Apesar do acidente de Fukushima, a demanda por energia elétrica nuclear continua a crescer. Essa commodity está em um ponto crítico de inflexão para preços mais elevados. Até mesmo o Japão está mudando sua postura sobre o nuclear devido aos maiores custos da geração elétrica substituta. O recém-eleito primeiro-ministro, Shinzo Abe, declarou que o novo governo está disposto a construir novas usinas – mudança radical com respeito à promessa do governo anterior, de fechar todas as 50 usinas do país até 2040.
O impacto mais significativo vem, porém, do mundo em desenvolvimento, especialmente da China. Ela que poderá adicionar mais de 100 usinas ao longo das próximas duas décadas. Outras nações, como Rússia, Índia, Coréia do Sul e Emirados Árabes Unidos têm também grandes programas de construção, aumentando significativamente as 435 usinas que hoje fornecem eletricidade na base de carga dos sistemas elétricos de 31 países.
O ano de 2013 começa com 65 usinas nucleares em construção (1 no Brasil), outras 160 em fase de planejamento (4 no Brasil) e mais 340 propostas (4 no Brasil). A demanda por urânio será, portanto, cada vez mais elevada, o que representa um problema, pois existe hoje um déficit de produção. De acordo com a WNA (World Nuclear Association), o consumo total em 2011 foi de 80 milhões de quilos, enquanto a produção foi de 68 milhões – déficit de 12 milhões de quilos.
O uso do urânio altamente enriquecido reciclado, o reenriquecimento de urânio empobrecido (rejeito do processo de enriquecimento) e a redução dos estoques das empresas geradoras têm suprido esse deficit, mas o futuro dessas fontes de suprimento é incerto, particularmente com o final do programa chamado “Megatons por Megawatts”. Criado com o final da guerra fria, o programa é um acordo entre os EUA e a Rússia para converter o urânio altamente enriquecido, disponibilizado pelo desmantelamento de armas nucleares russas, em urânio de baixo enriquecimento para combustível nuclear.
A existência deste programa sozinho preenche a maior parte do déficit anual mundial, oferecendo 10 milhões de quilos de urânio. Eles são consumidos exclusivamente pelos EUA, onde está cerca de 25% do parque nuclear mundial. Paradoxalmente, nos últimos anos, 10% da eletricidade produzida nos EUA têm como fonte o urânio das armas nucleares russas desmontadas – espadas se tranformando em arados.
Entretanto, ele expira no final de 2013. Se os russos decidirem não renovar o acordo, o que parece bastante provável, o reenriquecimento e os estoques não serão suficientes para suprir o deficit. Se contarmos somente com as usinas em construção, o consumo anual crescerá para 100 milhões de quilos. Neste contexto, com a oferta não conseguindo mais acompanhar a demanda, os preços do urânio começarão a subir.
Quando se considera os prazos necessários para abertura de novos complexos industriais de produção e ampliação dos existentes, temos um complicador: até 2020 a produção anual somente poderia aumentar no máximo até 90 milhões de quilos. Mas, para isso acontencer, os preços também teriam que se estabilizar num patamar de 40 dóalres por quilo para que a indústria estivesse disposta a realizar os investimentos necessários. Hoje o preço é de 20 dólares. O mercado está assim dando pouco incentivo para a implantação de novos projetos. Os preços terão que se mover para cima de forma importante e sustentada para que haja produção adicional.
Quando o Japão prometeu fechar suas 50 usinas, reduziu a demanda mundial por combustível em cerca de 10 milhões de quilos e, além disso, agravando a situação, as empresas japonesas venderam cerca de 7,5 milhões de quilos de seus estoques. Isso levou à atual baixa de preços no mercado spot. O sistema elétrico do Japão sem a energia nuclear tem experimentado apagões, as importações de gás natural subiram 17% e as importações de carvão, 21%. Com a vitória do Partido Liberal Democrático, espera-se que as vendas de urânio cessem e a demanda seja retomada.
Considerando as usinas em construção, a capacidade instalada da China subirá para 40 milhões de quilowatts até 2015, em comparação com 12,54 milhões no final de 2011. As empresas chinesas terão que aumentar seus estoques, adquirindo muito mais urânio. Isso elas já vem fazendo, aproveitando dos preços baixos decorrentes do “efeito Fukushima”.
Esses dois fatos, somados ao encerramento do acordo Megatons para Megawatts, indicam que o preço do urânio poderá voltar aos 40 dólares por aquilo, ou até mais, já em 2014. Antecipando isso, as empresas do setor já começaram a fazer movimentos estratégicos. A estatal russa vem adquirindo empresas menores, fortalecendo sua posição no mercado. O conflito no Mali deriva, em parte, desse contexto.
Ao contrário do petróleo, a maior parte do urânio que alimenta as mais de 400 usinas nucleares em operação no mundo vem de regiões politicamente estáveis. Com o aumento da demanda, uma parte cada vez mais significativa da oferta virá de regiões instáveis.
