No último domingo (, a aprovação do uso emergencial das vacinas da Astrazeneca e Coronavac pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) inaugurou um novo estágio no cenário de disputa política e caos sanitário que há meses assola o país. De um lado, o início imediato da vacinação em São Paulo marcou uma explícita derrota política do governo federal que, por meio das falas fantasiosas de conspiração do presidente Bolsonaro, balbuciava contra o que apelidou de “vachina”, frente ao protagonismo do governador João Dória, juntamente com uma escalada da pressão social pelo impeachment. Do outro, representou um sopro de esperança para uma população que bateu níveis recordes de desemprego, que enfrenta a insegurança do fim do auxílio emergencial e ainda busca formas de lidar com o luto dos quase 200 mil mortos ao longo de 2020, que ficou registrado como o ano com maior mortalidade na história no país, segundo registros da associação nacional de cartórios.
De acordo com o levantamento da universidade John Hopkins, somente no Brasil são mais de 8 milhões e meio de contaminados e 213 mil casos fatais, número inferior apenas ao dos EUA. Analisando os dados do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), a semana epidemiológica mais recente, de 10 a 16 de janeiro, registrou 379 mil novos casos, contra 319 mil no ápice da primeira onda, ao fim de julho passado. Da mesma maneira, a média móvel alcançou a taxa de 55 mil casos em 12 de janeiro, contra 45 mil em 29 de julho. Isto permite aferir que a segunda onda, marcada pela saturação progressiva dos sistemas de saúde, pelo esgotamento dos profissionais e escasseamento de recursos, avança com maior força e em proporção ainda incalculada.
Consequentemente, o imperioso início da vacinação no país significa, para muitos, um grito de libertação de um período caótico e prenúncio do tão aguardado retorno à normalidade. Sem dúvida, embora tenham chegado tardiamente em comparação a vizinhos como Argentina, Chile e México, as vacinas são a maneira mais segura e efetiva de frear a disseminação do vírus no país, assim como controlar o número de mortes e prevenir a gênese de novas cepas, potencialmente mais virulentas e/ou fatais. Elas, no entanto, não representam uma ação milagrosa, e tampouco garantem a melhora imediata do contexto nacional. A falsa sensação de controle que proporcionam pode, pelo contrário, fazê-las coadunar em um efeito psicológico que influencie, ao longo dos próximos meses, o já abalado respeito às medidas de distanciamento e cuidados básicos que podem representar a linha tênue entre a segurança coletiva e o aprofundamento da crise sanitária.
Indubitavelmente, o distanciamento, mesmo que seguido de maneira deficiente, operou em uma precarização das relações e no reforço de sentimentos de solidão e fragilidade. Manter-se longe de amigos, familiares e locais de sociabilidade rotineiros desemboca em um estresse crescente, que incide fortemente na percepção das pessoas acerca da realidade e na forma como a racionalizam. Passado um ano de pandemia que, para muitos, foi dado como perdido, seja pela perda de entes queridos, retrocessos econômicos ou somente pelas prolongadas mudanças, gera-se para muitos um desgaste psicológico entorpecente, que arrefece o sentimento de perigo e urgência, assim como reforça o anseio pelo fim destes tempos de expiação, o que explica em partes o retorno das aglomerações em bares, reuniões de amigos e festas clandestinas.
Breno Esaki / Agência Saúde
Início da vacinação nacional terá singelo impacto no primeiro momento e de forma alguma representa um salvo conduto
Todavia, é preciso lembrar que o Brasil iniciou a vacinação em regime emergencial, com foco nos grupos prioritários definidos pelo Plano Nacional de Imunização, doses suficientes para somente 4% deste, e incertezas quanto à fabricação nacional, uma vez que somos dependentes do envio de insumos provenientes da China e Índia. Some-se isto à estruturação do plano nacional em 4 fases pouco detalhadas, que não abarcam a população mais jovem e sem uma previsão para serem concluídas, e a projeção do cenário é clara. Embora significativo, o início da vacinação nacional terá singelo impacto no primeiro momento, senão insignificante, e de forma alguma representa um salvo conduto para abandonar o isolamento.
Dito isto, o ponto nevrálgico no risco envolvido na aplicação das vacinas não repousa nas afirmações fantasiosas e apocalípticas, com requintes de xenofobia, a respeito da Coronavac, até então principal vacina do país, como um instrumento colérico chinês para envenenar as pessoas, roubar suas informações com microchips ou sabotar a economia global para reorganizar a divisão internacional do trabalho. A China, vale lembrar, é um dos maiores fornecedores de insumos de biotecnologia do mundo e, portanto, opera em conformidade com os padrões internacionais de segurança e fiscalização. De acordo com relatório publicado em outubro pela Anvisa sobre a inspeção internacional de fabricantes de insumos farmacêuticos ativos (IFAs), inclusive, 35% dos ingredientes de medicamentos básicos importados pelo Brasil vêm da China, o que significa que antibióticos, anti-inflamatórios e muitos outros são, em sua maioria e a grosso modo, chineses. Entrementes, todos os protocolos de segurança foram seguidos ao longo dos testes da vacina, dentro e fora do país.
Inseridas neste contexto social conturbado, angustiante e ansioso, sem que haja profundo reforço das medidas de distanciamento, as vacinas podem se mostrar o argumento que faltava para alimentar uma perspectiva ilusória de retorno à normalidade. Mesmo quando uma vacinação em massa tiver início, o que é improvável no curto prazo, a chamada imunização de rebanho só é alcançada com a vacinação de 70% a 80% da população. Outrossim, um fator que muitos se esquecem é que o tempo hábil de ação das vacinas para gerar anticorpos e uma memória de defesa no organismo não é imediato.
Estudos realizados com a vacina da Pfizer, por exemplo, indicam que o imunizante começa a demonstrar seus primeiros efeitos apenas 12 dias após a primeira dose, chegando a 52% de efetividade. Os 95% apontados ao fim da terceira fase de testes são somente alcançados a partir de uma semana após a segunda dose, aplicada 21 dias após a primeira. Durante este período, sem o isolamento, a vacina não é capaz de gerar proteção, como ocorreu em Israel, onde 240 pessoas foram contaminadas poucos dias após tomar a primeira dose do imunizante. Para completar, não há ainda dados suficientes que constatem se as vacinas impedem a propagação do vírus, apenas que são capazes de conter a sua manifestação e gerar um quadro enfermo.
Em terras tupiniquins, onde as medidas de contingência têm encontrado fortes dificuldades de manutenção e florescem as correntes de fake news, a abertura de uma vacinação mais ampla, portanto, pode vir acompanhada por uma evasão dos espaços de solitude e, assim, catalisar a formação de locais de aglomeração, em um frenesi de festejos pela tão esperada retomada à normalidade que, paradoxalmente, estaria atuando como um convite ao vírus para se acomodar e permanecer por quanto tempo quiser, acompanhado de suas variantes e fazendo saltar nos gráficos os novos números. Desta forma, “apesar da vacina” (como diria Bolsonaro, em seu típico tom negacionista), há ainda um desafio social em campo, ao qual é preciso esforço ininterrupto para manter os anseios das pessoas amansados por um período um pouco mais longo, suficiente apenas para que um breve momento de catarse não tenha desfecho na tragédia.
(*) Fellipe Souza Sena é bacharel em Ciências & Humanidades e graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal do ABC.