No programa 20 MINUTOS ANÁLISE desta terça-feira (08/02), discorri sobre o fracasso da “geringonça” portuguesa, ocorrido no último dia 30 de janeiro, quando o Partido Socialista conquistou maioria absoluta nas eleições parlamentares.
O nome faz referência à aliança surgida em 2015 entre o PS, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista Português que deram sustentação ao governo do premiê socialista António Costa. A “geringonça” era surpreendente, considerando que desde os primeiros anos da Revolução dos Cravos, ocorrida em abril de 1974, a esquerda anticapitalista vivia em conflito com os socialistas.
Nem o Bloco nem o PCP, por esse pacto, participariam do governo, indicando ministros, mas aprovariam leis e medidas previstas em uma detalhada negociação programática, pela qual os socialistas se distanciaram relativamente das políticas neoliberais. Porém, em 2019 começaram a surgir divergências e o acerto programático deixou de existir, apesar de permanecer certa confluência parlamentar. Finalmente, no final de 2021, o Bloco e o PCP, junto aos partidos de direita, “chumbaram” o orçamento proposto pelo primeiro-ministro.
As duas legendas acusaram os socialistas de concessões ao neoliberalismo, especialmente por se recusarem a aumentos mais vigorosos do salário mínimo e das verbas para o Sistema Nacional de Saúde, contrariando o pacto de 2015. Com a derrota do orçamento, as eleições foram antecipadas pelo presidente da República, de 2023 para o início de 2022.
O PS, dessa vez, conquistou maioria absoluta, com 117 deputados sobre 230, e poderá governar sozinho por quatro anos. O Bloco de Esquerda e o PCP sofreram uma duríssima derrota, com o primeiro caindo de 19 para 5 deputados e o segundo de 12 para 6.
O resultado é certamente preocupante, a queda foi dramática, de ambos partidos. Mas quem poderia garantir que essa mesma queda não viesse a ocorrer em 2023, para quando estavam marcadas as eleições corriqueiras, talvez com dificuldades ainda maiores?
Agora, à esquerda, como têm dito dirigentes do Bloco e do PCP, o que cabe é luta de massas para pressionar o governo socialista em favor das reivindicações populares, paulatinamente preparando o terreno para, uma vez mais, tentar romper a bipolaridade entre os partidos neoliberais.
Polarização PSD e PS
Para entender como o cenário político português chegou a este ponto, precisamos retroceder à polarização permanente entre o bloco liderado pelo PSD, antigamente denominado Partido Popular Democrático, representando a direita neoliberal; e o outro o PS, de centro ou centro-esquerda, defensor de mecanismos sociais compensatórios dentro do modelo neoliberal e de integração à União Europeia.
Essa bipolaridade foi fruto da derrota sofrida pelo processo revolucionário em curso entre 1974 e 1975. Como é sabido, em 25 de abril de 1974 a longa ditadura salazarista foi derrotada pela Revolução dos Cravos, através de uma rebelião militar apoiada pelos setores populares organizados. Nos primeiros meses pós-revolução, a ala direita do Movimento das Forças Armadas (MFA), liderada pelo general Antônio de Spínola, comandou o processo, mas sob muita pressão da esquerda civil e militar.
Essa pressão era tão poderosa que levou à nomeação, como primeiro-ministro do governo provisório, em julho de 1974, do coronel Vasco Gonçalves, muito próximo aos comunistas. Sob sua liderança, foram aprovadas medidas de estatização dos bancos e grandes empresas, reforma agrária, construção de sistemas públicos de saúde e educação, fim da guerra colonial na África.
Reprodução/FlickrPCP
Agora, à esquerda, o que cabe é luta de massas para pressionar o governo socialista
Spínola, porém, buscava de todas as maneiras sabotar e deter o processo revolucionário, inclusive liderando um golpe de Estado que fracassa e após o qual o governo de Vasco Gonçalves se fortaleceu, em um primeiro momento. Paralelamente, porém, ocorreu, uma divisão interna no MFA.
Enquanto os comunistas seguiam como a principal força de sustentação civil do governo Vasco Gonçalves, os socialistas se transformam na principal corrente contrarrevolucionária, associada aos militares mais à direita, à Casa Branca, aos capitalistas portugueses e a social-democracia europeia.
Com uma correlação de forças desfavorável, Vasco Gonçalves acaba sendo demitido, levando a uma onda de protestos e greves que rapidamente se refletiu nos quartéis. Em novembro de 1975, um clima insurrecional se estabelece, mas com as organizações populares e os próprios comunistas surpreendidos pela movimentação sob a batuta de grupos considerados de ultraesquerda.