Antecipando esse aumento de demanda (e de preços), as empresas do setor têm feito movimentos estratégicos, dentre os quais a busca por fontes em locais inexplorados, o que inclui o norte do Mali, onde a França está hoje em guerra contra os insurgentes apoiados pela Al-Qaeda.
Mali
Em 2007, Oklo Resources Ltd, companhia cotada na Bolsa da Austrália e que explora urânio no Gabão, começou a pesquisa mineral em Kidal, no nordeste do Mali, perto da fronteira argelina. O governo do Mali informou a AIEA (Agência Internaiconal de Energia Atômica), em 2009, que o projeto de Kidal cobre uma área de cerca de 20.000 quilômetros quadrados. As atividades não avançaram muito até os islamitas passarem a atuar no norte do Mali. No último trimestre de 2011 estavam paralisadas por causa da “agitação política” na região, embora a empresa planejasse iniciar um programa de perfuração de maio de 2012.
A Rockgate Capital, companhia cotada na bolsa de Toronto e ligada à Areva francesa, também desenvolve atividades em outro local do Mali que poderia conter cerca de 10 mil toneladas de urânio, além de cobre e prata, que continuam apesar da agitação política. Esse local está, entretanto, bastante afastado do atual teatro de operações da França contra os insurgentes. Os esforços para perfurar no local têm, porém, encontrado oposição política dos Verdes no Parlamento Europeu.
Não há atualmente produção de urânio no Mali. Quem investiu no Mali nos últimos anos deve estar arrependido dessa decisão, mas a quantidade envolvida dificilmente justificaria uma “teoria da conspiração” sobre a França estar indo à guerra para proteger o acesso ao urânio.
Entretanto, a economia política da extração de recursos naturais, incluindo urânio, bem poderia de fato ser um fator da decisão francesa sobre como responder à insurgência no oeste da África em geral. A recente tomada manu militari de uma planta de gás natural na Argélia prenuncia que o alcance da Al-Qaeda na região vai além de Mali e que os islamistas têm as instalações de exploração de recursos naturais como alvo.
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O principal foco de preocupação da França é o Níger, único centro de produção de urânio no norte da África em atividade. Entretanto, as fronteiras nacionais no Saara e do Sahel existem, em grande parte, apenas nos mapas, Como no Mali, os tuaregues do Níger têm pressionado o governo para uma maior participação dos rendimentos de extração mineral, inclusive da produção de urânio.
Em 2011 o Níger produziu 4.400 toneladas de urânio, sendo o quarto maior produtor do mundo. Duas minas em que a Areva é principal acionista fornecem cerca de um terço do urânio consumido pelas centrais nucleares da França e grande parte da produção de urânio total da Areva.
No ano passado, o governo do Níger, com o objetivo de aumentar a produção para mais de 5.000 toneladas/ano, teria pressionado a Areva para abrir uma nova mina de Imouraren, um local onde sete funcionários da empresa foram sequestrados pelos rebeldes em 2010. A tomada de reféns foi numa instalação de produção de urânio localizada no deserto a 900 km a nordeste da capital, Niamey. A segurança deficiente, fornecida por empresas dirigidas por ex-rebeldes tuaregues desarmados teria permitido aos insurgentes acessar suas vítimas facilmente. Os rebeldes executaram um refém francês e a Al Qaeda assumiu a responsabilidade. Logo após os sequestros, os militares franceses intensific aram sua presença aérea no Níger.
Em 2007, ao mesmo tempo em que os investidores estrangeiros estavam se preparando para prospecção de urânio no Mali, o governo do Niger terminou sua parceria exclusiva com a indústria francesa. O Níger exigiu mais compensações da França pelas operações de mineração de urânio, vendeu ao final de 2012 dezenas de direitos de prospecção a investidores não franceses e apoiou as demandas dos tuaregues para compartilhar as receitas da produção de urânio da Areva. A concessão de direitos de prospecção de urânio para uma indústria chinesa gerou tensões entre tuaregues, levando ao seqüestro de profissionais chineses qua atuavam na área.
Os tuaregues fizeram em 1995 um acordo com o governo do Níger para cessar o conflito então existente em troca de 10% a 15% das receitas provenientes das operações de mineração de urânio. Dois anos mais tarde, um grupo separatista retomou a violência contra o Estado, seguido por um acordo de paz, que por sua vez deu origem a novos conflitos devido à escassez de água, condições de trabalho e degradação ambiental. Em 2007 foi formado um novo movimento separatista tuaregue que exigiu uma maior compensação das receitas do urânio e uma melhor proteção ambiental.
O aumento da insurgência apoiada pela Al Qaeda poderia ser explicado pelos tuaregues terem buscado um aliado mais forte para fazer valer suas reinvidicações. A resolução do conflito atual apenas atenuará as ameaças à segurança de mineração na região no longo prazo, pois não só urânio, mas também outros minérios estratégicos sob as areias do deserto estão em jogo.
