A Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, a MINUSTAH, foi o tema do Encontro Internacional “Ocupação, Soberania, Solidariedade: um tribunal popular sobre os crimes da MINUSTAH no Haiti”, realizado em Porto Príncipe em dezembro de 2019. Com o objetivo de fazer um balanço dos principais danos causados pelas forças de ocupação desde 2004, reuniram-se mais de 200 pessoas, entre haitianos e estrangeiros, dezenas de movimentos sociais e representantes de organizações estrangeiras, dentre elas a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
Quando lançada internacionalmente, a MINUSTAH foi apresentada como um novo modelo de “missão de paz”, Peacebuilding, (em português: construção da paz), idealizado para evitar novos conflitos e criar condições em prol de uma atmosfera de paz sustentável. Tal ambiente estaria baseado na atuação de uma multiplicidade de atores internacionais que contribuiriam para a reconstrução das estruturas governamentais, dos setores econômicos, dos corpos de segurança e do acesso às necessidades básicas da população. Este processo, que, a médio e longo prazo, garantiria o desenvolvimento do Haiti, inclui não apenas a reconstrução física, mas também o fornecimento de apoio na restauração de seus pilares políticos e jurídicos.
No entanto, apesar do otimismo deste novo “modelo”, após os 13 anos da MINUSTAH, o Haiti ainda é o país mais pobre das Américas, segundo a classificação do IDH (índice de desenvolvimento humano) de 2019, não conseguiu restabelecer-se após o terremoto de 2010, conta com milhares de relatos de violência por parte dos “capacetes azuis” e hoje tem altas taxas de mortalidade por cólera, uma epidemia inexistente historicamente no Haiti, e que surgiu em decorrência da chegada de um contingente militar infectado pela bactéria. Qual seria uma possível explicação para esse cenário?
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O que fica claro no Haiti é que cada vez com mais frequência, estas intervenções chamadas humanitárias ou “táticas de choque” após crises político econômicas – que podem ter sido mais ou menos estimuladas -, constituem um discurso direcionado à sociedade internacional sobre a necessidade de ocupações militares e sobre a urgência da entrada de empresas privadas internacionais em esferas antes reservadas ao serviço público nacional. Tudo isso em nome da promoção dos direitos humanos e da “eficiência no combate a uma grave crise”, capitaneadas por instituições internacionais, que, ao final, servem perfeitamente para a expansão do modelo econômico neoliberal.
Wikicommons
Haiti ainda é o país mais pobre das Américas
Por essa presença massiva do capital privado no Haiti, mas que não se reflete em nenhuma mudança estrutural ou mesmo conjuntural na situação de miséria e abandono em que vive a maioria dos haitianos, o país tem sido chamado de a “República das ONGs”. Há estimativas de que mais de 90% de toda a ajuda humanitária direcionada ao Haiti tenha sido gerida por organizações não governamentais, sem qualquer tipo de controle ou de transparência.
Este cenário neoliberal que transfere grande parte do poder econômico, anteriormente do Estado, para instituições financeiras, bancos de desenvolvimento e grandes corporações e/ou organizações não governamentais, não é exclusivo do país caribenho, mas ali encontrou o espaço ideal para avançar sob a rubrica de “ajuda humanitária”. E naquele espaço estratégico para a geopolítica estadunidense, se desenvolve uma espécie de “filantrocapitalismo”, que ao mesmo tempo em que justifica as intervenções humanitárias, a cooperação para o desenvolvimento e a privatização dos espaços públicos, reforça a lógica das relações de dependência e de colonialidade entre os países do Norte e do Sul e, mais uma vez, submete ao sofrimento a população do primeiro país independente das Américas.
A partir destas conclusões, surgiu um movimento internacional de solidariedade ao Haiti que pretende revelar os interesses que existem por trás deste discurso das “elites do desenvolvimento”, vizibilizar as violências cometidas no decorrer da MINUSTAH assim como reforçar a busca por justiça e reparação às vítimas.
*Charlotth Back é integrante da Secretaria Internacional da ABJD e professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro