18 de maio marca no calendário do Brasil o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. A data é em memória ao caso de Araceli Crespo.
Neste mesmo dia em 1973, a menina de apenas oito anos foi sequestrada, violentada e assassinada em Vitória, Espírito Santo.
O triste episódio, que completa 50 anos em 2023, se tornou uma ampla pesquisa e trabalho de apuração dos jornalistas Felipe Quintino e Katilaine Chagas. O resultado dessa reconstituição dos fatos é o livro O caso Araceli: mistérios, abusos e impunidade, publicado pela Editora Alameda.
Opera Mundi publica abaixo o primeiro capítulo da obra:
A vítima
“É sua filha?” A pergunta direcionada ao eletricista espanhol Gabriel Crespo Sanchez por um funcionário do Serviço Médico Legal em Vitória, capital do Espírito Santo, naquela tarde de 24 de maio de 1973, o calou por alguns segundos. Na gaveta da geladeira, o corpo de uma menina desfigurado. O rosto praticamente disforme. Os cabelos estavam caídos separadamente. Do lado de fora, jornalistas aguardavam também a resposta. Chorando, ele deixou o local amparado e, ao ser questionado por um repórter, respondeu: “É Araceli. Reconheci pelas mãozinhas e pés”.
O assunto ganhou rapidamente as manchetes do dia seguinte, com uma cobertura jornalística que se estenderia em veículos de comunicação locais e nacionais por um longo período. Quase uma semana antes, na manhã de um sábado, no dia 19 de maio, Gabriel, desesperado, com um forte sotaque espanhol, entrou em jornais do Estado para implorar que publicassem uma foto de sua filha desaparecida. Havia passado a madrugada ao lado de amigos à procura dela, que não chegara em casa no final da tarde anterior, como era o seu costume diário.
As primeiras publicações sobre o desaparecimento de Araceli grafavam o nome da menina como “Arraceli”. Um reflexo do sotaque de Gabriel, que pronunciava o nome da filha daquele jeito. Araceli havia saído de casa ao meio-dia, no Bairro de Fátima, na Serra, para ir para a escola onde estudava o que se chamava então Felipe Quintino e Katilaine Chagas de terceiro ano primário, no Colégio São Pedro, na Rua General Câmara, na Praia do Suá, em Vitória. Da escola, ela deveria ter saído por volta das 16h30, como costumava fazer todos os dias. Mas naquele dia, a menina saiu mais cedo.
Se hoje os moradores da Grande Vitória ainda enfrentam dificuldades para se locomover entre bairros e cidades por motivos variados, como superlotação dos veículos, insuficiência de linhas e grande intervalo entre elas, a situação era muito pior cinquenta anos atrás. E Araceli havia sido vítima, semanas antes do seu desaparecimento, dessa inconstância do transporte público urbano. Ela diariamente pegava o ônibus de volta para casa no ponto localizado na esquina da Avenida César Hilal com a Avenida Ferreira Coelho, na Praia do Suá. O ônibus só passava de hora em hora. Então, se ela perdesse o de 16h30, corria o risco de ficar sozinha no ponto por mais de uma hora, havendo ainda a possibilidade de o veículo seguinte simplesmente não passar.
Foi o que aconteceu semanas antes ao seu desaparecimento. Araceli perdeu o ônibus das 16h30 e não viu chegar o das 17h30. Com medo de ficar à noite sozinha naquele local e sem a certeza se o ônibus, de fato, passaria, a menina resolveu ir para casa a pé. Para se ter noção da distância, da escola de Araceli, na Praia do Suá, até a sua casa, no Bairro de Fátima, em outra cidade, são quase dez quilômetros de distância. Que seriam percorridos por uma criança de oito anos. Distância que até para um adulto é difícil de vencer. Para quem conhece a região, ela teria que atravessar a Avenida César Hilal, alcançar o bairro Praia do Canto e de lá caminhar até a Praia de Camburi, que deveria ser completamente atravessada, em seus seis quilômetros, até finalmente chegar à Avenida José Rato, que dá acesso à casa de Araceli no Bairro de Fátima. Detalhe para o fato de que o bairro Jardim Camburi nem existia como é hoje, o mais populoso do Espírito Santo. Notícias da época dão conta da aprovação da existência do bairro, longe de ser um local cheio de prédios e pontos comerciais da atualidade. Um local com muito mato.
Araceli só não percorreu todo esse trajeto a pé porque uma criança uniformizada andando sozinha à noite na Praia de Camburi chamou a atenção dos ocupantes de uma kombi, que se preocuparam com a menina. Izaías Gomes do Nascimento, 36 anos, e o motorista Jonas Francisco, 21 anos, seguiam para uma empresa localizada no final de Camburi quando viram Araceli caminhando uniformizada, entre 17h e 17h30, próximo à Ponte de Camburi, que conecta a área da praia até o bairro Praia do Canto. Ao fazerem o caminho de volta, eles a viram de novo, sozinha na orla, antes da entrada para o bairro Goiabeiras, na altura da Avenida Adalberto Simão Nader, por volta das 18h30. Dessa vez, a kombi parou.
O motorista abordou a menina, perguntou por que andava por ali sozinha, ouviu a história sobre o ônibus que não passara e então a levou para casa dela no Bairro de Fátima. A essa altura, os pais já estavam desesperados procurando pela filha. Tanto que não estavam em casa quando ela chegou, pois já tinham ido a Vitória à procura da menina. Araceli foi deixada então com um vizinho. Ela nem foi à aula no dia seguinte tamanho o cansaço causado pela caminhada da noite anterior.
