Nas últimas semanas, com as dramáticas e históricas queimadas na Amazônia e sua gestão desastrosa por parte do governo Bolsonaro causando amplas derramações internacionais, vários brasileiros indignados bateram palmas em reação às saídas do presidente Francês Emmanuel Macron.
Macron destacou-se ao assumir uma postura de destaque em relação à preservação da floresta Amazônia e principalmente à postura mentirosa do governo brasileiro que chegou inicialmente a tratar os incêndios de fake news.
O caso ganhou ainda maior repercussão após as respostas de Bolsonaro o tratando de idiota e insultando sua esposa, dando ainda mais fôlego às polêmicas. Mas por trás das invectivas, é preciso esclarecer quais as razões que levaram à essa atuação por parte de Macron, no meio do verão europeu que alcançou mais uma vez os recordes de temperaturas devido aos efeitos do aquecimento global e poucos dias antes de receber o G7 na França.
Muitos enganos diplomáticos
Antes de tudo é preciso relembrar que o Brasil é o principal parceiro comercial da França na América Latina, com mais de 30 bilhões de reais em quantidade de negócio e 900 empresas francesas implantadas (como Engie, Total, Carrefour, Lactalis). O crescimento da concorrência chinesa tem preocupado muito a França que teme que a crise econômica e hoje também politica no Brasil, afaste alguns investidores franceses ou desfavoreça ao crescimento das empresas já presentes.
Por outro lado, o Brasil tornou-se um parceiro pouco frequentável para França. Em seu comunicado após a vitória de Bolsonaro nas eleições de 2018, Macron fez questão de frisar o “respeito e a promoção dos princípios democráticos” no âmbito da defesa da paz e do meio ambiente com um dos eixos principais que a “França aplicar-se-á a zelar em sua relação com Brasil”.
E foi assim que em novembro de 2018, no G20 de Buenos Aires, Macron afirmou que não assinaria o acordo de livre comércio Europa – Mercosul se o Brasil saísse do Acordo de Paris sobre o Clima. Grande jogada diplomática porque o acordo em si não dispõe de condições vinculantes o que não impediria o Brasil a permanecer no acordo e continuar descumpri-lo, como ele faz atualmente.
A partir desse momento, a principal missão da diplomacia francesa no Brasil foi trabalhar para que o Brasil não saísse do Acordo de Paris, permitindo que a restrição posta por Macron seja levada e o tratado de livre comércio aprovado. Vários encontros de alto nível aconteceram então no primeiro semestre de 2019: um encontro de negócios França-Brasil no Ministério francês das Finanças em junho, com a presença do então ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência, Carlos Alberto dos Santos Cruz; um encontro bilateral na França no mesmo período entre o ministro Ernesto Araújo e seu homólogo Jean-Yves Le Drian; seguido no final de julho pela vinda do próprio Le Drian ao Brasil. Viagem que aconteceu pouco tempo depois do encontro no G20 de Tokyo entre Macron e Bolsonaro onde esse último sinalizou finalmente que permaneceria no acordo, permitindo assim à Macron de afirmar que se tratava afinal de “um bom acordo”.
Mas esses meses de negociação capotaram com a humilhação sofrida pelo ministro francês que viu seu encontro com Bolsonaro cancelado por causa de uma agenda urgente no… cabeleireiro. Grande erro diplomático por parte da França que apostou mais do que deveria em sua capacidade de convencimento na negociação brasileira, sem avaliar devidamente a imprevisibilidade e o total descompromisso de Bolsonaro com a pauta ambiental.
Foi assim, que às vésperas do G7 e pressionado por amplos setores da sociedade civil internacional e agricultores franceses que estavam denunciando há meses a hipocrisia de Macron com a pauta ambiental e agrícola, o presidente francês transformou essa humilhação em reviravolta a seu favor, procurando incorporar as trajes do defensor mundial da floresta Amazônia com o pretexto que Bolsonaro havia traído seus compromissos.
Wikicommons
Macron transformou essa humilhação em reviravolta a seu favor, procurando incorporar as trajes do defensor mundial da floresta Amazônia
Amazônia está queimando e os responsáveis estão no G7
Muito falou-se dos erros geopolíticos de Macron, quando pronunciou a frase “nossa casa está queimando” usando uma instância onde o Brasil não sedia para tratar do que ele considerou ser uma “crise internacional”. Como descreveu a cientista política Laurie Servières, mesmo a Floresta Amazônica sendo considerada um bem comum e patrimônio mundial da humanidade, isso não tem tradução concreta no direito internacional, à diferença dos oceanos por exemplo.
Bolsonaro aproveitou a brecha para denunciar a ingerência francesa sobre a soberania brasileira. Mas isso tampouco criou muita credibilidade na boca do presidente que mais ofereceu vantagens para os Estados Unidos, a começar por uma porção de seu próprio território estratégico na base espacial de Alcântara.
Apesar da fala infeliz de Macron, a opinião brasileira progressista continuou considerando positiva a atuação do francês. Mas quase não se falou do pano de fundo que a França tem a esconder quando se trata de meio ambiente na Amazônia.
Um relatório publicado recentemente pela organização internacional Fern mostrou que atualmente 74% da carne bovina importada pela União Europeia vem do Mercosul e em grande parte do Brasil, oriunda de regiões de desmatamento. Apesar das empresas do agronegócio serem brasileiras, sua produção não poderia se manter sem a participação de grandes capitais ocidentais que contribuem com empréstimos e investimentos colossais. O relatório mostra que o valor total dos empréstimos e serviços oferecidos pelos bancos europeus às fazendas brasileiras entre 2011 e 2014 chega a quase 1 bilhão de dólares.
Ainda é preciso frisar que, segundo levantamento feito pelo portal De Olho nos Ruralistas, a multinacional Parmalat, inicialmente italiana mas controlada pela francesa Lactalis desde 2011, lidera as dívidas das empresas de agronegócio com a União Brasileira, com 67,7 bilhões de reais em débito ou 33% de toda dívida do agronegócio no Brasil.
E não há só interesses agrícolas. No final de 2018, o diretor no Brasil da sociedade francesa Engie, Gil Maranhão, que lidera o mercado privado de energia no país, participou de uma iniciativa junto com 40 empresas no Congresso para influenciar a flexibilização da lei de demarcação indígenas oferecendo que os índios afetados por empreendimentos hidroelétricos recebam um percentual das receitas das novas centrais podendo também se “sentir parte do negócio” e aplicar o valor em áreas de seus interesses.
Por fim há de lembrar que a França tem territórios na Amazônia (a Guayana) onde as condições ambientais não são tão melhores que no Brasil. A população indígena também reclama direitos e reconhecimentos ancestrais e a destruição do solo para atividades de mineração é importante. Macron apoiou desde 2015 então ministro da Fazenda, uma mega-mina de ouro, a “Montanha de ouro”, a maior mina de ouro mais construída no território francês, que foi amplamente denunciada pela população e organizações da sociedade civil. Enquanto em 2017 o ministro do Meio Ambiente defendia que a França abandonaria qualquer extração de hidrocarboneto no território, a “Montanha de ouro” continuava nos processos de licenciamento ambiental. Foi só em maio deste ano, quando a pauta ambiental ganhou fôlego no âmbito das eleições europeias que a porta-voz do governo anunciou que o projeto seria suspenso.
Florence Poznanski é ativista da mídia democrática no Brasil e dirigente nacional do Parti de Gauche/França Insubmissa (França)