O retorno dos democratas à Casa Branca coincidiu com uma nova e duríssima ofensiva contra China, Rússia e todos os que compõem a dita frente dos “Estados Rebeldes”, cuja finalidade é bloquear qualquer hipótese de desenvolvimento multipolar da política internacional e restaurar o domínio indiscutível dos Estados Unidos sobre o mundo, sanando a profunda crise de imagem e de relações que Washington viveu nos últimos anos. É neste sentido que devem ser lidas as preocupações da UE e dos EUA que vieram à tona nos últimos encontros entre os dirigentes das respectivas instituições: o risco de que uma parte importante dos fundos do Plano de Recuperação acabe nos balancetes das empresas chinesas, visto que, como pudemos ler nos jornais, “no mercado europeu praticamente não existem capacidades tecnológicas e dimensões empresariais” adequadas aos projetos de reconversão ecológica do plano. Dessas preocupações emergem duas avaliações de ordem geral que são úteis para o desenvolvimento do nosso argumento: 1) a China está vencendo a disputa tecnológica com o Ocidente, perdida pela URSS, em sua época; 2) UE e EUA fundamentam suas próprias instituições na mística ideológica do primado do livre mercado, mas, concretamente, o laissez faire é sagrado somente quando satisfaz nossos próprios interesses. Quando isso não acontece, qualquer método de contraste protecionista é considerado legítimo, apesar de toda a retórica sobre a capacidade de autorregulação do mercado. Tudo isso demonstra o relativismo de valores e a nunca resolvida pretensão de supremacia colonial das sociedades democráticas liberais ocidentais sobre o resto do mundo.
Nesta operação política a narrativa joga um papel de primeiríssimo plano, por isso merece ser estudada com atenção para que se entenda sua importância. A luta pelo monopólio dos meios de comunicação, definitivamente vencida pelo liberalismo a partir de 1989, transformou a informação em um imenso megafone disponível para uma única versão dos acontecimentos, capaz de chegar a qualquer lugar e influenciar até os mais distraídos. A força do Ocidente, portanto, não está apenas no recurso sistemático à dominação dos inimigos que não se dobram, mas é também, e acima de tudo, a hegemonia sobre os aliados ou potenciais aliados. Porque as relações de poder não se baseiam apenas no exercício do domínio, mas requerem direcionamento. Precisam, portanto, de um exército de políticos, intelectuais, divulgadores e jornalistas alistados na defesa de uma única narrativa possível das coisas. Desse modo, por um lado, cria-se por meio da ideologia um conformismo capaz de unificar as classes dominantes e, por outro, essa mesma visão de mundo é utilizada para arregimentar os grupos subalternos. Como se isso não bastasse, a direção sempre tem a força à sua disposição, até mesmo brutal se necessário, como a política de Israel na Palestina (apoiada com força e convicção pelos “poderes democráticos”) nos recorda todos os dias.
Nesse sentido, fora do campo ocidental com seus aliados, a questão dos direitos humanos violados torna-se, na maioria das vezes, um pretexto instrumental muito inteligente para dar suporte aos exércitos ocidentais, mais ou menos como foi com as armas de destruição em massa atribuídas aos arsenais de Saddam. Afinal, quando se trata de um aliado fiel como a Arábia Saudita não se escuta falar de ditadura, totalitarismo, violação das liberdades individuais e ninguém sonha em pedir ou impor sanções contra um regime tão reacionário e autoritário, um dos mais flagrantemente liberticidas da face da terra.
Em meio a esta interminável guerra entre o Ocidente e seus “inimigos”, Cuba, a obsessão eterna que recorda a Washington uma de suas mais ardentes e históricas derrotas, permanece uma ferida aberta, e qualquer ocasião para curá-la é boa. O atual quadro de depressão mundial, por exemplo, oferece uma oportunidade de desestabilização única e que não se repetirá. Os efeitos negativos da pandemia sobre a economia mundial são notáveis e evidentes para todos, tanto nas periferias do desenvolvimento capitalista quanto nas metrópoles da civilização ocidental. Nos EUA, por exemplo, registrou-se um aumento exponencial da pobreza e o incremento vertiginoso nos números da população sem uma habitação e obrigada a viver nas ruas. Inevitavelmente isso tudo teve também repercussões em uma ilha como Cuba, forçada durante sessenta anos a apertar o cinto em razão do embargo imposto por Washington e que tem o turismo entre seus principais itens de entrada, talvez um dos setores mais afetados por esta crise.
Apesar de tudo isso, Cuba soube enfrentar a pandemia melhor do que muitos países ocidentais, a ponto de ter podido enviar seus médicos a várias partes do mundo (incluindo a Itália), garantindo à população as condições mínimas de existência negadas em outros lugares. Os vários lockdowns e o consequente bloqueio dos deslocamentos de um país para outro, porém, afetou a parcela da população que se alimentava de atividades relacionadas ao turismo. Tudo isso gerou protestos, exatamente como se deu nos últimos meses em tantas outras partes do mundo. Mas se o descontentamento e as mobilizações no Ocidente deram lugar apenas a breves reportagens jornalísticas, no caso de Cuba nossa imprensa não perdeu tempo em dar-lhes um sentido sistêmico, causadas pelo paradigma de um fracasso socioeconômico, bem como por problemas de ordem jurídica e constitucional.
