As últimas semana foram decepcionantes para o Governo Obama. Na frente interna, recomeçou o choque com o Congresso norte-americano sobre o orçamento público, com tal virulência que o presidente acusou a oposição republicana de “extorsão”. No plano das relações internacionais, os EUA viram-se paralisados tanto pela recusa da opinião pública em aceitar mais uma guerra “encomendada”, quanto pela recusa da comunidade internacional em aceitar os termos de Washington. Da crise, a Federação Russa, a ex-URSS, sai fortalecida.
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A frente interna
A luta pela aprovação do orçamento nacional para o exercício de 2014 já começou em Washington, e, mais uma vez, parece ameaçar o Governo Federal com a paralisia. Com a economia do país ainda longe da recuperação prevista no início de 2013, Obama é obrigado, no momento, a continuar aumentando astronomicamente o endividamento público do país. Depois que o presidente do Banco Central norte-americano vinculou a diminuição do desemprego ao fim das benesses financeiras – a compra e recompra de títulos norte-americanos pelo Tesouro coloca na praça, todo mês, cerca de 85 bilhões de dólares, ao mesmo tempo que a taxa de juros é mantida forçadamente baixa – houve uma inundação de dólares “baratos”, que atingiram negativamente as moedas e o preço dos artigos dos países emergentes (como Brasil, Índia, Argentina, África do Sul, etc…).
Agência Efe
Vladimir Putin, discursando em encontro multilateral de países do Àrtico, recolocou Rússia no protagonismo geopolítico internacional
Mas, com uma taxa de desemprego presa em torno de 7,4% (era de 8,1%, em 2012), caindo a um ritmo lento – no mais, sob a forma do chamado “efeito gangorra”, ou sobe/desce – e um crescimento estimado, para 2013, de 2.5% do PIB, Obama se vê sob forte crítica dos ultraliberais, dos conservadores do “Tea Party” e dos republicanos.
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Para manter o crescimento – ainda muito abaixo das médias históricas do país – Obama deve insistir em “incentivos” monetários gigantescos, que ao final tornam o endividamento público mais pesado e de difícil resolução. Os EUA se endividam pesadamente a cada mês.
Agência Efe
O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, em almoço de chefes de Estado em Nova York
Assim, esta semana, Obama foi obrigado a abandonar a ideia de tornar o ex-secretário do Tesouro do Governo Clinton, Larry Summer, novo presidente do “Fed”. Em seu lugar emerge Janet Yellen, uma neokeynesiana expansionista (ou seja, convencida da necessidade de mantar o dólar barato e os juros baixos) para fomentar o retorno do crescimento aos EUA. A oposição, contudo, não aceita a elevação “astronômica” do endividamento e ameaça, mais uma vez, não aprovar o orçamento (como foi em 2012), lançando-o em mais um “Abismo Fiscal”.
Para a aprovação da sua política econômica – até o momento de resultado bastante medíocre – Obama está sendo obrigado a negociar com a maioria oposicionista republicana na Câmara dos Deputados. Estes fazem uma exigência básica para apoiar um novo “teto de endividamento público”: cortes substanciais no regime de saúde pública criado pelo próprio Obama e que é a marca, até o momento, dos seus dois mandatos.
Afastando-se das bases progressistas
A emergência de Obama no cenário norte-americano, com sua mística de jovem e dinâmico político negro, marcando um “fim de época” (da segregação) e plena realização do “American dream”, empolgou milhões de norte-americanos. Muitos destes, a maioria, nunca tinham votado (o voto não é obrigatório nos EUA) e o fizeram pela novidade que representava a candidatura Obama.
A maioria destes progressistas (“liberals”, em inglês) estão fortemente decepcionados com a Administração Obama. Dois pontos são, particularmente, graves. De um lado, a saída buscada por Obama para as guerras no Afeganistão e outras partes do mundo – Iêmen, Somália, Sudão, Paquistão – pela utilização massiva de “drones”. Pequenos aviões não-tripulados e armados, capazes de matar, à distancia, seus alvos. O caso, no entanto, redunda, constantemente, na morte de dezenas de civis inocentes.
Os erros de identificação são frequentes, atingido crianças e, até, festas em família confundidas com reuniões terroristas. O uso dessa guerra moderna, limpa e sem riscos para os soldados norte-americanos, mas com terríveis consequências para inocentes, arranhou a imagem humanista e progressista que o presidente queria para si mesmo. Os dados sobre tais mortes ditas “acidentais” são discutíveis, mas em 2011, foram 146 civis dos quais nove eram crianças (Bureau of Investigative Journalism), sendo que até o momento, somente na administração de Obama, cerca de 500 civis foram mortos desta forma [1].
Por outro lado, a descoberta do imenso sistema de espionagem montado nos EUA e mantido e expandido na Administração de Obama, espionando cidadãos norte-americanos, estrangeiros, amigos e inimigos, revelou uma administração federal absolutamente alheia aos critérios e princípios mínimos, senão da Lei, com certeza da ética e da decência mínima. Ao menos em um caso, com o Brasil, a espionagem norte-americana poderá custar algumas centenas de empregos norte-americanos, com Brasília escolhendo, por retaliação, outros fornecedores para equipamentos para as FFAA brasileiras.