Foi por causa desse episódio que a mãe de Araceli, Lola Cabrera Crespo, enviou um bilhete para a diretora e proprietária da escola, Zolirma Letaif: “Sra. Professora: Favor soltar Araceli todos os dias às 16h10 para evitar complicações futuras, isto é, para que ela tome o ônibus das 16h30.”
Embora o pedido tenha sido feito logo após o episódio da longa caminhada, Araceli só foi realmente liberada mais cedo semanas depois, no dia em que desapareceu. Em depoimento à polícia, Lola disse que sempre havia alguma atividade extra que segurava os alunos na escola. Entre essas atividades, ensaios para a tradicional dança de quadrilha na escola. Araceli também contara que a professora passava os deveres de casa depois do horário de aula.
Mas no dia 18 de maio de 1973 não houve ensaio nem atividade extra. E naquele dia, Araceli foi liberada mais cedo, às 16h10. Antes de sair da escola, Araceli ouviu o pedido da amiga de sala Clarice Alves da Silva, então com 8 anos, para que a esperasse no ponto de ônibus. Clarice também pediu à professora para ser liberada mais cedo. Mas como a turma estava de castigo, não conseguiu a permissão. Araceli e Clarice eram vizinhas desde que a família Crespo se mudara para o Bairro de Fátima, cinco meses antes. Araceli confirmou que esperaria a amiga até o ônibus passar. Ela também falou com a diretora enquanto deixava a escola, ao cruzar o portão principal do colégio: “Até logo, titia”.
Depois de sair da escola, Araceli passou por Nely Maria Dutra. A mulher estava a caminho do Colégio São Pedro para buscar seus filhos quando viu Araceli fazendo o caminho contrário e falou com ela, pois ao ver a menina, achou que estivesse atrasada para buscar as crianças. Araceli estava em frente à igreja São Pedro, na Rua Neves Armond, e respondeu que as crianças não tinham sido liberadas ainda, mas que ela saía naquele horário de 16h10. Nely era a última pessoa, a chegar ao conhecimento da polícia, a ter visto Araceli viva.
Araceli era uma menina muito tímida e tinha o hábito de roer as unhas a ponto de ferir os próprios dedos. Gostava de cachorro e gato. As brincadeiras com o seu cachorro, um pastor alemão de nome Radar, rendiam bons momentos de distração. Desde pequena ela demonstrou grande tendência para desenhar. Lia Tio Patinhas, Pato Donald e a revista Figurino. “Araceli é uma garota extremamente tímida, incapaz de se deixar envolver por pessoas estranhas, mesmo as mais influenciáveis. Dentro do próprio colégio (São Pedro) possui um restrito círculo de colegas. É de pouco falar e muito esquiva”, aponta descrição feita pelo jornal A Gazeta.
Ela não tinha muitos colegas e, por isso, não era comum vê-la brincando. Passava o tempo com as bonecas e fazendo vestidos para elas. Clarice contou na época do desaparecimento que Araceli era tão tímida que, quando ia para a casa da amiga, escondia-se da mãe de Clarice para não ter que falar com ela.
A timidez de Araceli foi confirmada em depoimento dado à polícia pela professora Marlene Ceolin Stefanon, que a descreveu como “uma aluna aplicada, sempre obtendo boas notas, inclusive em educação física”. Quanto ao comportamento, detalhou que “era bem comportada, tímida e de bons costumes e que não tinha namoradinhos”, numa observação que causaria estranheza hoje ao se referir a uma menina de 8 anos.
No dia em que Araceli desapareceu, Clarice havia ido encontrar a amiga no ponto de ônibus, como já tinham combinado. Ela pegou o ônibus das 17h30 e nele encontrou o irmão de Araceli, o Luiz Carlos, que na época tinha 12 anos, que perguntou pela irmã. Ao chegar em casa, Luiz Carlos encontrou o pai, Gabriel, que àquela altura já estranhava não ter encontrado a filha em casa quando voltou do trabalho, por volta das 17h10. Gabriel viu o filho e a menina Clarice descerem do ônibus, sem a companhia de sua filha. Perguntou sobre Araceli ao cobrador, que respondeu ter visto a menina com uma loura, informação posteriormente apurada e descartada pela polícia.
Desde o episódio em que Araceli resolveu fazer a pé o caminho da escola para casa, seu pai lhe aconselhara a não arredar o pé do ponto de ônibus até que ele fosse buscá-la, caso acontecesse de o veículo não passar de novo. Ele também recomendou não pegar carona com estranhos. Ao não verem a filha descer, Gabriel e Lola iniciaram os movimentos para localizar a menina.
Começava assim um dos casos de maior repercussão na história judicial brasileira, deflagrado em plena ditadura militar e marcado por uma mistura de elementos: boatos, pressões, silêncios, insinuações ambíguas, omissões, intrigas, tentativa de suborno, atrasos no inquérito, denúncias de destruição de provas e reviravoltas. Os números do processo indicam a dimensão e os desafios: 307 pessoas prestaram depoimento (algumas por mais de uma vez), 12 acareações, 33 volumes e mais de 12 mil páginas.
A partir da saída da menina Araceli da escola, seu destino permanece obscuro. Assim que acabou a aula, Clarice correu para encontrar a amiga, mas ela não estava no ponto de ônibus. Suposições de todo tipo foram e vêm sendo feitas ao longo das últimas cinco décadas, algumas bem possíveis de serem realidade, outras, infelizmente, com poucas chances de elucidação. A partir daquele final de tarde de 18 de maio de 1973 começou o sofrimento e agonia de uma família.