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Folhas de coca: planta teria vantagens naturais para enfrentar mudanças climáticas
A planta da coca é matéria-prima para o lucrativo e violento tráfico de cocaína e há décadas é alvo de inúmeras tentativas internacionais de erradicação. Também contribuiu para as mudanças climáticas quando os produtores de coca – conhecidos em espanhol como cocaleros – derrubaram florestas em Colômbia, Peru e Bolívia para plantar mais arbustos.
Enquanto cientistas alardeiam os riscos que as mudanças climáticas representam para produtos tropicais como o chocolate e o café, pouco se tem explorado o que uma era de temperaturas crescentes pode significar para a coca. A maior parte das pesquisas das últimas décadas se concentrou em encontrar formas de destruí-la.
“Há o começo de um debate mais aberto sobre a política de drogas no Ocidente e na América Latina, mas a questão do cultivo da coca continua espinhosa”, diz John Walsh, analista em políticas de drogas do Washington Office on Latin America, um think-tank [centro de estudos] focado na América Latina e sediado nos Estados Unidos. “Isso ocorre pelo fato de a coca ser a matéria-prima da cocaína, substância que, se não for o inimigo público número um, está no topo desta lista para a maioria das pessoas.”
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O cinturão da coca deve ficar mais quente e mais seco no próximo século. As temperaturas médias na região onde a planta é cultivada podem subir até 4 graus Celsius em 2100, de acordo com dados divulgados em março pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU. As áreas mais próximas da linha do Equador terão mais chuvas, enquanto aquelas mais para o Norte e para o Sul, menos. O IPCC também observou que as geleiras tropicais da Cordilheira dos Andes estão recuando e as plantas da região estão ‘subindo a montanha’ em busca das temperaturas mais frias das altitudes mais elevadas.
Porém, de acordo com diversos cientistas, o arbusto de coca é uma planta resistente e provavelmente se adaptará às mudanças esperadas. “A coca é peculiar porque contém uma película de cera bem pesada, como uma camada sobre as folhas”, afirmou Charles Helling, químico especializado em solos que já trabalhou no Departamento de Agricultura do governo dos Estados Unidos e participou dos esforços antidrogas norte-americanos. “Então isso a protege da perda de água. É, na verdade, uma variedade bem mais resistente do que as plantas comuns.”
Consultamos representantes do órgão para o controle de drogas do governo norte-americano (DEA), do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) e da Comissão Interamericana para o Controle do Abuso de Drogas, um braço da Organização dos Estados Americanos (OEA), e nenhuma dessas agências examinou os potenciais efeitos das mudanças climáticas sobre a planta de coca. Preeta Bannerjee, porta-voz do UNODC, afirmou que a agência usa satélites para monitorar as áreas de plantio de coca, “mas não medimos os impactos no meio-ambiente”.
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Estações secas já têm durado mais tempo em lugares como o Peru subtropical, afirmou Kenneth Young, geógrafo da Universidade do Texas que estuda o país há mais de 20 anos. Mas ele afirma que a planta de coca já se adaptou a quantias pequenas como 500 mm de chuva por ano – a mesma quantidade de chuva anual nas planícies semiáridas dos Estados Unidos. A maior parte da coca cresce em regiões que hoje recebem entre três e quatro vezes essa quantidade de água. “É uma planta da floresta tropical úmida, e torná-la um pouco mais seca não irá mudá-la drasticamente”, afirmou.
Helling também disse que o aquecimento global não somente afetará pouco a planta, como deve abrir mais espaço para a sua produção nas altitudes mais elevadas. Ele acredita que os produtores se adaptarão a menos chuva usando mais irrigação. “Eu já vi instalações agronômicas de coca incríveis, especialmente na Colômbia”, disse Helling, que trabalhou para o departamento antidrogas do país por três anos após se aposentar do USDA em 2007.
