O governo português assumiu como política que o aumento da rentabilidade do capital investido, sobretudo nas empresas de exportação e nos grupos com negócios com o Estado, se daria com a redução do custo unitário do trabalho de uma forma peculiar. Qual? A destruição de riqueza (pela recessão) e o desemprego massivo (1). Dito de maneira mais simples: a produtividade aumenta porque um trabalhador passa a fazer o trabalho que antes era feito por dois, com o mesmo ou ainda menos salário.
Esta política implica uma massiva descapitalização das aposentadorias e pensões. É um entre os vários mecanismos de descapitalização da segurança social construída com as contribuições de quem trabalha.
Em primeiro lugar os pais pagam o desemprego dos filhos. Como?
Já pagavam desde o final dos anos 1980 quando a redução de salários implicou uma mudança histórica na geração nascida depois da Revolução dos Cravos, com muitos cidadãos impedidos de ser independentes, porque os baixos salários implicam a permanência nas casas dos pais até mais tarde. Como se compreende, isso implica uma redução do salário real disponível dos pais, mas também em algo mais grave: a infantilização de toda uma geração, que se mantém “jovem” até aos 35 anos. Não é o mimo dos pais que gera a dependência, é a dependência que gera a infantilidade.
Em segundo lugar, um trabalhador precário ganha em média quase 40% menos do que um trabalhador com direitos (2), o que significa que não consegue descontar para a segurança social ou desconta um valor muito baixo.
A UE e os governos, então de maioria absoluta de Cavaco Silva, ponderaram que a criação de uma massa de desempregados e precários (precários que ciclicamente entram no desemprego) implicava inevitavelmente a criação de programas de cunho estrutural para evitar revoltas sociais desta camada de “eternos jovens” – subsídio de desemprego, extensão destes subsídios, rendimento mínimo, RSI (Rendimento Social de Inserção), agora cantinas sociais, etc. Numa palavra, a caridade (e a redução dos custos das empresas) organizada pelo Estado, embora exercida no terreno pelas IPSS (Instituições Particulares de Solidariedade Social).
Do outro lado da história estão os trabalhadores com direitos que foram demitidos, já não tão jovens, a maioria aliás tipicamente despedida depois dos 45 ou 50 anos, com muita dificuldade em retornar ao mercado de trabalho. E que por isso fazem este percurso típico, também ele suportado em parte pelos reformados: subsídio de desemprego durante três anos, seguindo-se a pré-aposentadoria até à idade da aposentadoria.
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O Estado criou um expediente para que as empresas demitissem com mais facilidade os trabalhadores com direitos a que as leis laborais conquistadas na Revolução dos Cravos atribuíam indenizações por demissões ‘elevadas’, suportando esses custos, que passaram a ser assumidos pelo fundo da segurança social, pelo Orçamento de Estado e, por vezes, com comparticipação de fundos europeus. Ilustra esse negócio uma ata de uma reunião entre duas empresas de trabalho portuário nos anos 1990, em Leixões, em que um patrão diz ao outro que na reestruturação «não foram beliscados financeiramente» (3), orgulhando-se de não ter pago um escudo (moeda portuguesa anterior ao Euro) pela reforma antecipada dos seus trabalhadores.
O rumo destes trabalhadores desde o início dos anos 1990 é, parece-me, o mesmo que está destinado, a concretizar-se o despedimento, aos atuais trabalhadores da função pública, da RTP, da Lusa e de muitas empresas privadas: desemprego, pré-reforma, reforma. Isto é, rumo nenhum, porque se as reformas estão hoje a ser parcialmente confiscadas, como estarão daqui a cinco anos, a continuar a esta política?
A negociação feita nos anos 1990 para as pré-reformas, que foi feita em sede de concertação social e muitas vezes com apoio de alguns sindicatos, não garantiu as reformas dos que então as assinaram, porque hoje o governo confisca parte destas com o argumento de que há crise. Quando de facto se trata de uma fraqueza social dos trabalhadores com direitos e reformados, que se vêem não a usufruir de uma sociedade mais produtiva, mas rodeados de uma massa desesperada de desempregados dispostos a trabalhar a qualquer preço.
Acredito que as demissões de hoje não terão a reforma, porque não há sistema de segurança social, por mais superavitário e contributivo que seja, e o nosso é, que sustente ter metade da força de trabalho (2,5 milhões) desempregada ou precária. As empresas do setor exportador e dos grupos económicos que vivem na dependência do Estado, esses ‘aguentam’, e, se olharmos os relatórios de contas, descobriremos que há muito “saíram da crise”.
As sociedades, felizmente, não se suicidam coletivamente. Há sempre uma saída, que assim é porque foi encontrada coletivamente. E que não poderá deixar de passar, entre outras coisas, por esta premissa: se a força de trabalho é gerida como um todo, a resistência deve sê-lo também. Porque, para além da solidariedade e da moral, palavras que têm valor para muitos de nós, existe a economia real. E emprego, desemprego e reformas estão indissoluvelmente ligados a esta questão tópica de nosso tempo: nunca antes no mundo se produziu tanto e com tanta eficácia – como podemos tolerar que isso se traduza em desemprego maciço e miséria de uma parte crescente da sociedade em vez de pleno emprego, com redução do horário de trabalho e salários dignos, para que todos possam trabalhar e contribuir para uma velhice digna?
Medo de não ter emprego, medo de não ter aposentadoria, as relações laborais são hoje de fato a razão da maioria das pessoas viverem aterrorizadas. Fato tão verdadeiro quanto enunciar que, se aposentados, desempregados e precários se unirem em formas de resistência coletiva a esta cruzada recessiva e contrária à civilização, o medo pode mudar de lado.
Notas:
(1) Ver Relatório do Orçamento de Estado 2013 pp. 14-17 (cit in Guedes, Renato, “Orçamento do Estado para 2013: o significado do reajuste económico”, 22 de Outubro de 2012, http://www.cadpp.org).
(2) Sobre as diferenças salariais ver vários estudos de Eugénio Rosa em http://www.eugeniorosa.com
(3) Acta nº 29. Assembleia Geral Extraordinária das associadas da Associação GPL – Empresa de Trabalho Portuário do Douro e Leixões, realizada na sua sede social em Leça da Palmeira, Matosinhos, 23 de Janeiro de 1995.