedroso
É possível que, em breve, a sala de troféus demande novas prateleiras. A soma de prêmios conquistados pelo cinema feito em Pernambuco nos últimos cinco anos já deixou de ser manifestação de casos isolados para se tornar um fenômeno que desperta o interesse tanto da crítica quanto de realizadores de cinema em todo o Brasil. Somente neste ano, produções do estado levaram os maiores prêmios em alguns dos mais importantes festivais de cinema do país: “Sangue azul”, de Lírio Ferreira, ganhou o Festival do Rio de Janeiro; “A história da eternidade”, de Camilo Cavalcante, levou o Festival de Paulínia; e, no Festival de Brasília, as produções pernambucanas somaram nada menos que 15 prêmios, entre os quais os de melhor curta-metragem (“Sem coração”, de Nara Normande e Tião) e melhor direção (Marcelo Pedroso, por “Brasil S/A”).
Esses resultados consolidam uma tendência estabelecida ao longo dos anos no circuito dos festivais de cinema e nos debates da crítica. Filmes pernambucanos como “O som ao redor”, em 2012, e “Tatuagem”, em 2013, praticamente monopolizaram as mais importantes premiações brasileiras. Já a edição de 2012 do Festival de Brasília concedeu 11 dos 12 prêmios previstos para longas de ficção a três filmes feitos em Pernambuco: “Era uma vez eu, Verônica”, de Marcelo Gomes; “Eles voltam”, de Marcelo Lordello; e “Boa sorte, meu amor”, de Daniel Aragão.
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Foi a partir desse momento que duas perguntas começaram a pautar vários debates: o que é que o cinema pernambucano tem? E o que ele tem a dizer e como consegue articular, em filmes completamente distintos, questões universais tão prementes?
À primeira questão, em resposta curta, sem muito contexto, se diria: um fundo de incentivo próprio cedido anualmente pelo governo estadual, sem semelhante no resto do país em volume de recursos e modelo de gestão. Mas as razões que levaram esse fundo a existir e a edição, neste ano, da Lei 15.307, que disciplina a promoção, o fomento e o incentivo ao audiovisual em Pernambuco, apontam para um cenário bem mais complexo, que revela muito sobre a relação histórica entre o estado e o cinema, bem como sobre o tipo de cinema – em suas questões e linguagens – que está sendo feito no Recife e em regiões próximas à capital pernambucana.
Levando-se em conta o período mais recente de produção, partindo da chamada pós-retomada, no começo dos anos 2000, é notável um substancial aumento não apenas de curtas e longas produzidos como de tentativas cada vez mais claras de se fazer um cinema que reflita a visão de mundo de seus autores. Surgiram nessa época os primeiros e provocativos longas de Cláudio Assis e filmes mais serenos, como “Cinema, aspirinas e urubus”, de Marcelo Gomes. Ambos fazem parte de uma primeira geração de cineastas pernambucanos ainda (bastante) atuantes. A eles juntaram-se nomes como Lírio Ferreira, Paulo Caldas e Hilton Lacerda.
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Cena de “Era uma vez eu, Verônica” (2012), longa-metragem de Marcelo Gomes
Com recursos quase inexistentes, numa época em que não havia a facilidade e o barateamento do cinema digital e que, até para montar um filme, era preciso se deslocar para o Rio ou para São Paulo, essas pessoas, vindas de um cineclubismo atuante no Recife dos anos 1980, sedimentaram o terreno para que novas gerações se estimulassem a contar suas próprias histórias. Ou, em verbo bastante comum aos pernambucanos, foram eles que “instigaram” os demais.
