Analisamos as propostas econômicas de Javier Milei incluídas no programa apresentado pela coalizão La Libertad Avanza à Justiça Nacional Eleitoral da Argentina.
No plano encontramos 64 propostas de caráter econômico. Excluímos 27 propostas da análise, 43%, porque são propostas “triviais”, ou seja, são generalidades que nenhum candidato poderia rejeitar ou opor-se e, portanto, não nos permitem distinguir entre os candidatos e não contribuem para a compreensão do plano.
Por exemplo, a proposta n.º 5 da seção sobre Reforma Econômica, que afirma: “Incentivar o investimento privado” ou a proposta n.º 2 da seção sobre Tecnologia e Infraestrutura: “Incentivar o investimento no turismo”. Nenhum candidato poderia opor-se ou propor asfixiar o investimento privado.
Também não incluímos na análise o que chamamos de propostas supérfluas. Ou seja, aquelas que propõem o que já existe ou já foi resolvido, como é o caso do ponto 25 da seção de Saúde, que para o PAMI (agência de saúde pública argentina) propõe: “Que os profissionais de saúde comprovem a sua especialidade”, ou seja, propõe uma exigência que atualmente é um requisito de acesso ao cargo.
Excluímos também propostas de consequências imprevisíveis e de moralidade duvidosa, como a n.º 27 da seção de Saúde (sim, saúde), que propõe: “Criar empresas produtivas em todos os serviços penitenciários”. Poderia ser uma boa iniciativa para que os presos pudessem trabalhar e contribuir para a sociedade, o que serviria para a sua reintegração, no entanto, dada a hegemonia do mercado que rege os princípios do anarco-capitalismo de Milei e a sua inspiração no modelo norte-americano de capitalismo, esta proposta seria rapidamente transformada em um negócio de prisões privadas, de superlotação das prisões e de grandes lucros baseados nos baixos salários de uma população abundante e semi-escrava[1].
Resumo do plano de Milei e contraste com a Ditadura, Cavallo e Macri
Na primeira parte mostramos as 27 propostas restantes que resumem o plano econômico de Milei. Comparamos estas propostas com três outras experiências conhecidas de políticas neoliberais na Argentina: a ditadura, apoiando a liderança econômica de Martínez de Hoz entre 1976 e 1983, o programa econômico concebido e liderado por Cavallo durante os governos Menem e De la Rúa entre 1991 e 2001 e, finalmente, a experiência de quatro anos do governo de Macri e dos seus quatro ministros da Economia entre 2016 e 2019.
Apenas três propostas são originais por parte de Milei, ou seja, não têm precedentes em nenhum dos outros três governos anteriores: eliminar o Banco Central, eliminar a coparticipação e implementar os vouchers educacionais.
Em outras palavras, apenas 10% das políticas propostas são originais, em comparação com as políticas implementadas pelos últimos três governos juntos:
– O programa econômico de Milei coincide em quase 70% com a política econômica promovida por Cavallo, Menem e de la Rúa.
– Com 68% de semelhanças, o plano de Milei parece o plano de Martínez, de Hoz e da Ditadura.
– Não muito distante, com 63% de coincidências, estão as semelhanças entre o programa de Milei e o governo de Macri.
Cronograma
Milei promete que desenvolverá o seu plano econômico em três fases, as quais levarão cerca de 35 anos para serem totalmente implementadas. Não especifica como será capaz de perpetuar as suas políticas ao longo de “8,75” governos.
O cronograma não indica quanto tempo levará cada etapa, nem quanto de progresso será alcançado em cada uma delas. Também não detalha o progresso que fará em suas propostas. Apresentar um cronograma sem estas definições não é uma boa conduta.
Propostas repetidas
90% das propostas de Milei têm resultados que podemos antecipar, porque repetem políticas neoliberais que foram praticadas em pelo menos uma das três tentativas anteriores. Milei define-se como austríaco ou anarco-capitalista, mas o seu plano assemelha-se a 90% dos programas neoliberais que consolidaram três experiências de fracasso no nosso país.
Estas medidas repetidas consistem basicamente em:
• Abertura financeira: que sempre conduziu à especulação financeira, à fuga de capitais estrangeiros e à crise da balança comercial, entre outras consequências negativas como o aumento dos rendimentos financeiros à custa da rentabilidade dos setores produtivos.
• Liberalização comercial: que sempre levou a déficits comerciais e à desindustrialização.
• Eliminação da política fiscal:
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Redução de impostos, que gera sempre mais desigualdade, inflação e fuga de capital.
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Corte de gastos: que sempre leva à deterioração de serviços públicos e privados e aumenta da inflação.
