Há um tempo, tive uma discussão com uma pretensa candidata de perfil liberal a algum cargo eletivo em SP e que também é integrante do “RenovaBr”, salvo engano (perdoem, costumo confundir os nomes desses novos movimentos parapartidários, talvez fosse do “Acredito”, vai saber).
A moça questionava a esquerda por “não se importar” com as violações de direitos humanos praticadas por criminosos.
Dá um certo desespero entrar em discussões cujos termos estão tão equivocados e perceber que “os direitos humanos da vítima”, por mais estapafúrdia que seja a noção, é um discurso vitorioso.
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Agora, tive notícia de que esta mesma noção chegou à esquerda, numa forma também muito manjada, que é a crítica à “ausência de formulação propositiva” ao campo da segurança pública.
Há um problema de partida aí que é a esquerda ter parado de questionar o que significa “segurança pública”, adentrando um campo de batalha cuja derrota é certa se tomarmos a própria formação do campo como pressuposto consensual.
Não existe “segurança pública” como sinônimo das boas intenções de vocês. Segurança pública sempre foi e sempre será polícia. Sempre foi e sempre será uma estratégia de controle social. Sempre foi e sempre será a invenção de um inimigo interno, sem o qual a própria noção de segurança implode. Não existe “segurança pública” sem “o traficante”, “o terrorista”, “a organização criminosa”, “a facção”. E aqui não é questão de perguntar quem vem antes, o ovo ou a galinha: a noção de segurança pública vem antes. Ela inventa “a violência urbana” e seus inimigos.
Wikicommons
Não existe ‘segurança pública’ como sinônimo das boas intenções de vocês; segurança pública sempre foi e sempre será polícia
Isso não quer dizer que a violência não exista: a morte, o estupro, o roubo. Mas que categoria “violência urbana” é um recorte sobre as violências. Ora, violência, para mim, também é água podre saindo da torneira, são milhões de pessoas sem esgoto, outro tanto passando fome. Violência, para mim, são ainda essas estatísticas capazes de relacionar homicídios até com a cor da roupa da minha mãe, mas incapazes de relacionar homicídios e tráfico de drogas para sabermos, enfim, quanto o proibicionismo mata diretamente, tanto nas chamadas “guerras de facções”, quanto nos “confrontos com a polícia”. Afinal, não é à toa que o grosso da população não entende letalidade policial como violência, não é mesmo?
Mas nem o saneamento, nem a água podre, nem as intrigantes planilhas com notáveis ausências, NADA disso entra na categoria “violência urbana”. Logo, pessoalmente, eu não aceito a categoria complementar de “segurança pública”, principalmente quando uma parte da esquerda acha razoável, depois de aceitá-la mansamente, inflacionar esta categoria com saúde, educação, moradia. A segurança pública inflacionada com saúde é polícia médica. Inflacionada com moradia é polícia habitacional. Inflacionada com educação é polícia pedagógica. Continuem no projeto “polícia total” de vocês, eu estou fora.
Voltando à discussão sobre direitos humanos, a gente precisa assentar uma coisa: não existem direitos humanos da vítima. Quando uma pessoa ou uma “facção” mata, estupra, rouba, esquarteja, liga o “microondas”, tortura, este indivíduo ou grupo comete crime. Ou seja, um comportamento descrito em lei para o qual se prevê uma sanção que, aliás, não costuma ser branda. São anos e anos e anos de cadeia.
Em outras palavras, “os direitos humanos da vítima”, a proteção que se espera e se invoca por meio deles, é o próprio direito penal.
Desenhando: crime = pena = “direitos humanos da vítima”.
A demanda por direitos humanos, portanto, aplica-se apenas em direção ao Estado. Seria, digamos assim, quando o Estado descumpre a lei e comete crime: a isto nós chamamos de “violação de direitos humanos”.
Claro que tem um problema aí. Nesta noção profundamente liberal do que sejam direitos humanos, eu fico impossibilitada de chamar o Estado de criminoso. No entanto, ela impede também que qualquer pessoa com mínimo de dedicação ao tema e boa fé, suscite algo como “violação de direitos humanos pelas facções”. Facção não viola direitos humanos, facção comete crime. Se alguma noção tem que ceder é a favor da possibilidade de chamar o Estado de criminoso, de facção, não o contrário!
Eu sempre penso essa noção de direitos humanos liberal como um muro de contenção. Enquanto esquerda, minha aposta é que ou este muro avança sobre o campo ou, na pior das hipóteses, fica onde está. Recuar e incorporar “direitos humanos da vítima” porque existe uma “demanda popular” à moda Datena NÃO É ACEITÁVEL. Pelo menos não enquanto a “demanda popular” for forjada sobre as noções de “violência urbana” e “segurança pública” que, vejam vocês, são produzidas por uma intelligentsia que ora se situa nas cátedras das universidades, ora nos conglomerados de mídia, ora na própria esquerda, absolutamente todos(as) falando em “nome do povo”.