As mulheres são força revolucionária, a reivindicação da Revolução Russa na promoção dos direitos das mulheres ainda ressoa nas reivindicações atuais. As guerras europeias impactam e abalam o mundo pós-União Soviética e a Guerra Fria. Consequências e destroços ainda se colidem gerando resultados devastadores, para compreendermos este complexo mosaico geopolítico, Wendy Goldman é uma das profícuas intelectuais que discute a respeito disso.
Wendy Z. Goldman é Paul Mellon Distinguished Profess no Departamento de História da Carnegie Mellon University. É autora de vários livros sobre a União Soviética, incluindo dois traduzidos para o português, A Mulher, o Estado e a Revolução. (Boitempo e Iskra, 2014) e Terror e Democracia nos Tempos de Stalin. Dinâmica Social da Repressão (Editora Lavra Palavra, 2021). Em conversa com Opera Mundi, a autora analisa os conflitos contemporâneos mais importantes após a queda da União Soviética e os legados e as lições das mulheres revolucionárias.
As mulheres e a Revolução
Opera Mundi: As mulheres não foram apenas a “faísca” da Revolução Russa, mas a força motriz por trás dela. Ainda existe essa força para impulsionar a libertação das mulheres dos grilhões que o capitalismo colocou sobre nós?
Wendy Goldman: A força motriz em 1917 foi a opressão que as mulheres sofriam como mulheres, trabalhadoras e camponesas. Essa opressão ainda existe em todo o mundo. Ela afeta mulheres de várias classes de maneiras diferentes, mas todas as mulheres estão sujeitas à opressão do Estado, por meio de leis que visam controlar o corpo e a capacidade reprodutiva feminina, e na subordinação das mulheres aos homens dentro de casa, na expressão cultural, na educação e no local de trabalho. Todas as mulheres, mesmo as dos países mais ricos, lutam para conseguir conciliar o trabalho assalariado com o trabalho doméstico e o cuidado dos filhos. Em todos os lugares, as mulheres ainda estão sujeitas à violência masculina, ao estupro e às tentativas de controlar suas escolhas e sua sexualidade. Enquanto as mulheres não tiverem direitos iguais e plenos – à educação, ao emprego, à segurança, à escolha de seus parceiros e ao controle de sua fertilidade – e enquanto as condições que permitiriam às mulheres exercerem esses direitos não existirem, o impulso para a mudança permanecerá. Muitas demandas foram conquistadas em países onde existem fortes movimentos feministas, e novas demandas surgiram com foco nos direitos LGBTQIA+, assédio sexual, representação cultural e outras questões. Ao mesmo tempo, alguns direitos que foram conquistados anteriormente foram perdidos e as mulheres foram forçadas a retroceder. Nos Estados Unidos, muitos estados instituíram restrições severas ou até mesmo proibições totais do direito ao aborto, que foi conquistado em 1973. Teremos que travar essas batalhas novamente. Onde quer que haja opressão, encontramos resistência. Às vezes, ela é invisível, às vezes a faísca parece muito fraca na escuridão, mas ainda arde.
A Revolução de 1917 continua sendo o momento histórico mais transformador na vida das mulheres russas. Mas como essa revolução impactou as lutas das mulheres do terceiro mundo, especialmente as latino-americanas e brasileiras?