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Haverá alguma economia nos gastos com saúde e educação, porque os cidadãos dos países vizinhos já não virão para cá para se tratarem ou estudar, mas, pelo contrário, começaremos a enviar doentes e estudantes para esses países, porque a educação e a saúde públicas desaparecerão aqui.
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Estado mínimo, o que significa péssimos serviços públicos, maiores custos de saúde e educação, menos ciência e mais fuga de cérebros.
• Flexibilização trabalhista, que conduz a empregos precários, instáveis, inseguros e mal pagos. A formalidade aumentará, porque os empregos formais passarão a ser mais parecidos com os empregos informais atuais.
• Aumento da iniciativa privada e do empreendedorismo, à semelhança do Equador, El Salvador e Colômbia, onde as pessoas decidem seguir o caminho apontado por Elon Musk e abrrir quiosques, carrinhos de cachorros-quentes e empresas de lançamento de satélites.
• Aumento da emigração para aqueles que procuram melhores empregos e, consequentemente, as receitas externas melhorarão graças às transferências dos emigrantes que enviarão dinheiro aos seus familiares.
• Privatização de empresas e serviços públicos, como a saúde e a educação.
• Eliminação da política monetária. Esta política já foi aplicada com a Convertibilidade e sabemos os seus resultados. Há muitas maneiras de abolir a política monetária sem perder a soberania monetária. Por exemplo, adotando uma regra monetária muito rígida, adotar um caixa de conversão como a Convertibilidade (que terminou com taxas de desemprego de 14% com Menem, 18% com de la Rúa e mais de 21% na crise de 2001).
• Sistema de pensões por capitalização. Proposta totalmente implementada durante a Convertibilidade com enormes consequências fiscais. A transferência das receitas das contribuições para as AFJP (Administradora de Fondos de Jubilaciones y Pensiones – empresas que administram fundos de pensão ) custará ao país uma redução de quase 6,7% das receitas, que serão transferidas para as AFJP. O governo continuaria a assumir os pagamentos aos atuais aposentados e pensionistas, que representam quase 8% do PIB. Como é que o governo vai financiar essas despesas? Emitindo mais dívida, sobre a qual a sociedade terá de pagar juros adicionais, que, aos níveis atuais de despesa, representariam quase 1% do PIB por ano a mais? Ou seja, teria de assumir um déficit de quase 9% do PIB suplementar durante vários anos até que o regime de capitalização estivesse plenamente operacional.
A parte 2, que sintetiza alguns resultados econômicos de governos anteriores que aplicaram as mesmas políticas hoje propostas por Milei, mostra que se trataram de períodos de baixo crescimento e de uma economia baseada na dívida e no setor financeiro, o que resultou na diminuição do bem-estar dos trabalhadores e no crescimento insustentável da dívida, representando um pesado fardo para as gerações e governos futuros. A dívida da ditadura foi o gatilho para a década perdida, a do governo Menem-Cavallo terminou com a crise de 2001 e a do governo Macri com a sua derrota no primeiro turno e o retorno do FMI.
Oliver Kornblihtt / Mídia NINJA
Comício de encerramento de campanha do Javier Milei, em uma casa de shows, em Buenos Aires
Propostas originais
• Dolarização. Milei explicou que o seu plano não é dolarizar, mas sim que o público escolha a moeda, que pode ser qualquer uma, por exemplo, o guarani paraguaio, o dólar americano ou o renminbi chinês (bem, não o chinês porque é comunista), que são todas moedas estáveis, ou o peso argentino e o Bitcoin, que não são.
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Quando o menu só tem sapos, cobras e milanesas, não é um menu, porque as opções são falsas e só há uma alternativa. A dolarização não será uma consequência da liberdade de escolha, mas de um processo que visa destruir o peso, no qual o próprio Milei está envolvido ao anunciar, como candidato, que vai eliminar a moeda e que uma taxa de câmbio elevada é conveniente, gerando assim a expectativa auto-realizável de que ela será desvalorizada.
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Em termos geopolíticos e de defesa nacional, a dolarização é um salto para a subordinação definitiva. Perde-se não só a soberania monetária, mas também a soberania política e econômica. Com a dolarização, até à Reserva Federal dos EUA será necessário pedir autorização para renovar as notas antigas[2]. Imaginem como as nossas decisões políticas se tornarão mais dependentes da vontade dos EUA e das suas corporações, que têm uma influência decisiva na política externa dos EUA[3].
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A inflação não acabará com a dolarização. Diminuirá, mas a inflação depende também de variáveis estruturais como a produtividade e a concorrência de mercado, que avançam mais lentamente em países médios como a Argentina. A inflação continuará com a dolarização e, embora seja mais baixa, será quase sempre mais elevada do que nos Estados Unidos, e perderemos gradualmente a competitividade internacional. A longo prazo, a Argentina será um país muito caro, como são hoje El Salvador, o Panamá e o Equador, e os investimentos produtivos no país deixarão de ser atrativos.
