As análises de conjuntura são um desafio constante nessa nova realidade após o surgimento da covid-19. A pandemia que parou o mundo em 2020 acelerou processos que ainda estavam sendo teorizados: a crise do capitalismo neoliberal e o fim da globalização como ordem vigente nas relações internacionais.
A atual pandemia evidencia as fragilidades do modelo neoliberal em conduzir o Estado e a sociedade. Os números de mortos e a crise econômica nos provam que a ideia de estado mínimo e individualismo produz constante fracassos sociais. As saídas liberais não dão conta do profundo impacto da crise sanitária.
A globalização se legitimou no pós-Guerra Fria e consagrou os EUA como hegemonia. Suas principais diretrizes teóricas defendem que a difusão mundial das democracias liberais e do livre capitalismo de mercado formam uma nova fase sociocultural da humanidade. Dessa forma, nas últimas décadas, as instituições internacionais serviram como instâncias de regulação e cooperação de mercados e democracias liberais.
Todavia, as linhas que conduziam o mundo já não são mais as mesmas e presenciamos uma nova reconfiguração dos modelos econômicos e do cenário internacional. Desde a crise de 2008, autores como Wolfgang Streeck anunciam um grande colapso do capitalismo liberal. Para o autor, o modelo capitalista de sociedade vem comprando tempo, adiando os grandes conflitos e postergando a grande crise desde 1970. A prática de compra de tempo transformou as características das classes capitalistas e suas intervenções de desaceleração tiveram impacto no próprio modelo do capitalismo. Dessa forma, a crise democrática, previstas por alguns autores da teoria crítica, foi prorrogada e transformada.
A análise de Streeck nos permite enxergar o ano de 2020 na sua proporção estrutural de crise sistêmica do capitalismo. As condições políticas e históricas levaram à necessidade de conciliar o capitalismo com a democracia, oferecendo para a sociedade uma perspectiva de bem-estar social. Essa prática foi bem sucedida no médio prazo, porém será que 2020 marca o esgotamento desse modelo?
A compra de tempo não necessariamente se dá com o dinheiro. A primeira forma foi por meio da inflação, a segunda pelo endividamento do Estado e a terceira pelos endividamentos individuais, oriundos de créditos privados. Hoje, a compra de tempo ocorre na compra de dívidas de Estados e de bancos, por bancos centrais. A impressão de dinheiro e a prática de alavancagem também são os instrumentos do capitalismo para comprar tempo.
O que vimos em 2008 pode ter sido o início de uma grande crise estrutural do capitalismo contemporâneo. Após saídas keynesianistas adotadas por Obama para salvar os bancos e a economia norte americana, a vitória de Trump em 2016 dá voz a um novo discurso de protecionismo, isolacionismo e mais recentemente antiglobalismo, contradizendo a teoria de globalização tão fortemente propagada pelos EUA nas últimas décadas.
Além da crise estrutural apontada por Streek, há também o elemento China, que coloca em ameaça a influência hegemônica dos EUA nos mercados internacionais, impactando diretamente sua estabilidade econômica.
O fator econômico é o elemento que garante a estabilidade democrática. Dessa forma, as saídas do capitalismo para as crises estão diretamente relacionadas às condições democráticas. Foram as lutas históricas que levaram o capitalismo aceitar as premissas da democracia.
O levante popular ocorrido nos últimos dias nos EUA adiciona mais um fator de complexidade nessa análise. A morte de um homem preto por um policial branco inflamou uma massa popular insatisfeita com as mazelas sociais produzidas pelo capitalismo. De fato, o capitalismo produz uma enorme desigualdade social nos EUA, porém é necessário atentar também à perspectiva de raça da realidade norte-americana. O processo colonial forçado pelos europeus em todo o continente americano foi estruturado e construído no racismo. Foi a construção da ideia de superioridade da raça europeia que justificou o genocídio indígena e a escravidão dos povos negros. O capitalismo eurocentrista é racista, o que significa que a demanda pelo fim do racismo envolve diretamente o questionamento do capitalismo e a construção de uma sociedade alternativa.
Fica evidente que a sociedade norte-americana está em um processo de ebulição mais complexo do que o sistema eleitoral democrático consegue representar. Há um descolamento do método democrático liberal das atuais demandas antirracistas. Não há agenda política liberal que dê conta de suprir essas reivindicações. Podemos identificar aqui mais um ponto de crise do modelo democrático liberal. As mazelas do capitalismo e do processo colonial produzem revoltas complexas incapazes de serem solucionadas pelo método da democracia liberal.
As respostas autoritárias e pouco flexíveis do governo Trump sustentam a interpretação de que em nome do modelo capitalista vale a pena corromper o modelo democrático. Para sustentar seus posicionamentos nesse contexto de crise, Trump propaga uma narrativa mais agressiva de reconstrução do contexto de bipolaridade da Guerra Fria, identificando as reivindicações como ideias comunistas. Para isso, utiliza o cenário internacional e a ascensão da China para convencer sua base desse perigo, construindo uma disputa ideológica, mesmo que essa não exista de forma real.
Podemos analisar de forma breve que os EUA enfrentam na verdade uma crise sobre o modelo de conciliação do capitalismo liberal com a democracia liberal. O ano de 2020 irá pontuar na história o momento de transformação, porém ainda não é possível descrever qual. Será o fim do modelo democrático a nova forma de compra de tempo? Será o fim do modelo liberal de democracia norte-americana e não necessariamente o fim de sua economia e do seu protagonismo internacional? Ou os levantes populares irão construir um novo ambiente político que irá transformar o capitalismo e não a democracia?