A Revolução Russa apresentou uma visão muito radical da liberação das mulheres que se baseou nas lutas de muitos países anteriores à Revolução. Essa visão baseava-se em quatro princípios: união livre ou amor livre, independência econômica por meio do acesso a um salário independente, socialização do trabalho doméstico e o gradual “definhamento” ou desaparecimento da família como uma unidade regulada por autoridades estatais ou religiosas. Em primeiro lugar, “união livre” ou “amor livre”, termo popular no século XIX, significava que os relacionamentos e o casamento deveriam ser baseados em atração e respeito mútuos e livres de restrições econômicas, controle dos pais ou dependência. As pessoas deveriam fazer suas próprias escolhas sobre quem amar, e nenhuma pessoa deveria permanecer em um relacionamento em que o amor não existisse mais. Em segundo lugar, para que as uniões fossem realmente “livres”, as pessoas precisavam ter o direito legal ao divórcio (que não existia na Rússia antes da revolução) e a oportunidade de serem economicamente independentes. As mulheres, em particular, precisavam ter acesso a um salário justo, o que lhes permitiria sustentar a si mesmas e suas famílias e escapar da dependência dos homens. A participação das mulheres na força de trabalho as apresentaria a um mundo mais amplo, além da cozinha e do lar, e permitiria que elas se tornassem participantes plenas e iguais na sociedade em geral. Em terceiro lugar, depois que as mulheres entraram na força de trabalho assalariado em igualdade de condições com os homens, o novo Estado soviético planejou socializar a maior parte do trabalho doméstico ou reprodutivo. O cuidado diário com as crianças, os idosos e os doentes, bem como a lavagem de roupas e a cozinha, seriam transferidos para a economia mais ampla, transformados em trabalho respeitado, realizado por homens e mulheres, por bons salários. As pessoas poderiam comer em refeitórios da vizinhança e ter acesso a lavanderias, creches, hospitais e instalações para idosos. O quarto princípio da visão revolucionária soviética, talvez o mais radical de todos, era “o definhamento” (em russo, otmiranie) da família. Como marxistas, muitos revolucionários soviéticos acreditavam que a família era uma forma historicamente variável (ou mutável) que assumia diferentes formas ao longo do tempo. A família sob o socialismo assumiria uma nova forma. Ela deixaria de ter uma função econômica, não seria mais organizada para preservar a propriedade em larga escala, as mulheres não seriam mais controladas pelos homens e as crianças não seriam mais separadas em categorias “legítimas” e “ilegítimas”. As pessoas se uniriam ou se separariam como quisessem. Não haveria necessidade de regulamentar a família por lei; as pessoas não precisam se casar. As crianças seriam sustentadas e cuidadas independentemente de seus pais serem casados ou não. As relações afetuosas entre pais e filhos e entre parceiros continuariam a existir, mas não em qualquer formato imposto pelo Estado ou pela religião.
O Estado soviético aprovou uma forte legislação sobre maternidade para proteger as mulheres, oferecer licença remunerada antes e depois do parto, garantia de que o emprego da mulher fosse mantido após o nascimento de um filho e oferecia proteção às mães que amamentavam. Em 1920, tornou-se o primeiro país do mundo a legalizar o aborto e a oferecê-lo gratuitamente em clínicas.
Essa visão era diferente da exigência feminista contemporânea de que homens e mulheres compartilhassem igualmente o trabalho doméstico, ou da ideia de que todos deveriam trabalhar menos horas para ter mais tempo para passar com os filhos ou com o trabalho doméstico. A ideia revolucionária era socializar o trabalho doméstico, e não promover brigas intermináveis entre homens e mulheres para decidir quem o faria. Também era diferente da ideia lançada pelas mulheres na década de 1970 sob o slogan “Wages for Housework”, que exigia que o Estado pagasse às mulheres um salário pelo trabalho que elas realizavam em casa gratuitamente. O novo governo soviético buscou dissolver totalmente os papéis tradicionais de gênero, transferindo o trabalho doméstico para a economia em geral. Ele não planejava deixar o trabalho doméstico (remunerado ou não) centralizado nas mãos das mulheres dentro da família tradicional.
Essa visão tinha um enorme potencial libertador para as mulheres na Rússia em 1917, assim como tem para as mulheres em todos os países atualmente. Ela permite que as mulheres criem filhos, entrem na esfera pública, tenham independência financeira e escolham livremente seus parceiros. Ela oferece apoio a todas as mulheres e, nesse sentido, ainda é relevante para as mulheres de todos os lugares.
Na jornada histórica que trata da situação das mulheres na experiência soviética, você aponta para o argumento de que, para criar as condições materiais para a liberação das mulheres, primeiro era necessário superar a luta de classes. Em que pé estamos hoje?
