A partir dessa região de planícies úmidas, o império britânico expandiu sua conquista do subcontinente asiático. É possível vê-la ainda da ribeira do sagrado Ganges, onde estava o famoso templo de Kali até que chegou, como sempre, um empresário com visão e ambições, buscando um lugar para se estabelecer e começar seus negócios.
Sanjay Mandal/Opera Mundi
Calcutá é a terceira maior metrópole hindu com uma malha urbana de 14 milhões de pessoas e milhares de bondes e carros
Hoje, fica ali um bairro um velho e festivo, Kalighat, onde há festivais religiosos todas as semanas. Mas, em 1686, Job Charnok , sem dúvida um pouco nervoso, perguntou aos locais o nome do edifício. “Kalikhata”, responderam: o templo de Kali. “Oh, Calcutá então”, disse, e assim a batizaram. Chamok foi funcionário e administrador da East Indian Company, tradicionalmente considerado o fundador da cidade de Calcutá.
Centro geográfico de um imenso golfo que domina o delta do Ganges, essa cidade foi, desde então, o filtro do comércio terrestre que vinha da China ou ia para lá. Por aqui, passaram durante décadas as duas ervas mais importantes para a coroa britânica: o chá e o ópio, cultivados em fazendas mais ao norte por índios pobres e escravizados. Aqui se fizeram fortunas.
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Restam as ruínas, como nos velhos edifícios que o tempo colonial deixou de herança. Como o velho Writer’s Building, hoje sede do governo estatal: um monte de ladrilhos vermelhos e janelas de madeira recheado de obscuros corredores. O gigante de mármore chamado Victoria Memorial, que celebra uma rainha. O antigo clube de golfe, o mais antigo do mundo, onde os nobres, os funcionários de altos cargos e alguns senhores locais jogavam; lá os caddies carregavam os tacos de seus patrões em sacolas de couro feitas com trombas de elefantes.
Depois da colônia, veio a independência da Índia, em 1950. Com os anos, os povoadores mudaram seu nome, para ajustá-lo à sua língua, que é a terceira mais falada do mundo e tem um desses ágeis alfabetos em sânscrito. Calcutá, então, a terceira maior metrópole hindu com uma malha urbana de 14 milhões de pessoas, milhares de carros, bondes e corvos espertos que ajudam reciclar muito do que é desperdiçado.
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Hoje, quando o poder da Índia está em outras cidades, em outros territórios, é uma cidade barulhenta e algo decadente, mas cheia de encantos para o andarilho que vem de longe. Diferentemente das capitais atuais, Calcutá é amável, agradece à visita e à curiosidade e se abre a seu visitante como um velho salão de chá e bolachas de manteiga.
Comer em primeiro lugar
Em meio ao calor e à escassez, os bangla (ou bengalis, como sempre entenderam, mal, os europeus) são cordiais e sorridentes. Em geral, são curiosos e perguntam a origem e o nome de cada estrangeiro que passa. Comparada às capitais latino-americanas, Calcutá é uma cidade relativamente segura (pequeno furtos são ocasionais) e barata.
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Cheia de sabores, é cosmopolita à sua maneira. Nessa cidade, é possível encontrar a cozinha e os rostos de outros povos, como os tibetanos, os naga (vindos do nordeste do país), que apreciam os sabores da carne de porco e do bambu junto ao seu arroz.
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A comida local, que tem muito peixe e camarão do rio, servida com todo o esplendor em milhares de barracas de rua. É possível desfrutar de muitas coisas a cada esquina, desde caldo de cana até aromáticos curries, lentilhas amarelas ou lanches de frango apimentado acompanhado de espinafre. Também deliciosos copinhos de barro com tchai. E o que mais tem dado fama à Calcutá: seus doces de leite e iogurte, variados e populares.
Ou é possível começar pelo básico, indo ao mercado. Os vendedores de especiarias e de massala — termo genérico indiano para a mistura de ervas, especiarias e aromatizantes, geralmente fritos por alguns segundos para realçar seu aroma — do New Market terão a infinita paciência de explicar para que serve cada pó culinário, com que carne ou em que prato. Ou as propriedades gerais do cardamomo, da pimenta, da cúrcuma ou das diversas nozes.
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De qualquer maneira, entre provar comidinhas e comprar especiarias, a lição será sempre a mesma: algum sabor, alguma receita explicará um passado, a velha rota da seda e chegará até a Europa e às capitais mais crioulas do continente americano. Comer, neste outro lado do mundo, pode ser sempre uma viagem à origem de certas afinidades, de algum antigo sabor que herdamos deles sem saber.
