No programa 20MINUTOS HISTÓRIA desta terça-feira (13/09), o jornalista Breno Altman discorreu sobre a percepção que se tem de que a esquerda brasileira perdeu combatividade, inserção social e identidade ideológica, principalmente no que diz respeito ao Partido dos Trabalhadores.
Altman apontou para a contradição de ter uma esquerda eleitoralmente competitiva, mas frágil do ponto de vista da mobilização social, organização do povo, disputa ideológica e batalha cultural. Segundo ele, existem quatro motivos que explicam essa situação.
O primeiro deles é o colapso da União Soviética e a longa defensiva das ideias socialistas em escala mundial. O jornalista explicou que a URSS marcava a construção de uma nova civilização que mobilizava a luta da classe trabalhadora. Sua derrocada “quebrou a moral da esquerda e empurrou muitos setores à domesticação”.
“Nesse contexto, não caberia mais a esquerda ser portadora de um novo projeto civilizatório, supostamente tornado inviável. O limite seria se constituir como uma espécie de braço esquerdo do capitalismo, buscando reduzir danos e conquistar avanços dentro da ordem burguesa”, reforçou.
O segundo motivo identificado pelo jornalista foi “a substituição teórica do marxismo por variáveis de social-liberalismo”, consequência da queda da URSS e da adaptação da esquerda ao sistema.
“O recuo teórico iria acompanhar a domesticação ideológica. [Karl] Marx seria substituído por [Immanuel] Kant na filosofia e por [John Maynard] Keynes na economia. [Vladimir] Lênin daria lugar a um [Antonio] Gramsci depurado de sua essência revolucionária ou até a um Norberto Bobbio, entre outros luminares atrás da confluência entre socialismo e liberalismo. A esquerda renunciava às suas armas teóricas e políticas mais poderosas, cujo principal arsenal estava no marxismo e no leninismo”, discorreu.
O terceiro fator diz respeito à institucionalização excessiva dos partidos de esquerda, do sindicalismo e dos movimentos sociais, resultado dos fatores anteriores.
“A ilusão com o processo institucional era tão grande que não houve um esforço real de aumentar exponencialmente a educação, a organização e mobilização do povo, preparando uma muralha de resistência contra o golpismo burguês. Acabou por ganhar influência crescente um espírito acomodatício, de gabinete e ar-condicionado, longe do povo e de seus problemas, de suas angústias e lutas”, ponderou Altman.
Desse cenário teria nascido o quarto motivo do amansamento: a burocratização dos dirigentes.
“Muitos quadros passaram a ter altos salários e cargos cheios de benefícios, não apenas nos governos como também na estrutura partidária e sindical. Foi-se criando uma base material, de interesses materiais, para que muitos dirigentes quisessem qualquer coisa menos instabilidade, novidade ou risco”, ponderou.
‘Normalização’ do PT
A partir desses quatro motivos, o jornalista explicou como eles levaram à “normalização” do PT, inicialmente um “poderoso movimento de rebelião social” forjado pelas greves da classe trabalhadora em plena ditadura.
Brenda Balieiro/ Mídia Ninja
‘Mas o legado que vem desde a queda da URSS não será ultrapassado de uma hora para outra’, disse Altman
Altman relembrou que, ao contrário de outros partidos de esquerda da época, após a derrota das Diretas Já, a legenda decidiu boicotar o colégio eleitoral e construir uma via política independente para a classe trabalhadora, permitindo que, a partir de 1989, o petismo assumisse protagonismo político.
“Mas a partir dos anos 90, o PT sofreu com o colapso soviético e a perda de influência das ideias marxistas. Começaram a ganhar força, dentro do partido e em suas cercanias, posições que retiravam de cena o objetivo estratégico do socialismo e defendiam a incorporação de uma variável reformadora do liberalismo, que se contrapunha à tradição marxista da luta de classes, do poder popular e da perspectiva revolucionária”, apontou.
Ele contou que, nos anos 80, especialmente por conta da “estratégia democr´åtica e popular” formulada pelo V Encontro Nacional do PT (1987), os objetivos políticos eram a conquista eleitoral da Presidência da República e o estabelecimento de um governo capaz de realizar reformas democráticas, antimonopolistas, anti-imperialistas e antilatifundiárias. O novo cenário local e internacional, entretanto, a partir dos anos 90, levaria essa linha a sofrer fortes adaptações, admitindo alianças mais amplas para chegar ao Planalto, “o que impunha um programa mais moderado”.
Se por um lado isso levou o PT à vitória em 2002, por outro, “a moderação que teria contrapartida uma moderação simétrica das classes dominantes” não ocorreu.
“Representou arrefecimento da mobilização popular, evasão de enfrentamentos mais agudos, renúncia à disputa de hegemonia nas instituições não-eletivas do Estado (como o sistema de justiça e as Forças Armadas) e concentração nas tarefas administrativas de governo”, destacou Altman.
Segundo ele, a “ideia-força” era que as conquistas sociais e econômicas dos governos Lula e Dilma deveriam ser abordadas dentro de uma espécie de relação entre fornecedor, o governo, e a clientela, o povo, “que saberia retribuir nos momentos eleitorais”.
“Essa excessiva institucionalização desorganizou as redes partidárias e as afastou dos territórios sociais, estatizou o sindicalismo, retirou viço dos movimentos populares e despolitizou a esquerda”, reforçou.
Análogo a esse processo, a partir de 2002, uma parte expressiva dos dirigentes partidários, populares e sindicais assumiria cargos no Estado: “A institucionalidade passava a ser o polo dinâmico da atividade política de esquerda”.
“Além disso, muitas pessoas se aproximaram do PT e do PCdoB, partidos de esquerda que estavam nos governos Lula e Dilma, por puro oportunismo, sem qualquer identidade política ou ideológica, apenas para usufruir das vantagens de ser governo. E não havia filtros e contenções para deter esse movimento de falsa ampliação, que na verdade era corrosivo da coerência e da vitalidade de esquerda”, refletiu.
De acordo com Altman, esse processo de apaziguamento não danificou o apoio eleitoral ao petismo, mas retirou potência em sua capacidade de enfrentamento social.
Com o golpe de 2016, porém, “todo esse complexo sistema de cooptação e amansamento veio abaixo, a própria linha política passou a ser criticada e veio sofrendo retificações”.
“Mas o legado maligno, que vem desde a queda da União Soviética, não será ultrapassado de uma hora para outra. Exige tempo e dedicação. Uma verdadeira revolução cultural que envolva partidos de esquerda, o sindicalismo e os movimentos populares”, concluiu.