A lição que a experiência soviética nos ensinou é que, sem criar as condições materiais para a emancipação das mulheres, ou seja, pleno emprego, salários suficientes para sustentar uma família, uma gama completa de opções de controle de natalidade, bem como lavanderias, creches e instalações para idosos, as mudanças na lei, por si só, não libertarão as mulheres. Na verdade, isso pode tornar a vida delas ainda mais difícil se os homens se aproveitarem das novas leis de divórcio e de uma cultura de amor livre para ter relações íntimas com muitas mulheres e deixar cada uma delas com um filho que ela não tem condições de sustentar.
Em Mulher, Estado e Revolução, as mulheres do Zhenotdel começaram a reformar a sociedade por meio de leis que, às vezes, entravam em conflito com a realidade material, especialmente com as estruturas tradicionais do campesinato soviético. Hoje, com o neoliberalismo, muitas conquistas foram atacadas e houve um retrocesso em termos de leis que dizem respeito aos direitos das mulheres. Qual é a importância de se pensar no mundo pós-soviético com sua complexidade e nuances?
Atualmente, são poucas as sociedades que resolveram a contradição entre o trabalho remunerado das mulheres e as tarefas domésticas que elas realizam gratuitamente dentro de casa. Na cidade de Nova York, por exemplo, a creche para crianças em idade pré-escolar pode custar cerca de 1/4 ou mais da renda de uma família. Ao mesmo tempo, os trabalhadores que prestam esses cuidados recebem salários muito baixos. No capitalismo, mulheres pobres de países do terceiro mundo cruzam as fronteiras em busca de emprego e deixam seus próprios filhos para trás para trabalhar como babás, empregadas domésticas, profissionais de saúde domiciliar e outros empregos mal remunerados. Isso também não é uma solução. Agora imagine uma sociedade em que uma creche de alta qualidade – com belas instalações, atividades e brinquedos adequados à idade e alta proporção de cuidadores para crianças – fosse gratuita para todas as famílias. Uma sociedade em que os cuidadores de crianças recebessem altos salários em uma profissão respeitada que incluísse nossas pessoas mais amorosas, pacientes e criativas. Imagine uma sociedade em que as crianças e outras populações vulneráveis, como os idosos ou os deficientes, fossem nossa primeira prioridade. Isso é possível no capitalismo? Algumas sociedades com fortes tradições social-democratas, como a Holanda, têm se saído melhor do que outras. Mas a assistência à infância não gera grandes lucros para os empresários capitalistas, especialmente se os trabalhadores recebem um bom salário. Para que a creche esteja disponível no capitalismo, ela deve ser subsidiada pelo Estado, e a sociedade deve valorizar as pessoas em vez do lucro.
O período em que Josef Stalin esteve à frente da União Soviética é, ainda hoje, um assunto que gera intensas divergências. Definir a natureza da repressão que ocorreu durante esse período é uma das questões mais controversas da historiografia contemporânea. O livro Terror and Democracy in the Age of Stalin: The Social Dynamics of Repression (Cambridge University Press, 2007, traduzido para o português, Terror e Democracia nos Tempos de Stalin. Dinâmica Social da Repressão (Lavra Palavra, 2021) é um estudo aprofundado da participação popular na repressão. Como ocorreu a repressão e qual foi o papel da participação popular?
