Cerca de 500 pessoas, a maioria formada por brasileiros entregadores de comida por aplicativo, realizaram uma manifestação pacífica pelas ruas do centro de Dublin, Irlanda, para pedir “justiça” por João Henrique Thomaz Ferraira, de 23 anos, que teve sua perna direita amputada após ser atropelado, no sábado (28/10), por um policial à paisana, que dirigia um carro preto, sem identificação oficial. O caso de violência contra um brasileiro não é o primeiro. Em 2020, Thiago Cortes, 28 anos, morreu após ser atropelado por um carro. O motorista fugiu sem prestar socorro.
O protesto ocorreu na tarde de segunda-feira (30/10) em meio ao feriado de Halloween, bastante celebrado no país. A concentração foi em frente ao Spire, monumento localizado na região central e se encerrou em frente ao prédio da Garda, como é chamada a polícia irlandesa. Lá, os brasileiros fizeram falas calorosas, exigindo punição ao policial e maior apoio nos casos de furto de motos e bicicletas motorizadas, que vêm ocorrendo com muita frequência nos últimos anos, principalmente com imigrantes.
“Vocês não tomam providências, não se pronunciam e ficam aí com esses sorrisos estampados nos rostos. Vocês são a melhor economia da Europa, isso não deveria acontecer num país como esse”, exclamou aos policiais que faziam escolta ao prédio da polícia, Julia Caldas, 29 anos, entregadora há quase dois anos.
“Poderia ter sido meu marido, que estava junto com eles. Poderia ser qualquer um de nós. Agora, eles mexeram com uma pessoa que tem importância no Brasil, então a gente espera que o caso tenha maior repercussão e que possa mudar a nossa situação”, completou.
O jovem é filho do prefeito de São José dos Campos (SP), Anderson Farias (PSD), que emitiu nota sobre o ocorrido. A mãe do rapaz, Sheila Thomaz, está em Dublin para acompanhar os procedimentos médicos que ele ainda está sendo submetido. Segundo informações da família, divulgadas num grupo de Whatsapp criado para a manifestação, João Henrique acordou do coma induzido e está sob cuidados.
Brasileiros protestam contra violência a imigrantes após João Henrique, de 23 anos, ser atropelado por policiais da Garda – Deborah Moreira
Após a divulgação nos jornais brasileiros, o caso começou a ganhar maior repercussão na imprensa irlandesa, que, segundo relatos dos manifestantes, em geral não noticia. As primeiras matérias que saíram, ainda na noite do domingo (29/10), os veículos só mencionavam um incidente entre um carro da polícia e um homem por volta dos 20 anos. Já nesta segunda (30/10), o Irish Times, um dos principais jornais, estampou uma declaração da mãe na principal página do site do jornal.
Todos os brasileiros ouvidos pela reportagem afirmaram já ter sofrido algum tipo de violência ou preconceito no país. Sob forte emoção, os presentes gritavam por justiça, cantaram o hino nacional e seguravam cartazes com frases que pediam o fim da impunidade e da discriminação contra imigrantes: “O governo precisa nos ouvir”; “ Imigrantes não são inimigos”; e “A lei deve fazer seu trabalho. Parem de nos roubar”.
“A polícia não se manifesta, o governo protege demais os adolescentes. A minha casa já foi furtada e nada foi feito. Fotos que obtivemos e entregamos na polícia dos suspeitos revelaram que eram pessoas mais velhas e, mesmo assim, até hoje nada foi feito. Um policial tirou sarro da nossa cara dentro da nossa casa, distorcendo toda a história”, relatou Carolaini Mergulhão, 25 anos que mora há 4 anos e meio em Dublin.
Deborah Moreira
Protesto ocorreu na tarde de segunda-feira (30/10), em meio ao feriado de Halloween, bastante celebrado no país
Mergulhão é muito próxima de João Henrique e se emocionou ao lembrar do amigo: “Eu falo que o João é meu pai aqui [na Irlanda] porque ele me ajudou em muitas situações difíceis. Ele já deixou de trabalhar pra me ajudar com meu cachorro. Ele sempre ajuda todo mundo, sem pedir nada em troca. Inclusive, isso só aconteceu porque ele estava ajudando um amigo”.
O jovem, que mora há 5 anos na capital irlandesa e trabalha como entregador, estava tentando localizar uma moto de um amigo que havia sido roubada no dia anterior. Juntamente com cerca de oito entregadores, estavam seguindo o sinal do localizador da moto, quando cruzaram com uma viatura da polícia e comunicaram o fato aos guardas, que saíram em perseguição aos bandidos.
“Os rapazes que roubaram a moto viraram na contramão e bateram de frente com a Garda. Dois fugiram e outros dois ficaram no chão. Logo depois, o João chegou, encostou sua moto há cerca de 15 metros do acidente e seguiu a pé pelo acostamento. Esse guarda descaracterizado chegou, deu meia volta na rodovia, parou e acelerou contra ele”, contou Anderson Davi, entregador e amigo da vítima, que presenciou a cena e ajudou nos primeiros-socorros.
Com o impacto da batida, João foi prensado no guarda-corpo da estrada e teve a perna direita dilacerada, resultando numa fratura exposta grave. Colegas e amigos fizeram um torniquete na perna, o que estancou o sangue e provavelmente salvou sua vida. Ele também usava um capacete o que pode ter protegido do impacto.
Davi contou que nenhum dos policiais que estavam na cena teve a iniciativa de prestar socorro. Um torniquete foi obtido após um dos brasileiros pedir ao policial a paisana, que estava dentro do carro visivelmente em choque. “O mais impressionante foi o despreparo dos guardas que não sabiam o que fazer. Só olhavam um pra cara do outro e se perguntavam o que fazer”, se indignou Davi.
Foi somente com a chegada de uma terceira viatura que os policiais prestaram socorro e chamaram uma ambulância.
“Não dá para entender o porquê o policial fez isso. O João não parece nem um pouco com os adolescentes, que se vestem de maneira bem característica”, lamentou, referindo-se aos adolescentes que usam em geral roupa de moletom de uma marca bastante conhecida.
Marco Antonio Zanfra Saraiva, advogado brasileiro da família que veio acompanhando a mãe da vítima, disse que a Embaixada no Brasil na Irlanda está dando total apoio no caso e que vão acompanhar a família na reunião já marcada para esta terça-feira (31/10).
Tanto a polícia quanto o governo irlandês não haviam se pronunciado sobre o caso. A Garda emitiu um comunicado convocando mais testemunhas e disse que o caso está com a Superintendência, uma espécie de corregedoria da polícia, para investigar os procedimentos. Na manhã desta terça-feira (31/10), as primeiras testemunhas já serão ouvidas.
Histórico
Segundo relatos dos entregadores, ao contrário do que ocorreu na tarde de sábado, a Garda não tem o hábito de sair em disparada atrás dos ladrões e também não dão andamento nas investigações. Ainda de acordo com os profissionais, os autores dos crimes são menores de idade irlandeses, que são protegidos por lei, similar ao que ocorre no Brasil, com detenção leve. O motorista que atropelou e matou o brasileiro há três anos, por exemplo, tinha 16 anos na ocasião e foi condenado há dois anos de detenção.
A impunidade faz com que os entregadores, majoritariamente latinos, se organizem em grupos para recuperar as motos e bicicletas a partir do sinal do localizador. Diversas são encontradas escondidas em áreas remotas, matagais ou até dentro das moradias dos infratores.