Mais de três anos sem colocar os pés no Brasil, o indigenista Ricardo Rao está cansado e quer voltar ao país, seu trabalho e a vida que lhe foi arrancada durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Isso porque, ele trabalhava na Fundação Nacional do Índio (Funai) e divulgou um dossiê que denunciava crimes contra povos indígenas.
Locado no Maranhão, Rao recebeu diversas ameaças de morte que se intensificaram no período em que Marcelo Xavier presidiu a Funai. A decisão de sair do Brasil ocorreu após o colega Paulino Guajajara ser morto. Não existia, para ele, outra alternativa a não ser abandonar o país e a família para não ser mais um número de estatística.
Antes de tomar a decisão, ele havia pedido uma remoção que lhe foi negada e uma licença não remunerada de dois anos, que também lhe foi negada. No final, o que lhe deram foi um processo administrativo.
Rao ficou famoso em julho de 2022 quando escrachou Xavier durante a 15ª edição da Assembleia Geral do Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e Caribe (Filac), em Madri, na Espanha. No ato, o brasileiro acusou o Itamaraty de proteger milicianos e responsabilizou o então presidente da Funai pelas mortes do indigenista brasileiro Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips, que foram assassinados durante uma viagem pelo Vale do Javari.
Constrangido, Xavier deixou o evento e a cena viralizou nas redes sociais.
Agora, com o governo Lula, Rao tem esperanças de que o processo administrativo que o tirou do trabalho seja revogado e que ele possa regressar ao Brasil e a vida que tinha.
Opera Mundi esteve com o indigenista em Roma, que contou se sentir um exilado.
Veja a entrevista na íntegra:
Opera Mundi: por que você deixou o Brasil? Foi um autoexílio, o que aconteceu?
Ricardo Rao: A gente não pode falar em autoexílio porque se subentende que foi uma decisão da própria pessoa. Eu me considero um exilado porque, na minha atuação funcional como indigenista especializado da Funai, eu bati de frente com um grupo miliciano muito forte do Maranhão. São policiais civis e militares envolvidos com o crime organizado madeireiro que oprime e saqueia as terras indígenas daquela região.
Ao contrário de muitos outros, eu nunca cheguei a falar “estão dizendo”. Eu estou dizendo, aqui e agora, que o major Alan, subcomandante da PM do BPM do Imperatriz, Major Alan, repito, invadiu a minha sala da Funai para recuperar o produto de crime ambiental: uma motocicleta.
Recentemente nós vimos o Major Cid, o coronelzinho do Bolsonaro, indo pressionar o servidor da Receita Federal para reaver o colar [das joias sauditas]. Comigo aconteceu algo muito parecido entre outras ações de coação e de ameaça. Então um pouco após a morte do Paulinho no Guajajara – um grande guardião da floresta das terras indígenas maranhenses – percebi que seria o próximo.
Eu e o Paulino tínhamos atritos constantes com esse mesmo grupo miliciano. Daí pedi asilo à Noruega e foi concedido provisório de dois anos. Só que, no fim das contas, como eu tinha cidadania italiana, o asilo provisório não foi convertido em definitivo e eu tive que vir para a Itália.
Porque, ao invés de ir para Oslo, você não veio direto pra Itália?
Porque na Noruega tem índio. Eu sou indigenista. A minha esperança, uma vez regularizado e concebido o meu asilo, era ficar por lá. Tenho amigos samis – que no Brasil chamamos lapões – foram eles, esses caciques, esses líderes tribais que me falaram para ir para lá após ter sido ameaçado no Brasil. E além do que, apesar de ter a cidadania italiana, nós sabemos que o italiano oriundo é maltratado pelo corpo diplomático do país, isso também pesou. Mas a razão principal de ter pedido asilo em Oslo era a possibilidade de eu poder trabalhar nas aldeias Samis.
Janaina Cesar
Rao tenta volta ao Brasil após deixar o país por conta de ameaças
Ricardo, você disse que a partir da morte de Paulino Guajajara percebeu que poderia ser o próximo. Como teve certeza disso?
