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Estande na feira dos makers de Shenzhen em abril deste ano
No livro “Makers”, publicado nos Estados Unidos em 2012, o jornalista Chris Anderson descreve uma possível nova revolução industrial desencadeada pela invenção da impressora 3D. Esta, segundo ele, será a maneira através da qual quem tem novos produtos em mente poderá produzi-los e distribuí-los, transformando profundamente a produção industrial. Trata-se de aproveitar as principais tendências surgidas e disseminadas na internet: sistemas de produção colaborativa, código aberto e financiamento coletivo. Anderson prevê um movimento inevitável de “artesãos digitais” que suplantará a produção de massa. Assim deverá ser também na China, onde em abril deste ano foi realizada a terceira feira dos makers (“fazedores”, em inglês), em Shenzhen, uma das maiores e mais importantes cidades do país.
“Shenzhen é a Hollywood dos makers. Aqui pode-se encontrar qualquer componente eletrônico a um preço irrisório.” Assim Momi Han nos apresenta o mundo de Seeeds, um galpão industrial na periferia da cidade transformado em um espaço que hospeda cerca de cinquenta unidades de trabalho. A desordem reina, e quem trabalha parece nem notar a presença de visitantes. A Seeed, empresa surgida em 2008, é hoje uma das maiores fábricas de equipamentos eletrônicos de código livre do mundo. Se um maker lhes pede que construam um circuito, eles ficam com a cópia do projeto, que por sua vez poderá ser usado por outra pessoa no futuro, sem nenhum custo. Eles se definem “os makers dos makers”.
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O movimento maker está crescendo rapidamente também na China, e a história da empresa o comprova. A Seeed surgiu na casa de um dos fundadores e no início contava somente com três funcionários. Hoje, seis anos depois, são 150 pessoas empregadas, que se preparam para uma nova mudança, já que o espaço do galpão onde se encontram hoje não é mais suficiente para abrigar a empresa. “Seeed”, corruptela de “seed”, “semente”, em inglês, tem um “e” extra: o da “eletrônica”.
Momi nos guia pelos laboratórios e nos explica as linhas de produção. Cada funcionário consegue personalizar, segundo os pedidos de cada cliente, até trinta modelos de equipamentos eletrônicos por dia. A plataforma utilizada é, naturalmente, a placa Arduino, que tem código aberto e é dotada de um microcontrolador que permite criar rapidamente diversos protótipos.
“Para os makers chineses, brincar com equipamentos eletrônicos de código aberto não é um passatempo. O impulso inicial e os objetivos finais são quase sempre comerciais”, explica Eric Pan, criador e proprietário da empresa, que diz que o objetivo da Seeeds é tornar mais veloz o processo que transforma o projeto de um maker em um protótipo, um produto que possa ser colocado no mercado. E especifica: “Shenzhen é o lugar perfeito para desafiar a sorte.” A metrópole tem hoje uma incrível capacidade industrial. Aqui é possível produzir desde o menor componente eletrônico até o produto final.
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Placa Arduino (à esquerda), a preferida dos makers
“Desde o último iPhone até sua imitação barata, tudo é produzido aqui”, comenta Pan. É bom ressaltar que para dizer “imitação barata”, Pan usa o termo shanzhai, uma das dez palavras escolhidas pelo escritor Yu Hua para descrever a China moderna. Shanzhai é uma palavra originada na tradição chinesa clássica para indicar uma fortaleza escondida entre as montanhas, e depois passou a designar lugares onde as leis não existem: “Nos últimos anos, desde que entraram na moda estes celulares bem mais baratos do que os modelos originais, porém dotados das mesmas funções, o termo shanzhai transformou totalmente o sentido da palavra ‘imitação’”, escreve Yu Hua. “Pode-se dizer que shanzhai é a palavra mais anárquica do chinês moderno”.