A cinefilia pernambucana, muito associada, desde os anos 1990, ao Cinema da Fundação, sala que tinha e ainda tem curadoria do então apenas jornalista Kleber Mendonça Filho, viu na década de 2000, com a chegada dos primeiros equipamentos digitais, a possibilidade de retomar aquele espírito “faça você mesmo”, vivido no prolífico Ciclo do Super-8, nos anos 1970, quando uma classe média recifense de esquerda decidiu subverter linguagens com as acessíveis e populares câmeras de bitola super-8. Entraram em cena jovens, quase todos estudantes de jornalismo, que começaram a produzir seus primeiros curtas com um incentivo ainda bem modesto do governo estadual. Em 2007, esse grupo de realizadores conquistou o primeiro edital exclusivo para o audiovisual – na época, foram disponibilizados 2,1 milhões de reais para os produtores.
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De lá para cá, o governo estadual criou um fundo dedicado exclusivamente ao audiovisual – cujo valor do edital, no próximo ano, passará de 20 milhões de reais graças a um aporte da Agência Nacional de Cinema (Ancine) – e estruturaram-se no estado cerca de 50 produtoras de audiovisual, dois estúdios de mixagem, a sede do Centro Audiovisual Norte Nordeste (Canne), mais de uma dúzia de festivais de cinema, um ainda jovem bacharelado em cinema na Universidade Federal de Pernambuco e, para abrir nos próximos meses, mais duas salas, além do tradicional Cinema da Fundação, com curadoria para filmes fora do circuito comercial.
Mendonça Filho, hoje mais conhecido como o diretor de “O som ao redor”, filme de importância consensual entre a crítica dentro e fora do país, diz que “não há outra situação como essa no Brasil”. “São Paulo tem um cenário importante, mas muito diluído, com várias gerações que não se comunicam. O Rio tem uma situação peculiar porque é a central brasileira de cinema, hoje completamente focada no mercado. O cinema autoral está esmagado lá.”
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É preciso haver “certo distanciamento histórico para ter a dimensão do que se passa em Pernambuco”, diz Maeve Jinkings, atriz que trabalhou em São Paulo até conhecer o Recife, há cinco anos. Ela foi protagonista de vários dos filmes ali realizados, entre os quais “Amor, plástico e barulho”, que estreia em janeiro próximo. Em 2009, quando passou um tempo na capital pernambucana, entre as pessoas que conheceu “havia uma constante discussão sobre cinema, uma fome audiovisual”. “Voltei para São Paulo dizendo a meus amigos que algo muito especial acontecia ali, e alguns acharam que eu estava exagerando.”
Recentemente premiada em Cannes com “Sem coração”, Nara Normande afirma que é possível viver apenas do audiovisual no Recife. Entre oficinas de cinema, roteiros, filmagens e a coordenação do festival de animação Animage, ela reconhece que Pernambuco vive uma situação privilegiada. “Várias pessoas querem se mudar para cá.”
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Muito se discute se as numerosas premiações obtidas nos festivais revelam a existência de um cinema “pernambucano”, mais que “made in Pernambuco”. Entre os realizadores, uma resposta parece ser uníssona: não, porém talvez. Leia-se: todos estão de acordo que, em comum, há somente a liberdade para que os realizadores exprimam seus respectivos desejos e leituras de cinema. “Ninguém está forjando um olhar”, afirma Lacerda.
Mas ele, assim como outros de seus pares, consegue identificar outros aspectos que terminam, ainda que não intencionalmente, criando laços entre as recentes produções. “Quando a gente fez “Amarelo manga”, lembro que, conversando com Kleber [Mendonça Filho], ele falou que nunca tinha imaginado o Recife em cinemascope. Acho que, de certa forma, esse espelho terminou sendo umas das coisas mais importantes desse cinema que é feito em Pernambuco, no sentido de que as pessoas passaram a se reconhecer nele.”
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Cena de “Loja de répteis” (2014), curta-metragem de Pedro Severien
Pedro Severien, herdeiro também das conquistas e conflitos colocados pela geração de Lacerda, diz que, além dessa vivência compartilhada, a recente produção pernambucana é marcada por um lugar de fala bem posicionado de visão do autor. “O chamado ‘Cinema da Retomada’ tinha muito essa coisa de tentar falar do outro, mas sem revelar muito de onde se falava, e tentava esconder essa primeira pessoa. Acho que o que a gente passou a fazer é falar abertamente em primeira pessoa.” O mais recente curta de Severien, “Loja de répteis”, levou três prêmios no Festival de Brasília.