Não só a morte do Paulino. Um dos milicianos, um investigador carioca, colocou uma pistola na minha cabeça. Disse: “olha aqui, quem gosta de índio não dura”. Antes disso, o Subtenente Veloso, durante uma operação na terra indígena Krikati, fez praticamente a mesma coisa. Estava fazendo o relatório de espingardas apreendidas, quando ele chegou com quatro policiais e com o dono das espingardas, um ancião que os indígenas pediram para liberar. Por mim, teria dado voz de prisão em flagrante, mas os indígenas, como são gente boa, me disseram: “aqui na nossa cultura a gente não mexe com os velhinhos não”. Então eu soltei.
Olha como o estado de direito está fragilizado no Brasil. Você detém um homem por posse ilegal de armas, tira as armas dele, então ele corre até os amigos policiais e esses milicianos intervém a seu favor. Eles vieram até mim, que sou um funcionário no exercício da função do comprimento da lei, e me ameaçaram para reaver o produto de crime. Isso é intolerável.
Antes de deixar o Brasil, você tinha tentado pedir uma licença e não te foi concedida?
Isso mesmo. Como a situação estava muito violenta, a primeira coisa que eu pedi foi a remoção do cargo e a Funai – do Marcelo Xavier – negou. Diante dessa negativa, pedi uma licença não remunerada de dois anos, como meu amigo Bruno tinha feito. Ele pediu a licença para se preservar, porque se você está de licença, não vai sofrer perseguição, não vai poder ser indiciado em processo administrativo.
Deram para o Bruno, que ficou muito surpreso, porque a ideia era prejudicá-lo funcionalmente na Funai, como fizeram comigo. O meu pedido foi negado e não sei qual pretexto foi utilizado para isso.
Você tem família no Brasil?
Sim, mas agora estão num lugar protegido. Em um primeiro momento a minha companheira e meu filho ficaram abrigados numa aldeia a qual eu confio muito, uma aldeia que tem uns guardiões muito valentes. Depois foram transferidos para outro estado.
Agora estamos aguardando para entender se eles vêm para cá até essa minha situação na Funai se esclarecer.
Como avalia o governo Lula?
Olha, a certeza que tenho é que Lula honrou com o compromisso de criar o Ministério dos Povos Indígenas e isso foi uma coisa muito grande. Mas já passaram quase cinco meses e o governo não fez nada até agora para enfrentar o problema de perseguição política dentro Funai, nós temos a consciência de que o tempo do direito administrativo é diferente, mas estamos apreensivos.
Quando diz ‘nós’, a quem está se referindo?
A mim e a outros indigenistas do quadro da Funai, gente concursada que padeceu do mesmo lawfare, desses processos criminosos abertos pelo Marcelo Xavier e que seguem até hoje com esses problemas. Me refiro ao Alexandre Saraiva, que é um grande herói brasileiro, um grande servidor público. Como é possível que ele ainda tenha processos administrativos disciplinares em andamento e que o ministro Flávio Dino, que tem poder, não determine o final imediato deles?
Me refiro também a Guaraci Mendes da Silva, Rafael de Oliveira dos Santos, Marco Targino, Jenifer Dorothy Mesquita e Raimon Raimere dos Santos. A nossa expectativa era de que, com o novo governo, as coisas melhorassem. Mas o Guaraci, por exemplo, acabou abandonando a Funai. Isso foi uma perda lamentável, porque ele era um coordenador regional especializado. Não estou falando de dinheiro ou indenização.
E está falando do que então?
O governo Bolsonaro destruiu a minha vida. Eu perdi tudo: o emprego, pouca economia que tinha e tive que deixar o país. O que eu quero é retornar ao meu cargo público com tranquilidade. Nós protocolamos um requerimento no Ministério dos Povos Indígenas e na Funai solicitando a readmissão do Guaraci e o fim dos processos administrativos de quem, como eu, sofreu perseguição política dentro da entidade.
Você quer voltar ao seu cargo, mas as pessoas que te ameaçaram talvez ainda estejam por lá.
Olha, ninguém está falando sobre aquelas mortes dos dois indígenas Pataxós poucos dias depois da criação do Ministério dos Povos Indígenas. Aquilo é um sinal muito perigoso. A gente tem que estar muito atento ao fato que existem grupos milicianos criminosos na Polícia Rodoviária Federal e na Funai.
Ainda tem muito Bolsonaro à vista. Eles continuam lá. O Gregório Duvivier uma vez disse que é necessário fazer um expurgo profundo no serviço público federal.