No programa 20 MINUTOS ENTREVISTAS desta sexta-feira (27/08), o jornalista Breno Altman entrevistou o padre Júlio Lancellotti, da Paróquia de São Miguel Arcanjo em São Paulo, conhecido por sua solidariedade e ativismo junto à população de rua, principalmente durante a pandemia.
Segundo ele, o perfil das pessoas que vivem na rua mudou, apontando para um aumento significativo durante a pandemia: “hoje há um número grande de jovens, mulheres com crianças e grupos familiares que perderam tudo”.
Ele explicou que o empobrecimento da capital paulista começou a ser visível a partir do golpe contra Dilma Rousseff, mas que a situação agora ficou ainda mais dramática, “voltou a fome, há falta de moradia, falta comida e falta trabalho”. Lancellotti ressaltou que cerca de 70% dos moradores de rua com os quais teve contato possuíam experiência profissional prévia, com registro em carteira, e provinha dos setores de prestação de serviço, alimentação e construção civil.
“Quando acabam numa situação de rua, essas pessoas ficam muito perdidas. Buscam respostas, mas elas são muito institucionalizadas, burocráticas, não levam em consideração a autonomia das pessoas, não cabe a diversidade, não cabem animais, não cabem a família…”, criticou.
O padre denunciou que as medidas emergenciais têm sido insuficientes e muitas não levam em consideração as particularidades da população de rua, “que tiveram dificuldade no acesso ao auxílio”.
“No início do auxílio emergencial, recebiam os dados todos por SMS. Os moradores de rua não têm celulares que baixem aplicativos, com 3G ou 4G ou que consigam acessar wi-fi. Então não tinha condições. Foi preciso fazer muita pressão para que alguns pudessem se qualificar para receber o auxílio emergencial”, lamentou.
Além disso, de acordo com Lancellotti, a atenção dada pelo sistema de assistência social do governo não era humanizada, não levava em consideração a situação de famílias ou de mulheres com crianças.
“Entramos com um processo para disponibilizar leitos de hotéis para a população de rua, como aconteceu em Londres, em Nova Iorque e outros lugares. Recomendaram que fossem disponibilizados oito mil leitos, mas não conseguimos nem mil e todos eram para homens com mais de 65 anos. Eles precisavam desses leitos, mas os moradores de rua não são só homens”, exemplificou.
O padre propôs soluções em escala menor, como residências terapêuticas, repúblicas e locações sociais, que acolham a diversidade e levem em consideração a autonomia dos moradores. “Nos centros de acolhida tem cama numerada, hora para entrar, hora para sair, para comer, para tomar banho…tutela a pessoa”, destacou.
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Padre afirmou que pandemia levou jovens, mães solteiras e famílias à situação de rua
Resultado do neoliberalismo
O padre Lancellotti contou que o trabalho realizado é feito tanto com a participação de organizações sociais como de indivíduos que se dispõe a ajudar. Ele revelou que a questão mais emergencial não foi nem arrecadar alimentos, mas conseguir máscaras, álcool em gel, sabonetes e água potável para que os moradores de rua pudessem se proteger do vírus.
“A alimentação e o vestuário são instrumentos de aproximação, para romper com a invisibilidade da pessoa em situação de rua, mas não são a finalidade. Nós precisamos olhar para essas pessoas para ver quais são as respostas que devemos dar”, ponderou.
Nesse sentido, o padre criticou a política de forma geral, “não é solidária, é seletiva e meritocrática, faltam respostas mais universais de proteção social para evitar situações deploráveis e desumanas em que não se tem acesso nem a água potável”.
Para ele, esse cenário de desumanização da população mais frágil é resultado do neoliberalismo: “Essa população faz parte do descartado e o neoliberalismo tem a lógica do descarte”.
Por isso, diante de um novo governo de esquerda, Lancellotti disse que o Estado teria de ser reinventado, pois o sistema atual serve ao neoliberalismo sendo, portanto, incompatível com um governo que queira atender às necessidades do povo.
“Precisamos de uma estrutura menos compartimentalizada, mais integrada. Vemos uma compartimentalização das secretarias do trabalho, de assistência social, da saúde e estão todas trabalhando com a mesma coisa. Podíamos ter uma de locação social, que garantisse moradia, e uma de proteção social, que garantisse saúde, alimentação e autonomia”, sugeriu.