Alexandre Figueirôa, pesquisador de cinema e autor do livro “Cinema pernambucano: uma história em ciclos” (editora FCCR, 2000), esclarece que, ao contrário do que ocorreu em momentos anteriores, tal como no Ciclo do Recife nos anos 1920 e no Ciclo do Super-8, não se pode colocar a atual produção no escopo de um novo ciclo. “O que estamos observando hoje é uma produção contínua e diversificada tanto de curtas quanto longas-metragens, de ficção e documentários, diante do novo contexto da produção audiovisual no Brasil, que não sugere uma interrupção brusca como aconteceu com os ciclos anteriores.”
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Ainda assim, naquilo que concerne ao olhar desses realizadores em atividade, há pontos de interseção. “Mesmo dentro desse novo quadro iniciado com 'Baile perfumado', em 1997, delineiam-se agrupamentos geracionais que poderão, no futuro, sugerir uma nova sistematização de períodos”, diz Figueirôa. “Por exemplo, há o grupo pioneiro da retomada, formado por Paulo Caldas, Lírio Ferreira, Cláudio Assis, Adelina Pontual, Marcelo Gomes, entre outros, cujos trabalhos iniciais apresentam traços em comum em termos de linguagem, aproximação com o manguebeat e releitura das representações do Nordeste. Mas há uma nova geração, formada por Mendonça Filho, Daniel Aragão, Camilo Cavalcante, Marcelo Pedroso, Gabriel Mascaro, entre outros, que fazem um novo agrupamento, com filmes mais urbanos, que têm a classe média como centro de atenção e que estão mais ligados a novas tendências do cinema de baixo orçamento feito no Brasil. Todos os filmes dos dois grupos, no entanto, trazem coisas em comum, como um cinema de forte marca autoral, um olhar sociopolítico sobre as questões tratadas.”
A crítica debate o lugar que esse cinema assume ao se enquadrar, ou não, dentro do rótulo de “pernambucano”. Heitor Augusto, que recentemente chegou a ministrar em São Paulo um curso para falar exclusivamente da produção de Pernambuco, diz que há “muitas diferenças entre os filmes e os projetos de cinema de cada realizador”. Ele diz sentir, em relação ao cinema feito em Pernambuco, uma espécie de predisposição positiva, como a que emana de uma marca de sucesso. “Por um lado, existe, sim, um conjunto de curtas e longas que justificam uma atenção e um interesse pela produção de Pernambuco. Como ignorar um lugar que produz curtas tão distintos quanto 'Muro', 'Recife frio' e 'Mens sana in corpore sano'? Por outro lado, esse interesse jamais pode se transformar em instância legitimadora por si só, independentemente do filme, ‘porque veio de Pernambuco’”.
As questões que se desdobram dessa produção reconhecidamente pulsante em Pernambuco são, em todas as frentes, importantes para a vitalidade do próprio cinema brasileiro. Ações recentes em outros estados, como a criação, neste ano, da SP Cine, agência de cinema de São Paulo, e o surgimento do movimento Rio: Mais Cinema, Menos Cenário, organizado por realizadores independentes do Rio de Janeiro, são publicamente influenciadas, entre outras frentes, pela experiência pernambucana.
“O cinema pernambucano talvez seja hoje a maior bandeira de um investimento cultural no setor”, sintetiza Mendonça Filho. “São vários os acertos. 'O som ao redor' é um desses filmes bem-sucedidos. O cara do mercado vai rir de mim e dizer: ‘Ah, mas você só fez 100 mil espectadores’. Acontece que esses 100 mil e o que foi feito em torno do filme valem mais que um filme que fez 2 milhões de espectadores, só existiu durante dois meses e do qual ninguém se lembra ou discute mais.”
Matéria original publicada na Retrato do Brasil, revista que se dedica a questões brasileiras e internacionais.