Assim, a imagem construída, com tanto cuidado, de um presidente, em tudo, o “Anti-Bush”, começou a ruir e mostrar um político frio, calculista, avesso às negociações e arrogante ao ponto de não negociar e, menos ainda, a se desculpar dos erros cometidos e, publicamente, exibidos. Para piorar tudo, no afã de esconder as marcas a bisbilhotice endêmica e paquidérmica – já que não conseguiu minimante, com todo seu aparato proteger a vida de simples cidadãos norte-americanos do terrorismo num desfile nas ruas de Boston – a Administração Obama, já é o governo que mais processou e limitou o direito à livre informação, tendo hoje em formas deferentes de prisão Julian Assange (retido numa embaixada em Londres), o soldado Bradley Manning, condenado nos EUA, e o jovem Edward Snowden, internada na Rússia. Não podemos esquecer, é claro, no quase sequestro do presidente Evo Morales e da prisão arbitrária do brasileiro David Miranda, em Londres. Tudo muito bem coordenado pelos interesses de Washington.
É assim que um mito, como tudo mais, se desmantela: pela revelação de sua própria e íntima natureza.
Na Frente externa: a crise na Ásia do Pacífico
O ano, até o momento, não foi bom também na Ásia. Entre março e abril de 2013, a Coreia do Norte ameaçou seriamente entrar em conflito com os EUA e rompeu com acordos, incluindo aqueles derivados do Armistício de Panmumjon, de 1953 (que havia encerrado a Guerra da Coréia – 1951-1953) e colocou o Japão e a Coreia do Sul, aliados e protegidos dos EUA, numa situação de extrema insegurança. Ora, mesmo os Estados Unidos estavam, desde 2012, sob pressão, na Ásia Oriental, em consequência de uma áspera – e com desdobramentos militares – disputa entre Beijing e Tóquio por alguns atóis e rocas no Mar da China Oriental.
Os Estados Unidos, que mantém um acordo de defesa mútua e assistência militar com o Japão, viu-se na incômoda situação de garantir suas obrigações com Tóquio, sem, contudo, arriscar uma escalada conflituosa com os chineses.
As duas crises desenrolaram-se quase que simultaneamente, entre China e Japão e, em imediato, entre Coréia do Norte e os aliados asiáticos de Washington.
Pequim, para além de tomar as medidas que considerou legítimas – com a ocupação militar das ilhotas – manteve-se distante da crise coreana, permitindo uma brutal escalada – no estilo de Pyongyang, de muitas assertivas “anti-imperialistas” – quase que até um ponto de não-retorno. Somente neste momento, após humilhar o Japão e deixar os EUA sem trunfos na região, é que Pequim começou seus esforços junto a Coreia do Norte para amortecer a crise na conturbada península.
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Havia aqui um claro recado da parte de Pequim: a insistência de Obama em tratar os chineses como uma potência de segunda categoria (incluindo aí reptos públicos sobre direitos humanos, acusando a China de espionar os EUA e o mundo, além de incentivar a cyber pirataria e cyber guerra e, por fim, a continuada assistência militar de Washington a Taiwan) teriam um preço. A China, no pós-XVIII Congresso do PCCh, e com seu novo líder, Xi Jinping, não estavam mais na situação de país colonial e os EUA teriam que começar a considerar a paz na Ásia do Pacifico um tema de cooperação comum entre as duas potências.
Os conflitos com a Rússia
Acostumada, desde de a derrocada da URSS em 1991, Washington não percebeu a imensa recuperação dos russos, a relevância – para a Europa, China e Oriente Médio – da economia russa e de seus trunfos estratégicos (para além do arsenal militar, renovado e com farta agregação tecnológica, a Rússia tornou-se um parceiro indispensável para países como a China Popular, Irã, Índia e Vietnã – onde a antiga base aeronaval norte-americana de Da Nang foi arrendada a Moscou). Hoje, os ex-inimigos “socialistas” possuem uma coesa aliança, ampla cooperação militar e econômica, além de objetivos comuns de afastar Washington da Ásia Central.
Da mesma forma, os contratos comerciais entre Moscou e Pequim estreitam-se e multiplicaram-se, com a construção de oleodutos diretos da Sibéria para a China e o fornecimento de amplo material e tecnologia militar russa – em especial na área de submarinos – para os chineses. Além disso, a diplomacia russa, esnobada no Ocidente, esforçou-se, com sucesso, a dar uma aparência formal (com reuniões periódicas e consultas constantes) ao chamado grupo dos BRICS, que passaram a ter uma atuação bastante coordenada em fóruns internacionais, em especial na ONU e no G-20. E, na Ásia Central, consolidou o Pacto de Xanghai, assumindo um amplo papel de manutenção da ordem, em especial de controle do islã fundamentalista na região.
Neste contexto, a insistência de Washington em tratar os interesses russos – em Belarus, na Ucrânia e no Cazaquistão – como insignificantes, acarretaram a imperiosidade de uma reação russa. Desde a Guerra da Geórgia, em 2008, quando a Rússia atribuiu a ousadia dos georgianos a um pouco velado incentivo de Washington, Moscou tinha interesse em mostrar-se, mais uma vez, um ator global atuante e necessário para a ordem mundial.
A oportunidade surgiu com a crise da Síria. Numa guerra civil extremamente cruel – como são sempre as guerras civis – as potências vizinhas resolveram travar aquilo que foi chamado de “guerra por procuração”. Ali, as potências regionais sunitas (Arábia Saudita, Turquia, Qatar) buscaram eliminar o risco do “Grande Arco Xiita” (formado pelo Irã, Iraque, Síria e Líbano), resolvendo de uma vez por todas (sob a desculpa de apoio a uma pretensa “Primavera” síria) as diferenças regionais e a hegemonia do poder sunita em todo Oriente Médio.
Para os EUA e Israel era uma oportunidade única para livrar-se da dinastia dos Al Assad, do risco que representam e do seu arsenal químico (“a bomba atômica dos pobres”, capaz de assustar Israel). Assim, desde as primeiras manifestações, espontâneas e legitimas de oposicionistas sírios, os serviços secretos da Arábia Saudita e do Qatar, trouxeram armas da Croácia – rescaldo das guerras da ex-Iugoslávia, fornecidas pelos EUA – e entregaram aos “rebeldes”. A Turquia passou a equipar e municiar uma “Exército Sírio Livre” e centenas de jihadistas da Al Qaeda (sunita) entraram no país e começaram uma tenebrosa série de ataques terroristas. O governo de Damasco respondeu com sua brutalidade usual. O resultado foi, até o momento, 100 mil mortos e três milhões de deslocados, refugiados dentro e fora da Síria.
Com o apoio do Hezbollah libanês (e xiita) e da Guarda Islâmica do Irã, Damasco retomou as iniciativas e começou a varrer, com violência, os rebeldes sírios e os jihadistas estrangeiros. Surgiram aí as denúncias, comprovadas por várias fontes, de uso de armas químicas. Gás sarin ao menos com certeza em alguns casos. Quem usou tal recurso cruel e desumano contra civis?
A ONU não consegue responder. O que sabemos? A Síria possui os estoques e os vetores, mísseis, necessários para sua utilização. Contudo, sabemos também que a Arábia Saudita transferiu armas químicas para os rebeldes em território sírio. Além disso, em 31 de maio de 2013, rebeldes jihadistas anti-Damasco foram presos na fronteira turca com dois cilindros de gás sarin, prontos para uso. Mas, é provável que ambas as partes tenham usado gás Agente 15, na batalha na cidade de Alepo. Enfim, é possível que comandantes militares sírios tenham usado gás sem autorização de Damasco, em meio à batalha; é possível que Damasco tenha usado em resposta a um ataque igual da Frente Al Nuzra (ligada a Al Qaeda) e que estes usaram o gás para provocar a intervenção ocidental.
De qualquer forma, Obama havia estabelecido uma “linha vermelha” e preparou-se, depois da morte de 1400 civis em Goutha, na madrugada de 21 de agosto de 2013 (por efeito de gás) para o ataque contra Damasco (considerado o único culpado). Foi então que deu-se o choque de realidade: o Parlamento britânico (o aliado umbilical) recusou-se a participar da nova guerra; a Alemanha, Itália e Espanha (envoltas em suas próprias dificuldades econômicas) recusaram qualquer ajuda. E a população norte-americana, pressionando a Câmara dos Deputados, mostrou-se radicalmente contra a proposta de guerra de Obama.
Havia o risco de um fiasco e de perder a face.
Restava, sempre, a França (onde o presidente “socialista” desaba em sua aprovação) e a Turquia. Mas, isso não bastava. Foi neste contexto que Moscou apoiou sua alavanca. Distribuiu informes sobre as armas químicas dos rebeldes e mostrou-se resoluta em condenar qualquer ataque ou direito de intervenção dito “humanitário (“RtoP”). No auge da crise, Vladimir Putin e Sergei Lavrov, chanceler russo, pegaram o inexperiente John Kerry pela palavra. Ao dizer, de público, que a Síria deveria abandonar as armas químicas, Moscou, de pronto, transformou a fala descuidada do secretário de Estado norte-americano numa proposta de negociação.
A diplomacia norte-americana paralisou-se. A Rússia mostrou-se como um “garantidor” da paz e retomou seu papel de mediação no Oriente Médio.
Enfim, péssimas notícias para o senhor Barack Obama,
Nota:
[1] Ver http://www.brookings.edu/research/articles/2013/06/17-drones-obama-weapon-choice-us-counterterrorism-byman
(*) Professor Titular de História Contemporânea/IUPERJ. Texto original em Carta Maior.