Se já era arriscado escrever sobre os conflitos na Ucrânia antes da concretização da invasão pelas forças armadas russas, agora se tornou ao mesmo tempo necessário e imprudente. No que apenas uma grande generosidade pode chamar de “debate” brasileiro sobre o tema, manifestar-se fora do bumbo de uma das torcidas organizadas é brincar de pianista em tiroteio de saloon, ou adequando a imagem, de jornalista em Kiev.
Por medida de segurança (ops.) talvez valha começar por um reconhecimento que o Conselheiro Acácio não teria dificuldade em subscrever.
Vladimir Putin é um autocrata, formado na KGB, homofóbico, machista e convencido de que sua missão histórica é recuperar a grande Rússia das humilhações e ameaças a quem vem sendo submetida desde a debacle gorbacheviana.
Não deveria ser difícil assumir que isso não significa que Biden, a troika ou os burocratas da OTAN sejam cidadãos de bem comprometidos em levar os benefícios da liberdade e da democracia a todo o planeta.
Ou que as humilhações e ameaças do parágrafo acima não sejam reais, com independência do uso retórico –e político- que Putin obviamente faz delas.
A revista alemã Der Spiegel, que está longe de esquerdismo, recuperou na semana passada documentos vazados pelo Wikileaks em que diplomatas britânicos confirmam que Gorbachev recebeu garantias formais de que a unificação da Alemanha não implicaria a expansão da OTAN para a antiga área de influência soviética. Desde então, como se sabe, já foram cinco as rodadas de ampliação da organização entre países da antiga União Soviética ou da chamada cortina de ferro.
Isto posto, o “debate” continua, na melhor das hipóteses, muito rarefeito. Porque o acesso à informação qualificada é muito difícil e disponível sobretudo em língua estrangeira. Porque a cobertura da mídia brasileira não é apenas parcial, mas capaz de cometer toda e qualquer atrocidade lógica ou chegar à grotesca atitude de interromper e tirar do ar um convidado cuja fala não confere com o script dos patrões.
A desmoralização chegou a tal ponto que um novo vocábulo está criado no dicionário das redes, a jorgepontualização, o que talvez seja injusto ao deixar em segundo plano a contribuição chacriana.
Adam Schulz/White House
Biden: mais pato e mais manco do que nunca
Até aí poderíamos dizer que segue o quartel de Abrantes. O pior é reconhecer que no país de Milton Santos, somos majoritariamente ignorantes das relação entre geografia e história; que a nossa síndrome de país continental e autossuficiente se junta um atributo que não sabemos se nos vem da remota condição de país do futebol, dos desfiles de escolas de samba pré-pandemia ou da onipresença dos shows “de realidade”.
Parece que não somos capazes de acompanhar qualquer evento sem torcer ou, na versão mais politizada, “nos manifestarmos”. Como se fosse impensável um mundo maior e mais complicado do que uma roseira e um baobá.
Eu estou a quilômetros de ser especialista em assuntos da Eurásia ou de ter qualquer simpatia pela figura de Putin. Mas alguém já escreveu anos atrás que “para o Ocidente, a demonização de Vladimir Putin não é uma política; é um álibi para a ausência de uma.”
E disse ainda que “tratar a Ucrânia como parte de um confronto Leste-Oeste arruinaria por décadas qualquer perspectiva de trazer a Rússia e o Ocidente – especialmente a Rússia e a Europa – para um sistema internacional cooperativo.”
O autor desse alerta se chamava Henry Kissinger e escreveu em 2014, exatamente quando o “Ocidente” dava mais um passo no sentido de encurralar o urso. A íntegra do documento está à distância de dois toques do Google.
Mas claro que é melhor para a autoestima pontificar sobre as nossas inalienáveis posições e princípios. Que obviamente não tem a menor relevância no jogo real das grandes potências do planeta.
Não sabemos o que está de fato ocorrendo em Kiev nem qual será o destino de Putin. Mas até agora o efeito de união da nação estadunidense em torno de seu comandante-em-chefe não apareceu para Biden, que parece mais pato e mais manco do que nunca.