Presidencia Cuba
Luta pelo monopólio da comunicação transformou a informação em um megafone disponível para uma única versão dos acontecimentos
Assim, nos jornais e nos programas de debates, ouve-se falar repetidamente de “direitos humanos violados” e da pobreza estrutural de Cuba. Um jornalismo minimamente sério, no entanto, para além de denunciar a situação crítica, deveria ter a honestidade de comparar o padrão de vida dessa nação não com o opulento Ocidente, mas com as outras ilhas caribenhas, a poucas milhas de distância. É suficiente olhar para o estado de indigência de uma realidade muito próxima, e teoricamente com os mesmos recursos naturais, como o Haiti, para ter-se uma ideia aproximada da instrumentalização desses argumentos. Como fez notar Raul Castro, respondendo obstinadamente às bobagens de Obama, a primeira violação séria dos direitos humanos é privar um povo de cuidados de saúde e de condições de vida essenciais. Quando a regra é a miséria absoluta e a total ausência de direitos sociais, o exercício da dita liberdade individual, mesmo que apenas proclamada, é uma utopia pura que só se torna real para a minoria da sociedade. Sem justiça social, a igualdade formal infelizmente permanece um exercício escolar hipócrita. Basta olhar para as condições dos afroamericanos e a composição social das prisões nos Estados Unidos para entendê-lo.
Antes da revolução, Cuba era o bordel dos americanos, a população vivia na miséria e sem educação, sem assistência médica e obrigada a todas as formas de exploração para escapar da fome, uma fome verdadeira. A “revolução contra a revolução” balbuciada por certa esquerda que nunca na vida realizou nem a primeira nem a segunda, com as atuais relações de poder e o quadro político internacional desfavorável, significaria apenas a restauração da condição de subjugação colonial e criminosa varrida em 1959. Por todas estas razões, o apoio a Cuba contra a desestabilização de múltiplas direções do Ocidente tem um valor que vai muito além dos assuntos desta ilha, que durante mais de meio século foi obrigada a sofrer o assédio criminoso de Washington (embargo, tentativas de invasão, atos terroristas) por se rebelar contra o seu domínio.
Na história recente já assistimos a operações como esta, por exemplo com a morte de Fidel Castro, que na época desencadeou o alarido e os gritos de vingança por parte daqueles que não conseguiram enfrentá-lo em vida. Os jornalistas transformaram-se em pelotões de fuzilamento e usaram toda a sua gama de maldições, anátemas e condenações descontroladas para garantir que nem mesmo uma memória vagamente positiva deste homem permanecesse. Uma ofensiva ideológica que exerceu a sua atração hegemônica também à esquerda, entre aqueles que aproveitaram a oportunidade para apontar as inconsistências da revolução cubana, falando de traição e oportunidades perdidas.
No plano da coerência entre teoria e prática, vale a pena lembrar que cada revolução, ao colidir com a realidade concreta (com ações e reações, esperadas ou imprevistas), acaba por criar um novo quadro que é sempre diferente do que era anteriormente teorizado e idealizado. É inevitável, foi assim no caso da Revolução Francesa (apesar de continuarmos a considerá-la um ato fundamental de libertação universal), e como é o caso de todas as revoluções liberais que, para além dos seus princípios, acabaram por institucionalizar formas aberrantes e desumanas de pobreza sem limites, exclusão e marginalização social, que Constant, Locke, Smith e Bentham certamente não levaram em conta. Há, contudo, uma profunda diferença, para a qual Domenico Losurdo chamou repetidamente a atenção em seu raciocínio: quando discutimos os teóricos e protagonistas das revoluções socialistas, focalizamo-nos inevitavelmente apenas nas contradições dos processos reais por elas gerados, nunca nos aspectos progressivos; quando nos referimos aos teóricos do pensamento liberal (“os clássicos”) falamos dos valores universais da fraternidade e da liberdade individual que teorizaram, nunca da miséria, das guerras de roubo e dominação colonial ou da divisão rígida em classes, que são características das sociedades liberais reais. No primeiro caso, em geral as análises apenas se detém sobre os limites dos processos históricos reais, no segundo as atenções são postas sobre as petições de princípio e os impulsos idealistas dos seus pensadores. Na própria aceitação acrítica desta inversão em termos de raciocínio, esconde-se uma clara vitória hegemônica do pensamento liberal, a qual nunca é suficientemente refletida.
Neste sentido, creio, explica-se um juízo histórico generalizado e consolidado: Kennedy é considerado o profeta da “nova fronteira”, não o protagonista da guerra no Vietnã, do desembarque na Baía dos Porcos e do consentimento de todas as operações mais imprudentes e antidemocráticas da CIA; Castro é, ao invés, apresentado como um opressor sangrento, não aquele que lutou toda a vida pela afirmação dos direitos sociais e pela autonomia do seu povo face ao domínio imperialista americano. Até que se liberte das concepções ideológicas opostas e deixe de ser veículo inconsciente para categorias e representações que são funcionais a outras visões do mundo, o destino da esquerda é permanecer no solo lamacento da atual subalternidade e inutilidade sócio-histórica.
*Gianni Fresu é presidente da International Gramsci Society Brasil
*Publicado originalmente em Marxismo Oggi. Tradução: Rita Coitinho