Brasil
As reservas brasileiras de urânio montam a 309.370 toneladas. Entretanto, sob o ponto de vista geológico de ocorrência de urânio, as caracteríscas e as dimensões das áreas do terreitório do Brasil são muito semelhantes às da Austrália, maior reserva do mundo. Logo, é altamente provável que as reservas nacionais sejam muito maiores.
Em 1950, o Brasil, por iniciativa de Álvaro Alberto da Motta e Silva e José Carneiro Felipe, conseguiu criar o CNPq (Conselho Nacional de Pesquisa), obtendo a aprovação do Congresso Nacional para que aquele órgão vinculasse projetos nas áreas de Ciência, Tecnologia e Energia Nuclear. A efetiva implantação do CNPq se dá em 1951 por meio da Lei 1.310, que recebe de Álvaro Alberto, primeiro presidente do CNPq, a denominação de “Lei Áurea da Pesquisa no Brasil”. Hoje um dos mais importantes organismos de fomento científico, o Conselho nasceu com o objetivo de desenvolver a energia nuclear no País, além de prospectar e pesquisar as jazidas nacionais de minérios radioa tivos com o apoio do United States Geological Survey (USGS).
Em 1956 é criada a CNEN, com a responsabilidade de prospectar e pesquisar urânio. Depois de lutar durante toda a década de 50 para dominar a tecnologia nuclear, seja comprando equipamentos ou desenvolvendo pesquisas autônomas, os anos 60 começam com o estabelecimento do monopólio nacional sobre o setor nuclear em 1962. A CNEN, que nasceu dentro do CNPq, tornou-se uma autarquia com o objetivo de exercer o monopólio sobre os minerais nucleares e realizar estudos e projetos no setor. Os resultados obtidos na avaliação dos corpos mineralizados em urânio pesquisados até então apresentaram, como reserva Inferida, o valor total de 1.200t até o ano de 1970.
Com a criação de um imposto destinado a financiar a prospecção de minerais nucleares em 1970, a prospecção e a pesquisa de urânio ganha novo impulso. No entanto, era necessário também dominar a tecnologia. Para tanto, em 1971 foi criada a Companhia Brasileira de Tecnologia Nuclear (CBTN). Em dezembro de 1974, foi criada a NUCLEBRAS encarregada da implantação do chamado Ciclo do Combustível Nuclear. Os resultados obtidos na avaliação dos corpos mineralizados em urânio pesquisados de 1950 a 1974 corresponderam a uma reserva nacional de 11.040 toneladas.
De 1975 a 1988, ou seja, sob o comando da NUCLEBRÁS, as reservas brasileiras evoluíram de 11.040 toneladas para 301.490 toneladas, isto é, foram multiplicadas em 27 vezes, com a notável observação que elas já tinham atingido este valor no final de 1982, isto é, em apenas 7 anos, De 1982 a 1988, a NUCLEBRAS paralisou todas as suas atividades de exploração de urânio.
A NUCLEBRÀS foi extinta em agosto 1988, tendo como sucessora na área de recursos minerais as Indústrias Nucleares do Brasil (INB). Neste mesmo ano de 1988, tentou estabelecer uma Parceria Público-Privada (PPP) com a Andrade Gutierrez que, querendo confirmar a reserva de 301.490 toneladas, adensou a malha de sondagem em corpos mineralizados em urânio na Província Uranifera de Lagoa Real (Caetité-BA) logrando obter, em cinco anos de pesquisa, entre 1989 e 1994, a ampliação da reserva em mais 7.880 toneladas, que somadas às 301.490 toneladas, resultaram na reserva atual de 309.370 toneladas.
Com isso, o Brasil é hoje a 7ª maior reserva de urânio do mundo. Como esse numero permanece igual nos últimos 18 anos, pois depois de 1994 nada mais foi feito em termos de prospecção e pesquisa de urânio, a esta posição vem caindo continuamente, pois essas atividades continuam nos outros países.
Sendo uma das maiores reservas de urânio no mundo e estando localizado numa região do mundo politicamente estável há décadas, a produção do Brasil é modesta e exclusiva para o mercado nacional. Nos últimos anos tem declinado, não sendo suficiente para atender as 400 toneladas por ano requeridas por Angra 1 e 2 – ficará pior com Angra 3.
Todos esses movimentos do mercado mundial de urânio e do contexto geopolítico internacional não têm tido eco no Brasil. Sendo um setor da economia submetida a monopólio constitucional da União, se não houver mudanças radicais nas políticas públicas para o urânio, aquilo que parece ser uma excelente oportunidade de geração de emprego e renda no país, relacionada com um novo produto de demanda mundial crescente e alto valor agregado, poderá ser perdida.
* É assistente do diretor-presidente da Eletronuclear