Um detento palestino caminha pelo corredor numa prisão israelense. Ele para na porta de cada cela para entregar as refeições, mas não é só a comida que carrega. Tem também um pedaço de papel enviado por um líder palestino de dentro da cadeia com os números de todas as celas afiliadas ao Fatah, onde o papel deve ser entregue. A folha lista os nomes dos prisioneiros e os cargos para os quais foram eleitos dentro da facção do Fatah na cadeia.
Aos olhos de um guarda, o mensageiro está distribuindo as refeições de acordo com o horário da prisão. Mas, na verdade, os prisioneiros estão na reta final de uma eleição. Esta rotina é comum nas prisões israelenses, onde o encarceramento de palestinos que supostamente representam uma ameaça à segurança acaba colocando indivíduos educados e politicamente motivados juntos.
Lisa Nessan / Flickr
Protesto em Hebron, na Cisjordânia, no Dia Internacional de Solidariedade a Presos Políticos Palestinos, em 2005
Estes presos criaram um sistema educacional via tutoria, bem organizado e rigorosamente cumprido. Para muitos deles, esta auto-organização é um momento crucial em um ambiente onde alguns estão encarcerados sem acusação ou sem acesso a advogados e familiares.
Aos 18 anos, Sa’ad Joudeh estava para começar o bacharelado em artes na Universidade An-Najah quando forças israelenses prenderam-no na casa de seus pais, em Nablus, no norte da Cisjordânia. Ele foi acusado de envolvimento em atividades de ameaça à segurança de Israel e passou os oito anos e meio seguintes na prisão.
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Hoje, Joudeh tem pouco mais de 30 anos e é presidente do Fatah, partido político palestino, na Universidade An-Najah. Alto e articulado, Joudeh não hesita em dizer que, para ele, educação tornou-se um trabalho político.”Eu li 300 livros na prisão sobre questões políticas e sobre a Palestina. Ainda me lembro de todos os meus amigos que estavam comigo na prisão e, agora, eles são como irmãos.”
Se ele pudesse voltar no tempo e escolher a direção de sua vida, Joudeh diz que ainda iria para a prisão.”Os israelenses tentam tornar as prisões um lugar ruim para os palestinos”, diz Joudeh. “Mas nós a transformamos em escola e universidade para educar os prisioneiros.”
Joudeh não é uma exceção. Muitos palestinos sem instrução saem da cadeia com um alto nível de educação, ligações políticas profundas e um senso de apoio entre os seus companheiros, sentindo-se preparados para o combate contra a ocupação e pela libertação.
Por volta de 40% do total de homens palestinos adultos na Cisjordânia já passaram por alguma prisão israelense, de acordo com a Addameer, associação de diretos humanos e de apoio aos presos palestinos sediada em Ramallah.
Abd Ala’al Al’anani, diretor do braço de Ramallah da Sociedade dos Prisioneiros Palestinos, estima que cerca de sete mil palestinos estão presos atualmente nas prisões israelenses. Destes, por volta de 450 estão encarcerados sem acusação ou julgamento, sob uma prática conhecida como detenção administrativa. Estes números estão em constante mudança devido às prisões e solturas frequentes.
De acordo com o tenente-coronel Morris Hirsch das Forças de Defesa de Israel, palestinos só podem ser presos se são suspeitos de cometerem um crime, incluindo o que Hirsch chama de “infrações criminais relacionadas à segurança”. Este é um rótulo genérico para uma ampla gama de crimes, como o uso de explosivos, a posse ilegal de armas, fazer e arremessar coquetéis molotov e jogar pedras. No entanto, de acordo com Hirsch, a característica de uma infração de segurança é sua “motivação nacionalista”, determinada quando um suspeito reconhece durante o interrogatório que seu objetivo era combater a ocupação.
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Na prática, designar ações feitas com motivação nacionalista como infrações contra a segurança permite às autoridades israelenses caracterizar setores inteiros da população palestina como passíveis de prisão.
Esta tática tem se tornado “a forma principal de sujeição e controle dos palestinos que vivem no território palestino ocupado” desde 1967, de acordo com Ayed Abu Eqtaish da DCI (Defense for Children International), organização não-governamental de proteção das crianças.
Segundo Abeer Baker, advogado de uma organização jurídica pelos direitos dos árabes em Israel (The Legal Center for Arab Minority Rights in Israel), os presos palestinos encaram sentenças desproporcionalmente longas, métodos de interrogatório pesados e condições de vida mais severas do que outros tipos de presos.
Joudeh acredita que este tratamento cruel tem como objetivo destruir o prisioneiro e suprimir sua atividade política. Ele conta que, na tentativa de contrabalancear isto, muitos presos se dedicam à educação e à organização política.