Após o assassinato de Sergei M. Kirov, chefe da organização do Partido Comunista de Leningrado, em dezembro de 1934, o Terror cresceu gradualmente e passou a abranger muitos setores da sociedade soviética. Muitas informações novas sobre o Terror surgiram após o colapso da União Soviética e a abertura dos arquivos soviéticos. Sabemos agora que o terror foi um caso complexo, visando a segmentos diferentes e distintos da população em ondas sucessivas. Uma das questões mais polêmicas de interpretação diz respeito ao papel de Stalin, do Estado e da participação das massas. Muitos historiadores argumentam que o terror foi um caso estritamente de cima para baixo. Ele foi lançado, controlado e encerrado por Stalin. Alguns argumentam que Stalin pretendia eliminar qualquer ameaça ao seu poder pessoal. Outros acreditam que ele planejava eliminar qualquer colaborador em potencial em caso de guerra. Eles argumentam que o povo soviético vivia com medo, atomizado e aterrorizado. Eles eram vítimas de Stalin e do terror que vinha de cima. Embora todos os historiadores reconheçam que o terror gerou muito medo, muitos também veem uma interação complexa entre o Estado, as localidades e os cidadãos comuns. Essas abordagens tiram o foco de Stalin como indivíduo e analisam o Terror como um fenômeno social de massa, que teve amplo apoio na época.
Meu trabalho concentrou-se nas fábricas e nos sindicatos para entender como o Terror se espalhou em nível local e porque foi transformado em arma por vários grupos que a utilizaram para atingir outros objetivos. O livro mostra, por exemplo, que o Estado propôs a ideia de “destruição” ou sabotagem intencional por antigos oposicionistas políticos, incluindo oposicionistas de esquerda e de direita. Falsas acusações de destruição resultaram em muitas prisões de gerentes, engenheiros e trabalhadores. Nos locais de trabalho, a “destruição” logo se tornou a explicação dominante para todos os problemas de produção. Problemas técnicos e acidentes causados por inexperiência, falta de suprimentos, metas de produção irrealistas e normas de segurança negligenciadas eram atribuídos à destruição ou à sabotagem intencional. Os trabalhadores também se envolveram nessas acusações. Incapazes de protestar contra as condições, que eram muito difíceis durante a industrialização da década de 1930, eles acusaram capatazes e chefes de destruição para chamar a atenção para problemas de segurança, baixos salários, condições precárias e desrespeito. O Terror assumiu uma dimensão de classe. Muitos líderes das fábricas foram expulsos do partido e presos. Os jornais das fábricas estavam cheios de acusações contra chefes de fábrica e capatazes. Em 1937, as fábricas foram tomadas por denúncias. As reuniões do partido, antes dedicadas a questões de produção, agora estavam completamente ocupadas com a investigação de membros do partido, engenheiros e gerentes.
Em fevereiro e março de 1937, no auge do terror, o Pleno do Comitê Central do Partido promoveu prisões em massa de antigos oposicionistas de esquerda e de direita no setor. Muitos foram torturados e fuzilados. Ao mesmo tempo, o partido adotou uma campanha de massa pela democracia, uma medida contraintuitiva que poucos historiadores conseguiram explicar. O partido incentivou trabalhadores, camponeses e soldados a desafiar a autoridade. Foram realizadas eleições por voto secreto nos sindicatos, e os trabalhadores foram incentivados a criticar seus chefes. Reuniões em massa foram realizadas em todas as organizações e instituições, e os chefes foram acusados de reprimir as críticas, criar círculos familiares de poder e negligenciar a segurança e as condições de trabalho. O terror se espalhou pelas forças armadas, sindicatos e todos os locais de trabalho. Os trabalhadores ganharam algum poder por um breve período; eles expulsaram a antiga liderança sindical em eleições e forçaram os sindicatos a abordar questões e condições de segurança. Os líderes sindicais lutaram amargamente entre si, acusando-se mutuamente na linguagem do terror, fazendo acusações políticas uns contra os outros de trotskismo e corrupção. Essas acusações chamaram a atenção do NKVD. O prejuízo para os sindicatos foi grande. Cerca de um terço dos líderes sindicais foram presos. O livro revela que as prisões não eram simplesmente o resultado de ordens dos líderes centrais do Partido, mas sim uma interação entre o Partido (em todos os níveis), os sindicatos e o NKVD. Os líderes sindicais denunciavam uns aos outros e se tornavam participantes ativos de sua própria destruição.
