Na edição impressa está diferente, mas o Painel da Folha postou ontem na internet uma nota bizarra sobre a campanha contra a “polarização” que os partidos do autodenominado centro estão patrocinando.
Não preciso nem discutir o que significa essa adesão acrítica ao discurso da “polarização”. Nem vou me estender sobre o trecho que diz que o vídeo “defende a centralidade como chave para a solução de conflitos”. Defende a “centralidade”? Um repórter de política deveria ter um pouco mais de familiaridade com o vocabulário da política.
Meu ponto é o trecho que diz que “estão unidos na empreitada DEM, PP, PL, PRB, PSD, MDB, Avante e Solidariedade, ou seja: siglas da centro-direita à centro-esquerda”. Gosto do “ou seja”, que induz o leitor a acreditar que está sendo enunciada uma obviedade inconteste.
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Mas eu me pergunto em que universo mental seria possível identificar algum desses partidos com a “centro-esquerda”.
A classificação dos partidos brasileiros no espectro esquerda-direita sempre foi tema de acalorados debates entre os especialistas. Nossos partidos são em geral pouco programáticos, erráticos em seus compromissos e muito variados regionalmente. A classificação sempre acaba tendo algo de arbitrário.
Por outro lado, é necessário agrupar os partidos em campos, porque é impossível fazer uma análise que leve em conta separadamente dezenas de siglas e ao mesmo tempo seja legível.
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Nossos partidos são em geral pouco programáticos, erráticos em seus compromissos e muito variados regionalmente
Eu estou cada vez mais convencido que a classificação mais comum, que eu mesmo usei em vários trabalhos, tornou-se imprestável. Ela colocava (P)MDB e PSDB no centro. À esquerda, PT, PSOL, PSB, PDT, PCdoB, mas também PPS, PMN e PV. A justificativa era que, apesar de suas posições cada vez mais conservadoras, um partido como PPS era marcado por sua origem (no antigo PCB) e aceito como “progressista”. E as pequenas legendas de aluguel, junto com DEM, PP etc., na direita.
Assim, a classificação, como defendi num texto que dediquei à discussão, se referia não ao que o partido era, mas ao valor simbólico com que circulava no campo político – e esse valor carregava uma memória de sua origem.
Hoje isso tudo mudou, com a rápida reestruturação dos parâmetros da disputa discursiva e também com o fato de que, no mundo da pós-verdade, não existem mais valores simbólicos relativamente consensuais para balizar essa leitura. Lembremos que, no início do ano, o “príncipe” do PSL, que é cientista político (essa profissão só me causa dissabores), deu uma aula a seus colegas de bancada explicando o sistema partidário brasileiro – e nela DEM entrava como “esquerda progressista” e o PPS na “esquerda revolucionária”.
A divisão tríplice (esquerda-centro-direita) também não parece mais suficiente, com o surgimento de um bloco de partidos relevantes que se posiciona na extrema-direita. Aliás, seria interessante retomar as pesquisas sobre coligações em eleições municipais diante dessa nova realidade. Em trabalhos em coautoria com Carlos Machado, mostrei como o PT ampliou paulatinamente sua política de alianças ao ponto de transformar o eixo esquerda-direita em virtualmente irrelevante como preditor de coligações.
E agora? Com os fascistoides no poder, qual será o padrão de coligações? Quem se coligará com PSL/APB e seus satélites (Novo, Patriota etc.)?
Ao mesmo tempo, não há sentido em destacar a extrema-esquerda, simplesmente porque não há nenhuma organização nessa posição que tenha peso político relevante. Assim, a nova classificação teria quatro categorias: esquerda, centro, direita e extrema-direita.
Descompensado, desequilibrado, deselegante e desengonçado. Exatamente como a política brasileira.
*Luís Felipe Miguel é professor de Ciência Política na UnB