Palestine Solidarity Project / Flickr
Homem palestino é detido pelas Forças de Defesa de Israel em protesto contra a ocupação israelense, em 2010
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Conversamos com quatro ex-prisioneiros sobre suas experiências na prisão, durante períodos que variam entre sete e 15 anos. Eles se mantiveram anônimos por questões de segurança.
Segundo eles, o sistema educacional surge de uma rede articulada e implementada pelos próprios presos. As celas são organizadas por facções políticas, predominantemente o Fatah, o Hamas e a Frente Popular para a Libertação da Palestina. O novo prisioneiro, ao entrar na prisão, é questionado sobre sua afiliação política e levado à cela apropriada.
Cada grupo político é responsável pela organização e educação de seus presos afiliados. Em cada cela, os líderes garantem que os presos mantenham-se numa rotina feita para elevar ao máximo a quantidade de atividades de cada dia. “Acordamos às seis e vamos para o tiyul [refeição]. Eles [guardas israelenses] nos permitem sair por uma hora. Fazemos esportes neste período. Depois disso, retornamos para as celas e começamos a estudar. Se alguém não entendeu algo, pode levantar a mão e fazer uma pergunta sobre o que está lendo. Todos os prisioneiros se ajudam mutuamente”, conta um dos ex-prisioneiros.
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Um dia típico inclui diversas horas dedicadas aos estudos e é concluído com uma lição noturna sobre um assunto determinado pelo líder da cela, geralmente relacionado à cultura palestina e à resistência política.
Entre os temas estudados há aulas de História com foco na Palestina e seus movimentos políticos, nas relações entre Israel e Palestina e no sionismo, e também aulas de inglês, árabe e hebraico. Os prisioneiros se tornam bem versados nas ideologias políticas de sua respectiva afiliação.
Os ex-prisioneiros relatam que em alguns períodos politicamente tensos parte do material de leitura e escrita é banido das celas. Nestas ocasiões, os prisioneiros memorizavam os livros e compartilhavam a informação oralmente, ou os contrabandeavam com capas de outros livros.
Para terem acesso a materiais de leitura e escrita, os presos planejavam e realizavam greves de fome. Eles contaram que estas greves lhes davam, às vezes, acesso a diferentes itens, como utensílios vários, bolas para esporte e materiais educativos. Alguns presos equiparam a prisão a uma rica biblioteca, cheia de livros trazidos por familiares ou doados pela Cruz Vermelha.
Eles também descrevem punições que receberam devido às atividades educacionais e políticas dentro das celas. Medidas punitivas variam desde a reorganização da composição das celas, a transferência de líderes detectados para outras celas, o confisco de materiais de escrita e leitura, além de tortura e isolamento. A Addameer, organização pelos direitos dos presos, tem documentado casos de tortura nas prisões israelenses.
Mas estas medidas não impediram os presos de se organizarem. “A estratégia deles é nos destruir”, disse um dos ex-prisioneiros. “Eu fiz de tudo para continuar aprendendo e não deixá-los me destruir.”
Bill Fletcher Jr., do Instituto de Estudos Políticos (Institute for Policy Studies), tem trabalhado para obter apoio para os palestinos entre a população negra dos Estados Unidos. Ele aponta as semelhanças entre as atividades dos prisioneiros negros durante o movimento por direitos civis nos EUA e as dos presos palestinos de hoje em dia.
“Há pessoas que foram presas por crimes políticos, independentemente das acusações que foram feitas contra eles”, ele disse. “E eles começaram a se organizar dentro das prisões.”
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Para Fletcher, a principal diferença entre as duas situações é o que acontece depois que um preso é solto. Para muitos prisioneiros norte-americanos do movimento por direitos civis, as longas sentenças diminuíram seus laços com o mundo externo e, eventualmente, os desengajaram da política. Fletcher observou que ocorre o oposto entre muitos prisioneiros palestinos.
Al’anani, da Sociedade dos Prisioneiros Palestinos, concorda. Para ele, a maioria dos palestinos que se encontram hoje em posições de poder político passaram longos períodos em prisões israelenses ou encararam repetidas detenções.
“A experiência ensina e nos coloca em uma posição na sociedade onde somos respeitados por termos sido combatentes da liberdade dentro da cadeia”, afirmou. “Quando os presos são soltos, eles são facilmente integrados na sociedade e são bem-sucedidos em diversas áreas. Alguns trabalham no governo, outros em empregos civis, outros em ONGs. Alguns são embaixadores no exterior.”
A afirmação de Al’anani é coerente com a observação de Joudeh de que, para os presos palestinos, educação é política. Independentemente da idade do prisioneiro ou de seu nível de instrução, a experiência dentro da prisão provavelmente o levará a continuar lutando contra a ocupação depois de solto, desta vez com mais conhecimento e unidade política.
Tradução: Jessica Grant
Matéria original publicada na revista norte-americana YES! Magazine.