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Soldados russos avançam em tropa
As denúncias desempenharam um papel importante no fornecimento de informações para a polícia secreta (NKVD), que se tornou a base para outras prisões. O terror se espalhou por um modelo viral, pois as pessoas associadas aos presos também foram presas. Embora alguns historiadores argumentam que o terror era uma forma de violência excessiva de cima para baixo, visando apenas à remoção de grupos sociais específicos, o livro argumenta que nenhum grupo ou classe social estava isento. Por um curto período de tempo, o terror escapou do controle dos líderes do partido. Ele desenvolveu uma dinâmica autogeradora e autodestrutiva. Muitas pessoas foram vítimas do terror e perpetradores ao mesmo tempo. Pessoas comuns participavam do terror escrevendo denúncias secretas para o NKVD, falando contra colegas de trabalho em reuniões, citando nomes e fazendo ataques preventivos a outros para demonstrar sua própria lealdade. Mais tarde, muitos desses “perpetradores” foram presos. O Terror foi um processo complicado. Começou de cima para baixo e terminou de cima para baixo, mas, em seu auge, espalhou-se amplamente e ganhou força com a participação em massa de cidadãos comuns. Isso se tornou parte de uma cultura política que prejudicou a ideia do socialismo democrático nos anos seguintes.
Destroços da União Soviética
A guerra russo-ucraniana é um dos conflitos pós-soviéticos que vem ganhando manchetes há algum tempo, mas há outro igualmente sangrento que não recebe tanta atenção da mídia: o conflito entre a Armênia e o Azerbaijão. A batalha contínua entre a Armênia e o Azerbaijão passa por um território chamado Nagorno-Karabakh. Essas ex-repúblicas soviéticas vizinhas travaram duas guerras entre si nas últimas três décadas – a primeira de 1989 a 1994 e a segunda no outono de 2020. Quais são as raízes do conflito de Nagorno-Karabakh e qual é o seu lugar no processo do colapso soviético?
Nagorno-Karabakh é uma região disputada dentro do Azerbaijão, habitada principalmente por armênios étnicos. Há muitos anos existe tensão étnica (nacional) na região, desde antes do período soviético. Durante o período soviético, os armênios achavam que a república do Azerbaijão discriminava a língua e a cultura armênias. Em 1988, quando a União Soviética começou a se desintegrar, foi realizado um referendo em Nagorno-Karabakh para transferir a região para a Armênia. A votação provocou uma série de atos violentos contra os armênios por parte do Azerbaijão. O conflito se transformou em guerra no início da década de 1990. As forças armadas armênias ocuparam o território do Azerbaijão. O conflito foi resolvido por um cessar-fogo difícil, mas os confrontos continuaram. Uma segunda guerra eclodiu em 2020 e foi seguida, em setembro de 2023, por uma grande e bem-sucedida ofensiva do Azerbaijão que forçou mais de 100.000 pessoas, 80% da população de Nagorno-Karabakh, a fugir de suas casas para a Armênia. Conflitos semelhantes entre pessoas de diferentes etnias (nacionalidades) ocorreram em toda a União Soviética após seu colapso. Nenhuma região em qualquer lugar é étnica ou nacionalmente composta por apenas um povo e, na esteira do colapso de uma visão socialista universal, essas identidades suplantaram um ideal universal de justiça social. As identidades nacionalistas, étnicas e religiosas se mostraram extremamente poderosas na mobilização de pessoas umas contra as outras. E muitos desses conflitos foram impulsionados por grandes potências externas com o interesse de ter mais poder nas regiões afetadas.
Com essas últimas tensões entre a Armênia e o Azerbaijão e a guerra russo-ucraniana, parece que ainda estamos vivendo o colapso da União Soviética. O que você pode nos dizer sobre isso?
De muitas maneiras, ainda estamos vivendo as consequências do colapso da União Soviética. O mundo agora é caracterizado pelo aumento de ódios étnicos, religiosos e nacionais que são alimentados por várias potências na esperança de estender seu próprio controle sobre regiões além de suas fronteiras. Este é um momento muito perigoso e desanimador. O controle de armas e os acordos nucleares não foram renovados, e muitas regiões que antes faziam parte da União Soviética agora estão envolvidas em conflitos e guerras.