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Quando a economia for cara em relação ao resto do mundo, não será possível corrigir o desequilíbrio das contas externas alterando apenas um preço, a taxa de câmbio nominal (porque não haverá moeda e não haverá taxa de câmbio) e a única alternativa será baixar todos os preços, o que só será possível através de uma grande recessão.
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Um aspecto que não é levado em conta é que, com a dolarização, teremos de acrescentar mais um item de importação às nossas frágeis contas externas. À medida que a economia cresce, vai precisar de mais dinheiro, ou seja, notas de dólar, que terão de ser importadas dos EUA. O lado negativo destas compras é que as receitas fiscais da senhoriagem (lucro do governo derivado da emissão de moeda ou diferença entre valor nominal do dinheiro e custo para produzí-lo) serão perdidas e entregues à Reserva Federal dos EUA. As receitas de senhoriagem geradas pelo aumento do montante de moeda não inflacionista (ou seja, a parte não inflacionista da emissão monetária) exigido pela economia argentina em anos normais foram estimadas em cerca de 1,6% do PIB entre 2004 e 2014, ou seja, cerca de 7,7 bilhões de dólares em valores atuais de receitas que perderíamos e um montante semelhante que teríamos de gastar na importação anual de notas de banco dos EUA[4]. O déficit fiscal aumentará num montante indeterminado, porque em países dolarizados como o Equador, o Estado é normalmente responsável pelo fornecimento de parte da moeda estrangeira ao mercado interno.
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Outro aspecto que não se leva em conta com a dolarização é que, embora o “risco cambial” seja reduzido,[5] o “risco bancário” aumentará e, com ele, os custos financeiros. Tal como durante a Convertibilidade, a dolarização requer não só uma disciplina fiscal rigorosa, mas também saldos excedentários no comércio externo, algo muito difícil de conseguir na Argentina e ainda mais se a taxa de câmbio se valorizar[6]. Se houver escassez de moeda estrangeira, como durante uma seca, por exemplo, não haverá desvalorizações para melhorar as contas externas e, em vez disso, existe o risco de corridas aos bancos, porque os dólares disponíveis não serão suficientes para cobrir os saques de depósitos que existem em qualquer sistema bancário fracionário.
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O Banco Central deixará de ter capacidade de socorrer os bancos que sofrerem fugas de capital logo que o público perceba que há poucos dólares e muitos depósitos dolarizados. Os bancos terão de manter mais reservas líquidas do que num sistema com soberania monetária – criando um Fundo de Liquidez, como no caso do Equador, por exemplo – o que resultará em enormes quantidades de liquidez ociosa, racionamento de crédito e taxas de juro mais elevadas para compensar os baixos rendimentos das reservas obrigatórias. [7] Assim, as taxas de juro nominais cairão, mas serão permanentemente mais elevadas do que nos EUA, o que representa outra desvantagem competitiva sistêmica como resultado da dolarização.
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O plano de dolarização delineado por Milei baseia-se na emissão de mais dívida externa, que ele garantirá com os ativos do FGS da ANSES e os títulos do Estado detidos pelo BCRA e/ou com a colocação desses títulos no mercado internacional. É uma questão de emitir nova dívida ou vender ativos, o que na prática é a mesma coisa, reduzindo o patrimônio líquido de todos os argentinos.
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Atualmente, 2% do déficit do PIB é explicado pelos juros da dívida, e a nova dívida implicaria mais 1% do PIB em juros. Será que a dolarização será capaz de suportar um encargo financeiro de 3% do PIB?
• Os vouchers educacionais. Nada melhor do que os estudantes chilenos que saíram à rua para demonstrar a sua felicidade com a bondade do modelo educativo chileno para provar que é um paraíso. Concebidos para atrair os incautos, a realidade é que os vales ou cupons – para os chamar pelo seu nome espanhol – aumentarão temporariamente a procura de estudantes por instituições privadas, que poderão aumentar os seus preços à vontade. Em outras palavras, eles não permitirão que as famílias de baixa renda tenham acesso à universidade pública e tornarão o serviço mais caro para as famílias de renda média, as principais vítimas.
• Eliminar a coparticipação. Não há pormenores a analisar nesta proposta, nem uma única pista de como se pretende conseguir o impossível de, por um lado, não cumprir a constituição de 1994, que mandava aprovar uma nova lei, e, ao mesmo tempo, conseguir o consenso de todas as províncias para o fazer.
Conclusão
O modelo econômico proposto por Milei não tem nada de original. É um copia-e-cola de um passado que se revelou muito caro para a Argentina, pelos danos sociais que gerou e pela dívida que deixou como herança para as gerações e governos seguintes.
Notas: