Em Gao, a população ajuda no controle do recebimento de itens básicos enviados por instituições humanitárias
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Minha missão não era um trabalho corriqueiro de reportagem, e sim uma empreitada que beirava o suicídio. Os batalhões da AQMI (Al Qaeda no Magreb Islâmico), cujos membros eu pretendia entrevistar, são conhecidos por sua brutalidade extrema, e também por considerar a todos nós como infiéis.
Há quase um ano, a AQMI controla o norte do Mali, quase dois terços da área total do país, um fato que causou grande preocupação à comunidade internacional. Viajando por um terreno acidentando e tortuoso, fui em cinco dias de Nouakchott, na Mauritânia, a Gao, no Mali. No caminho, eu pude ver os rostos dos combatentes da AQMI, os rostos imberbes de adolescentes que agora lutam pelo Ansar Dine, grupo radical islâmico afiliado à Al Qaeda.
Quando não estão nas atividades militares, os jovens combatentes do Ansar Dine frequentam a escola do Centro Ahmed Baba de Timbuktu para Estudos e Manuscritos, onde têm principalmente aulas religiosas. As paredes do centro estão repletas de estantes contendo milhares de valiosos manuscritos históricos, alguns dos quais abordando questões religiosas, e não necessariamente do ponto de vista do Ansar Dine — grupo que destruiu muitos dos mausoléus do Mali, alegando que eles estavam em conflito com a sua versão puritana do islamismo, e que suprimiu as organizações sufistas, chamando-as de ateias.
O jovem que me acompanhou na visita ao centro era um dos mais graduados comandantes do Ansar Dine em Timbuktu. Ele me assegurou que nenhum mal seria feito a esse centro de aprendizado. “Não vamos queimá-lo nem destruí-lo, embora tenhamos queimado mausoléus de homens santos muçulmanos. Esses eram ateístas e idólatras. Também destruímos o Portão da Ressurreição, na Mesquita de Sidi Yehia, que havia se tornado objeto de veneração equivocada. As pessoas comuns achavam que se essa porta ficasse aberta o mundo acabaria. Então abrimos a porta, a retiramos e construímos uma parede no seu lugar.”
Desde que o Ansar Dine tomou as outrora fervilhantes cidades de Timbuktu e Gao, mais de metade da população fugiu das suas casas para campos de refugiados em países vizinhos. As ruas pareciam abandonadas, as escolas governamentais fecharam, e me disseram que o Ansar Dine havia proibido qualquer tipo de ensino em francês.
O Ansar Dine manteve em funcionamento um colégio que antes era dirigido por sauditas. A escola agora leciona um currículo exclusivamente religioso. No entanto, o Ansar Dine também é hostil aos sauditas, e seus membros os colocam no mesmo saco que os outros inimigos: ateus, judeus e cristãos.
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Sharia
Talha, figura importante no Ansar Dine, manifestou a esperança de que a revolução síria tenha sucesso. Quando isso acontecer, os militantes islâmicos terão a oportunidade de se unir a seus irmãos na Jordânia, no Sinai e no Iraque, disse ele. A Arábia Saudita seria a próxima na lista das revoluções.
Talha faz uma distinção entre a família real saudita e a doutrina puritana à qual ela adere. Sua crítica aos governantes sauditas não se estende aos ensinamentos do wahabismo, a doutrina teológica oficial da Arábia Saudita.
Azawad, uma área de 800 mil quilômetros quadrados controlada por radicais islâmicos no norte do Mali, é rica em petróleo, urânio e ouro. A população, uma mistura de árabes e tuaregues, em geral é pobre, e suas crenças doutrinárias já eram relativamente puritanas antes mesmo do advento da Al Qaeda na região.
Iyad Ag Ghali, líder do Ansar Dine, começou como militante de esquerda, aderindo à Frente Popular para a Libertação da Palestina – Comando Geral, e lutando em suas fileiras durante a invasão israelense de 1982 no Líbano.