Na guerra russo-ucraniana, os poderosos estão jogando sujo. Como você entende a crise atual e quais são os elementos indispensáveis?
A mídia ocidental apresenta a Ucrânia como uma pequena nação democrática que luta por sua independência contra a Rússia, uma potência oligárquica e imperialista que busca restaurar as fronteiras do antigo império russo ou da União Soviética. O povo ucraniano está unido na luta contra a Rússia e pela democracia. Mas essa narrativa está errada em muitos aspectos. A Ucrânia não está unida. Ela é dividida em termos linguísticos, culturais, econômicos e religiosos entre o leste e o oeste. Desde 2014, ela vem sendo dilacerada por uma sangrenta guerra civil. Nem a Ucrânia nem a Rússia são democracias. Ambas são oligarquias corruptas com populações empobrecidas. A Ucrânia proibiu 12 partidos políticos da esquerda ao centro desde a invasão, atacou a Igreja Ortodoxa Russa e os sindicatos e está praticando uma forma brutal de censura contra as pessoas que estão do lado da Rússia no território que retomou. Há crimes de guerra ocorrendo em ambos os lados.
Não há evidências de que Putin esteja tentando reconstituir o império russo ou a União Soviética. Putin tem sido muito claro sobre os objetivos da Rússia antes e depois da invasão. Desde 1990, a Rússia considera o movimento constante da OTAN em direção ao leste e o posicionamento de mísseis apontados para a Rússia em todo o leste da Europa como uma ameaça grave e inaceitável à sua própria segurança. As exigências de Putin nas negociações antes da invasão foram muito claras. Primeiro, que a Ucrânia permanecesse neutra e não se unisse à OTAN. Segundo, que o governo ucraniano estabelecesse proteções e representação para a população de língua russa no leste.
Para entender essas exigências, precisamos voltar no tempo. A OTAN, uma aliança militar, foi criada em 1949 para combater a disseminação do socialismo e conter a União Soviética. Foi uma parte fundamental da Guerra Fria, que via a União Soviética como uma grande ameaça à hegemonia e ao capitalismo dos Estados Unidos. Sabemos agora, por meio dos Arquivos de Segurança Nacional, que em 1990, após a queda do muro entre a Alemanha Oriental e a Alemanha Ocidental, Gorbachev recebeu a garantia de uma ampla gama de líderes ocidentais (James Baker, George H.W. Bush, Helmut Kohl, John Major) de que, se uma Alemanha unificada pudesse permanecer na OTAN, não haveria nenhum movimento da jurisdição da OTAN para o leste, “nem um centímetro” foi a frase exata. No entanto, desde então, mais 14 países da Europa Oriental, até as fronteiras da Rússia, aderiram à OTAN, incorporando quase toda a Europa Oriental. O objetivo dos Estados Unidos era claro: criar uma nova ordem mundial neoliberal, dominada pelos Estados Unidos, na Europa Oriental.
Na década de 1990 e no início dos anos 2000, a Rússia estava seriamente enfraquecida e pouco podia fazer para se opor. A União Soviética havia entrado em colapso, o povo mendigava nas ruas e havia refugiados por toda parte. Os Estados Unidos se aproveitaram disso, quebrando a promessa feita a Gorbachev, empurrando a OTAN para o leste e dando continuidade às políticas e à ideologia da antiga Guerra Fria. Em abril de 2008, a OTAN realizou sua cúpula em Bucareste, onde anunciou que a Geórgia e a Ucrânia se tornariam parte da OTAN. A liderança russa ficou profundamente abalada. Isso colocaria as forças, as bases e os mísseis da OTAN diretamente em suas fronteiras. Assim como a reação dos Estados Unidos ao convite de Cuba para colocar mísseis soviéticos em Cuba, a Rússia adotou uma linha dura em relação à Geórgia e à Ucrânia. Putin disse que isso “seria visto na Rússia como uma ameaça direta à segurança de nosso país”.