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O chá de coca é bebida tradicional nos Andes; a infusão ajuda a enfrentar a altitude
Uma das fazendas de coca que Helling estudou na Colômbia era um antigo campo de pasto, “o tipo de lugar mais apropriado para cactos. Mas, com irrigação, era possível produzir coca perfeitamente”. E, se temperaturas elevadas levam a um risco maior de doenças ou pragas, “os produtores certamente usarão mais produtos químicos para evitá-las”, disse.
Algumas das populações indígenas da América do Sul ainda usam a coca para fins medicinais, especialmente na Bolívia, liderada pelo ex-cocalero Evo Morales. A folha da coca é mastigada ou usada como infusão para chá, geralmente oferecido aos visitantes que sofrem com dores de cabeça devido à altitude.
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Sob o governo de Morales, a Bolívia permitiu o cultivo limitado e legal da coca enquanto luta contra a produção ilícita. Em junho, o UNODC divulgou que a produção boliviana de coca diminuiu 9% em 2013 e 26% nos últimos três anos.
Mas, apesar dos usos tradicionais persistirem, o UNODC afirma que a maior parte da produção de coca da América do Sul acaba como cocaína na Europa e na América do Norte, onde há décadas tem sido um dos estimulantes favoritos dos ricos e flagelo dos pobres nas cidades.
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Marshall Rancifer é um ex-viciado em crack que virou conselheiro antidrogas e diretor de conscientização na organização sem fins lucrativos Someone Cares, sediada em Atlanta, nos EUA. Ele acredita que as mudanças climáticas não trarão grandes mudanças no abastecimento de drogas de Atlanta. Mas, se o fizerem, ele alerta que as épocas passadas com drogas em falta não foram nada agradáveis.
“Isso já aconteceu, quando remessas grandes foram interceptadas ou o abastecimento diminuía por algum motivo”, lembra Rancifer. “A demanda é sempre alta, então começam a diminuir a quantidade de droga”: diluindo o produto com qualquer substância, desde bicarbonato de sódio até laxante para bebês. A tentação em aumentar a potência da droga alterada é grande, ele conta.
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Gravura de 1867 mostra mulheres colhendo folhas de coca na Bolívia
“Às vezes os vendedores ficam criativos e colocam outras coisas na droga, para que você tenha a sensação de que não está perdendo nada quando estiver alucinado”, disse. “Assim começam a ocorrer muitas mortes por overdose.”
“Há também um aumento na violência, porque as pessoas não ficam tão alucinadas quanto esperam”, conta Rancifer. Os viciados ficam com raiva dos vendedores, que entram no terreno dos rivais e “então começa a disputa pelos territórios do tráfico. Não há nada de positivo na falta de drogas para as pessoas que usam e vendem”, diz.
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O dinheiro envolvido no negócio provavelmente manterá os cocaleros no mercado, mesmo se forem necessários mais esforços para manter o cultivo. Se há pessoas interessadas em comprar cocaína, alguém vai cultivar a coca, disse Walsh, analista em política de drogas.
“A demanda global é o condutor do processo, e esta é uma indústria realmente globalizada a nível transnacional”, disse. Os Estados Unidos e outros países já tentaram pulverizar herbicidas nos campos de coca, encorajando os camponeses andinos a cultivar outros produtos, mas o plantio de coca “dá mais retorno do que o cultivo de bananas, por exemplo”, adicionou.
Caso as mudanças climáticas afetem outros setores da economia, mais pessoas podem ser levadas a cultivar coca. É o que aconteceu na Bolívia nos anos 80, quando a indústria de mineração de estanho do país faliu: mineiros e suas famílias se transferiram para a região de Chapare e começaram a se dedicar ao plantio de coca. Ela cresce facilmente, pode ser cultivada várias vezes ao ano e o mercado “praticamente vai até eles”, explica Walsh.
Tradução: Jessica Grant
Matéria original publicada no The Daily Climate, site norte-americano que se dedica a notícias sobre meio ambiente e mudanças climáticas.