A velha ponte e as ruas
Assim como a comida é encontrada na rua, é caminhando que se veem alguns dos melhores atrativos de Calcutá. É possível vislumbrar a história desse imenso país olhando as fachadas de outrora, algumas já carcomidas. Ou indo caminhar pela ponte de Howrah, sobre o rio, em uma manhã qualquer. Lá, desde o mercado de flores até a velha estação de trens do outro lado, é possível admirar carregadores, mensageiros, vendedores de jornais e condutores de riquixás.
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Ou ainda, pode-se caminhar lendo as placas de algumas ruas, inclusive as mais recentes, como a de Ho Chi Minh Sarani, uma rua comum e sem atrativos, a não ser pelo nome e porque ali está localizado o consulado norte-americano. Não é por acaso.
Calcutá é a cidade que foi governada por mais tempo pelo partido comunista na história — 38 anos. E ainda que a memória desses governos não seja sempre amável, é possível cruzar avenidas enfeitadas com bandeiras vermelhas com seus martelos e foices. Foram os comunistas que arquitetaram os detalhes dessa rua, em plena guerra do Vietnã: com toda a cerimônia mudaram o nome nos anos 70, apenas para que o governo dos Estados Unidos tivesse de imprimir em toda a sua correspondência oficial o nome do tio Ho.
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Também é necessário perambular pelos parques, como o velho campo de Maidan, uma extensão de imensa campina. Vale perguntar aos idosos que passeiam por ali quem foram os 11 jogadores de futebol que, um século atrás, venceram uma equipe de jovens oficiais britânicos em uma partida histórica muito lembrada. Qualquer um contará como eles jogaram em Maidan, sem sapatos, contra seus amos, e venceram por 3 a 2, rodeados de camponeses e serventes que celebraram cada gol como se fosse uma vitória militar.
Ou pode ser interessante ficar calado em qualquer calçada, admirando os artesãos, que fabricam selos, placas de automóveis ou cinturões, e ver as pessoas passarem. Quase 20% da população dessa cidade é de muçulmanos. Há dezenas de mesquitas. Em cada bairro e em cada loja é possível perceber um fenômeno que hoje a imprensa nem mesmo retrata: a convivência simples de gente diferente. Calcutá tem um passado colonial, mas é tolerante.
E o outono é ideal para andar por essas ruas. O calor diminui e as chuvas já se foram. Os festivais religiosos de outubro colorem cada bairro. As festas e as comidas brilham mais que em outra estação do ano.
A arte de conversar
Os bengalis têm uma formação singular: qualquer um escreve, pinta ou canta, toca algum instrumento e lê dezenas de livros em seu idioma, conhece sua história coletiva quase de cor. Sob a ponte do mercado de Garahiat, por exemplo, compra-se os tecidos mais bem fabricados do mundo, a seda local e as camisas mais elegantes, é possível jogar xadrez em meio do ruído dos automóveis, caminhões e transeuntes.
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“Enxame” de táxis em calcutá. Movimentada, cidade é atraente por sua história, culinárias e cultura para todos os tipos de viajante
Aqui cresceram e foram criados pelo menos dois prêmios Nobel — o poeta cantor Rabindranath Tagora e o economista Amartya Sen –, um dos mais importantes cineastas (Satyajit Ray) e uma lista especial de artistas e intelectuais que inclui o compositor e músico Ravi Shankar, a crítica e teórica Gayatri Spivak e um engenheiro de origem humilde apelidado Bose, que foi estudar na América e começou lá um negócio de sistemas de áudio.
Pode-se perguntar em qualquer esquina pela música ou o cinema que floresceram nessa cidade, assim como o teatro ou as artes plásticas. As pessoas pararão para conversar e comentar suas preferências. Assim, é possível conhecer uma das tradições culturais mais apreciadas em Calcutá: a adda, ou tertúlia, no qual a arte de conversação cortês e apaixonada faz o tempo passar enquanto se fuma e se pensa.
E se falamos de livros, um bonde velho pode levar ao College Street, distrito de livrarias e imprensas. Milhões de exemplares são vendidos todos os dias. Velhos clássicos, de todas as culturas, e novidades, usados ou recém-importados. Não há cidade que tenha um bairro como esse. E, no coração do bairro, a Indian Coffee House é onde os estudantes conversam e os velhos professores seguem debatendo a história. O café é ruim, mas o ambiente é o termômetro político da cidade. E contra o que dizem as normas, todo mundo fuma em suas mesas.
Deixar os campos de Kali, a feroz deusa com 12 braços, será igualmente simples. A modernidade trouxe um novo aeroporto, táxi e carros para alugar por preços razoáveis (20 dólares por dia, motorista incluso). A ferrovia é em si mesma uma aventura, e leva para todas as partes da Índia. Mas, nessa capital antiga se voltará sempre para comer e perambular, porque ela segue tendo esse espírito aberto que permite decifrá-la e desfrutá-la.
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