Em 2014, seguiu-se uma crise na Ucrânia. Yanukovich, o presidente da Ucrânia democraticamente eleito e pró-russo, rejeitou uma proposta da União Europeia para a Ucrânia. Esse plano teria estabelecido uma zona de livre comércio abrangente e prejudicado gravemente as grandes fábricas e minas de aço na região oriental de Donbass. Os trabalhadores ucranianos, em particular, se opuseram fortemente à proposta da União Europeia. Após a rejeição de Yanukovich à proposta da União Europeia, um amplo grupo de pessoas se reuniu para se opor a ele na Praça Maidan, em Kiev. Milícias armadas de extrema direita, muitas com identificações neonazistas, ocuparam prédios do governo e derrubaram Yanukovich. Agora sabemos que os ataques de franco-atiradores contra os manifestantes não foram feitos pela polícia de Yanukovich, mas por grupos armados de extrema direita que tentaram culpar a polícia e derrubar o governo. Yanukovich fugiu, e o governo ucraniano pós-Maidan foi escolhido a dedo pelos Estados Unidos. Ele uniu reformistas neoliberais e nacionalistas de extrema direita e combinou austeridade, anticomunismo e nacionalismo ucraniano. Era muito favorável aos Estados Unidos.
O golpe de 2014 teve três consequências. Primeiro, na Crimeia, a maioria dos residentes, que eram principalmente russos étnicos, votou de forma esmagadora para se juntar novamente à Rússia. A Rússia reincorporou a Crimeia, que fazia parte da Rússia desde o século XVIII e foi dada como um “presente” à República Socialista Soviética Ucraniana por Khrushchev em 1954. Em segundo lugar, duas áreas no leste da Ucrânia se separaram para formar as repúblicas de Lugansk e Donetsk. As repúblicas separatistas eram ambas regiões industriais baseadas nos setores de aço e mineração. As pessoas dessas regiões temiam perder seus empregos com o acordo com a União Europeia. Em terceiro lugar, seguiu-se uma guerra civil na qual 14 mil pessoas morreram antes da invasão russa. Os separatistas não são apenas representantes russos, mas cidadãos da Ucrânia com demandas legítimas. Muitos dos paramilitares de extrema direita que lutam contra os separatistas em nome do governo ucraniano se identificam com os combatentes ucranianos alinhados aos nazistas na Segunda Guerra Mundial. Essa é uma explicação parcial para a retórica de nazificação de Putin.
Em 2015, os Acordos de Minsk foram assinados pela Ucrânia, Rússia, separatistas do leste e outros países europeus para pôr fim à guerra civil. Eles iniciaram um cessar-fogo e deram autonomia limitada às regiões do leste controladas pelos separatistas. Mais tarde, o presidente Petro Poroshenko e Angela Merkel admitiram que o cessar-fogo de 2015 tinha como objetivo simplesmente ganhar tempo para que Kiev reconstruísse suas forças armadas. Nem a OTAN nem o governo ucraniano pretendiam implementar o acordo.
Em 2016, o presidente Trump, seguido pelo presidente Biden, começou a armar pesadamente a Ucrânia. Os Estados Unidos entenderam que isso seria profundamente desestabilizador. Em fevereiro de 2019, a constituição da Ucrânia foi alterada para tornar a adesão à OTAN uma política obrigatória para todos os futuros governos. Zelensky, o presidente ucraniano, que foi eleito em uma plataforma de paz com a Rússia, não revogou a emenda. Em junho de 2021, a OTAN afirmou sua promessa à Ucrânia de uma eventual adesão. Os EUA e a OTAN rejeitaram a exigência da Rússia de garantias por escrito de que a Ucrânia não se tornaria membro da OTAN. Putin respondeu: “naturalmente, não podemos deixar de nos preocupar com o contínuo aumento do potencial militar e da infraestrutura da OTAN nas proximidades das fronteiras russas”. Em novembro de 2021, os Estados Unidos assinaram a Carta de Parceria Estratégica EUA-Ucrânia, que se comprometia a ajudar a Ucrânia a fazer as reformas necessárias para ingressar na OTAN. Em dezembro de 2021, Putin fez outro discurso oficial. Ele disse: “temos a obrigação de nos preocupar com a perspectiva da possível adesão da Ucrânia à OTAN, porque isso será seguido pelo envio de contingentes de tropas, bases e armas que nos ameaçam”. A Rússia apresentou suas propostas sobre garantias de segurança aos Estados Unidos e à OTAN. As principais exigências incluíam a não expansão da OTAN para a Ucrânia e o não envio de armas ou tropas para a Ucrânia. Em 21 de dezembro de 2021, Putin disse ao Ministério da Defesa da Rússia que “se os sistemas militares dos Estados Unidos e da OTAN forem implantados na Ucrânia, seu tempo de voo para Moscou será de apenas 7 a 10 minutos”.