Os islamitas que agora controlam o norte do Mali têm sido capazes de recrutar jovens ávidos por lutarem em prol da sharia, ou lei islâmica, e também oficiais dissidentes do Exército malinês. Suas fileiras cresceram quando os Batalhões Gaddafi, formados pelo ex-líder líbio Muammar Gaddafi, foram dissolvidos e voltaram a Azawad, levando consigo centenas de veículos carregados de munições e armas leves.
Os sinais de agitação em Azawad começaram no final de 2010, quando Mohamed Lamine Ould Ahmed, subsecretário-geral do Movimento Popular para a Libertação de Azawad, começou a organizar ações com o objetivo de fazer valer os direitos dos habitantes do norte do Mali. Os nortistas, compostos em sua maioria por árabes e tuaregues, queixavam-se de discriminações por parte dos sulistas, os dominadores negros do vasto país africano.
Manifestações
Em 30 de outubro de 2010, uma conferência juvenil foi realizada na prefeitura de Timbuktu para discutir oportunidades de desenvolvimento e formas de elevar o nível de vida. A conferência propôs a formação de um movimento para defender a população de Azawad. O Movimento Popular para a Libertação de Azawad foi formado uma semana depois, e posteriormente ganhou a adesão de ativistas de Menaka, no leste do país.
Um comandante local disse que durante a rebelião em Azawad, “começamos a colher doações e informações sobre quartéis militares e contratos empresariais, na esperança de usá-los para obrigar o governo a cuidar melhor da região de Azawad”. Mas o governo ignorou as reivindicações, e os manifestantes tornaram-se mais ativos.
Depois, as milícias começaram a propor a independência e uma retirada do exército malinês. A resposta do governo foi reforçar sua presença militar na região, então os ativistas decidiram pegar em armas.
“Decidimos reunir um mecanismo para recolher armas, criamos campos de treinamento e abrimos escritórios de recrutamento. Cerca de 450 rapazes se alistaram no primeiro mês, e receberam treinamento no Quartel Zakal”, segundo o comandante. “Então contatamos Ibrahim Ag, que tinha um bem treinado batalhão de 340 homens equipados com armas novas, e ele concordou em nos auxiliar.”
Negociações
Depois da morte de Ibrahim em um acidente durante o Ramadã de 2011, os militantes islâmicos do norte do Mali começaram a contatar oficiais do Exército malinês, e alguns deles concordaram em aderir ao movimento. A eles se juntou um grande número de combatentes que haviam voltado da Líbia após a queda do regime de Gaddafi. Entre os que regressaram da Líbia estavam comandantes experientes, como Mohamed Najm, que foi nomeado líder militar.
De início, a presença da Al Qaeda no movimento não estava clara, “nem mesmo para os militantes que participaram da rebelião que levou ao controle da região de Azawad e de Timbuktu”, disse-me um comandante graduado.
“Só descobrimos que a Al Qaeda estava presente depois que já havíamos entrado nas principais cidades. A frente árabe sob a liderança de Ahmed Ould Sidi Mohamed participou da libertação de Timbuktu. Só tivemos a sensação de que o Ansar Dine estava afiliado à Al Qaeda depois que Iyad Ag Ghali declarou a implementação da sharia na região”, disse o comandante.
Os militantes então começaram a negociar com dignitários locais, incluindo Abbas Entala, Sidi bin Bella e o ex-deputado Mohamed Ibrahim, a respeito da introdução de um regime islâmico do tipo mauritano. Foi então que os radicais do Ansar Dine exigiram uma forma mais rigorosa de islamismo.
Hoje, há negociações em andamento entre os vários grupos no controle do norte do Mali, não só acerca de questões sociais e de desenvolvimento desencadeadas pela primeira rebelião, mas também a respeito da identidade cultural da região.
Tradução por Rodrigo Leite
* Texto publicado originalmente no jornal Al-Ahram Weekly
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