A desorganização e a falta de unidade acabariam sendo fatais. O processo revolucionário acaba derrotado e nas eleições para Assembleia Constituinte, em abril do ano seguinte, os comunistas fazem apenas 15% dos votos, os socialistas chegam a 35%. Os principais partidos de direita, PSD e Centro Democrático Social, passariam dos 40%, o primeiro com 24,3% e o segundo com 16%.
Desde então, e até hoje, o palco principal da cena política portuguesa estaria ocupado pela disputa entre dois grandes partidos do bloco que enterrou a Revolução dos Cravos, o PSD (então PPD) e o PS, se alternando tanto no comando do governo quanto na Presidência da República.
A ‘geringonça’
Com a crise mundial do capitalismo, detonada em 2008, a situação econômica e social de Portugal tornou-se alarmante, provocando forte desgaste dos partidos principais, PS e PPD, vinculados a distintas versões de políticas neoliberais.
Nas eleições legislativas de 2015, nenhum partido obtém maioria para governar sozinho. O PS alcança 32,3% e 86 das 230 vagas parlamentares e vê a oportunidade de governar com uma aliança com o Bloco de Esquerda, com 10,19% dos sufrágios e 19 assentos, mais o PCP, com 8,25% da votação e 17 deputados.
Nesse contexto surge uma proposta que poderia contentar aos interesses das forças de esquerda e centro-esquerda, ao menos no curto prazo: um acordo programático e legislativo sem participação no governo.
O PS teria maioria parlamentar sem precisar convidar ministros que contrariassem os vínculos socialistas com o grande capital e a direção da União Europeia, mesmo cedendo a certas medidas bastante mais progressistas que seu programa tradicional.
O PCP e o Bloco de Esquerda, por sua vez, poderiam alterar sua política de conflito contra os socialistas de forma relativamente amena, porque não estariam no governo e teriam a apresentar, à sua base social e eleitoral, avanços programáticos contra o modelo neoliberal, além do argumento de terem tido flexibilidade para impedir um novo governo de direita.
As eleições de 2019 mostraram que a aposta dos socialistas estava sendo mais frutífera que a do PCP e do Bloco de Esquerda, no entanto.
O PS saltou de 32,30 para 36,34% dos votos, de 86 para 108 cadeiras. O Bloco de Esquerda continuou com suas 19 posições de 2015, mas decaindo de 10,20% para 9,50% dos votos. Os comunistas, por sua vez, perderam cinco de seus 17 parlamentares das eleições anteriores, descendo de 8,25% para 6,30% dos votos.
Aparentemente, o PS realmente recuperava parte de seu eleitorado progressista. A esquerda, por sua vez, além de assistir o retorno de eleitores tradicionalmente socialistas ao antigo partido, também perdia seus sufragistas mais radicais e eurocéticos, em especial no caso do PCP, sempre muito crítico à União Europeia. Supõe-se que uma fração desse voto eurocético perdido pelo PCP, ao se aliar com os socialistas europeístas, tenha migrado diretamente para a extrema direita.
Esse cenário, o de 2019, já fez o PS esvaziar a “geringonça”, evirando um acordo programático como o de 2015. Manteve algo como um pacto de boas intenções com o PCP e o Bloco de Esquerda, mas sem compromissos mais diretos.
Com sagacidade, Antônio Costa foi se dando conta que estava diante de um duplo benefício: o bônus pelo sucesso das políticas sociais da “geringonça”, especialmente durante a pandemia, e o fantasma do crescimento da extrema direita, que poderia servir de impulso ao voto útil nos socialistas caso as eleições viessem a ser antecipadas.
Nessas circunstâncias, o governo mandou à Assembleia da República um orçamento para 2022 que representava forte retrocesso em relação aos planos anteriores e uma provocação ao PCP e ao Bloco de Esquerda, especialmente porque impedia um aumento mais significativo do salário mínimo e de verbas para a saúde, além de outros serviços públicos.
Além disso, a postura de Antonio Costa foi deixar público e claro que não haveria qualquer negociação: era pegar ou largar. Ou o PCP e o Bloco de Esquerda se submetiam aos socialistas, votando a favor de um orçamento que poderia danificar sua identidade programática e ideológica, ou se juntavam à direita e levavam Portugal à antecipação das eleições previstas para 2023.
O secretário-geral do PCP, Jerônimo de Sousa, denunciou essa postura como uma “chantagem” do PS, que deixaria comunistas e o Bloco de Esquerda diante de uma escolha de Sofia: virar um “puxadinho” dos socialistas ou serem eleitoralmente penalizados pelo risco de retorno da direita ao governo, ou até pelo crescimento da extrema direita.
O Partido Socialista, além da manobra para forçar a antecipação eleitoral, utilizou com muita sabedoria e intensidade o apelo ao voto útil, convocando os eleitores a impedir o retorno da direita e acenando com o risco do Partido Social-Democrata (principal oposição de direita) vir a formar uma aliança de governo com o ultranacionalista Chega e a Iniciativa Liberal.