Enquanto isso, o governo de Kiev aprovou várias leis que proíbem o uso do idioma e da cultura russa no governo, na educação e na mídia de massa. Todos os canais de televisão e meios de comunicação russos foram fechados. A Ucrânia reuniu 60 mil tropas de elite, acompanhadas por drones, ao longo de sua fronteira oriental com Donbass. A Rússia temia que a Ucrânia estivesse prestes a intensificar a guerra civil e invadir a região de Donbass, de maioria étnica russa. Putin declarou: “imagine que a Ucrânia seja um país da OTAN e inicie essas operações militares. O que devemos fazer? Lutar contra o bloco da OTAN? Alguém já pensou pelo menos um pouco sobre isso?”. Em janeiro de 2022, começaram as negociações sobre as invasões da OTAN, o acúmulo militar na Ucrânia e a guerra civil no leste. Por um breve período, parecia que Zelensky estava disposto a negociar. Mas tanto o governo dos Estados Unidos quanto os nacionalistas de extrema direita do governo ucraniano o desencorajaram fortemente a fazer a paz. Em 26 de janeiro, os EUA e a OTAN rejeitaram a exigência essencial da Rússia de uma garantia por escrito de que a Ucrânia não entraria para a OTAN. Em vez disso, o Ocidente insistiu, mais uma vez, no “direito de outros estados de escolher ou mudar os acordos de segurança”.
As negociações fracassaram, e Putin tomou a decisão de lançar uma invasão, chocando russos, ucranianos e o mundo. Desde a invasão, os Estados Unidos fizeram de tudo para aumentar o conflito, enviando mais de 100 bilhões de dólares para a Ucrânia, além de sistemas de armas sofisticadas e consultores. A luta continua e o povo da Ucrânia está pagando o preço mais alto. Pessoas comuns na Rússia, na Europa e até mesmo nos Estados Unidos também estão sofrendo as consequências. O governo dos Estados Unidos esperava um “ganha-ganha” na Ucrânia: uma derrota russa e o fim da presidência de Putin, uma Rússia enfraquecida, a consolidação da unidade ocidental sob uma América triunfante; um grande impulso na próxima luta contra a China pela supremacia; e um Novo Século Americano sob o que agora chamamos hipocritamente de “ordem mundial baseada em regras”.
A guerra está agora em um impasse. Depois de dezenas de milhares de mortes, a Ucrânia está ficando sem homens jovens para mobilizar. Milhares de pessoas, soldados e civis, continuam a morrer nas linhas de frente e em suas casas. O conflito destruiu cidades, vilas e vilarejos. Milhões de ucranianos fugiram de seu país em busca de segurança na Rússia e no Ocidente. Por quê? Para que os Estados Unidos pudessem mover seus mísseis e bases para as fronteiras da Rússia? Essa guerra não era necessária. Se a Ucrânia estivesse disposta a permanecer neutra e a garantir a proteção dos ucranianos de língua russa no leste, não estaríamos vendo agora essa carnificina e destruição. Em algum momento, a Ucrânia e a Rússia precisarão fazer as pazes, e os Estados Unidos precisarão parar de travar sua guerra por procuração com os grupos ucranianos.