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Os shanzhai dos produtos eletrônicos são basicamente cópias mais baratas do que poderiam ser definidos como bens de luxo (como o último modelo do iPhone, por exemplo). São utilizados materiais de pior qualidade e, geralmente, softwares instáveis. Mas no processo de desconstrução do aparelho original para depois reconstruí-lo, frequentemente adicionam-se pequenos detalhes que aumentam o valor final do produto. Como o GooPhone I5, que permite extrair e trocar a bateria, algo que o iPhone 5, o modelo original, não permite. Outra inovação originada nos celulares shanzhai é a possibilidade de usar mais de um chip SIM no mesmo aparelho. Assim, além do preço, os celulares shanzhai podem ser escolhidos também por funções específicas. Três quartos dos smartphones disponíveis no mercado chinês operam com o sistema Android, do Google, que pode ser personalizado para qualquer tipo de exigência.
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Criança brinca com robô desenvolvido por makers na feira de Shenzhen, em abril deste ano
Quando se fala em shanzhai, a intenção é designar uma cópia mais barata. Mas, como comenta Eric Pan, “não tem porque dar um sentido negativo ao termo. O único modo que temos de aprender é copiando. Era assim também na antiguidade; antes que uma pessoa desenvolvesse um estilo próprio de caligrafia, ela passava anos copiando exemplos de caligrafia do passado”. De fato, na China, escrever, pintar ou compor poesias no estilo dos mestres dos séculos passados fazia parte do currículo de qualquer aspirante a funcionário do Império. É uma modalidade de aprendizagem talvez diferente daquela a que estamos acostumados no Ocidente, mas os resultados não são desprezíveis. Quatro invenções fundamentais para a humanidade nasceram na China: o papel, a impressão a tipos, a pólvora e a bússola.
O mundo do shanzhai segue uma série de regras simples: não criar do zero, mas construir com base em produtos melhores em circulação; inovar o processo de produção em função da velocidade e da economia; compartilhar o máximo de informações possíveis para facilitar que outras pessoas adicionem valor ao processo; não construir se ainda não existe um comprador; e agir com responsabilidade para com a cadeia de fornecedores. São regras que favorecem a produção horizontal e não reconhecem o valor de mercado da propriedade intelectual.
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É uma contracultura que justifica o “roubar do rico para dar aos pobres”, e poderia ser resumida com as palavras de ordem da contracultura hacker: “hack, make, deconstruct, reconstruct” – hackear, produzir, desconstruir, reconstruir. O ponto é que quanto mais baixo é o salário dos operários, mais provável é que as informações sobre os protótipos escapem das fábricas. E na pátria da eletrônica mundial, com as informações certas, produzir um shanzhai é brincadeira de criança.
Assim, com o tempo, foram-se formando pequenas empresas especializadas em shanzhai. O mercado a que se direcionam é menor do que aquele das grandes marcas de eletrônicos, mas a margem de lucro de cada produto é de quase 50%, e o sucesso tem sido considerável. Desde a primeira década dos anos 2000, os vários Hi-Phone, Nokla e Motololah invadiram as cidades chinesas. Estima-se que somente em 2008 foram produzidos na China cerca de 80 milhões de celulares shanzhai, o que equivale a 20% do mercado doméstico.
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Estes modelos conquistaram também a Índia, a Rússia e o Brasil, e alguns estudos demonstraram que grande parte dos dispositivos móveis utilizados durante a Primavera Árabe foi importada de Shenzhen. Quando em 2012 o mercado de tablet explodiu, os shanzhai do aparelho já eram produzidos em formatos menores que conquistaram o mercado chinês muito antes que o mini iPad começasse a ser produzido.
Eis que o shanzhai, portanto, passa a ter valor de inovação. E na passagem da China de fábrica do mundo a sociedade de serviços, a inovação tornou-se uma necessidade política e social. Trata-se da “zizhu chuangxin”, a inovação autodeterminada, slogan utilizado pelo governo que tem como objetivo transformar a China em um país “cientificamente avançado” até 2020. Hoje, como repetem os dirigentes chineses, é necessário passar do “made in China” para o “created in China”, e os eletrônicos shanzhai estão na metade desse caminho.
Tradução: Carolina de Assis
Matéria original publicada no China Files, site italiano que produz reportagens e artigos sobre China e Ásia.