A península coreana possui uma história de resistência à dominação estrangeira e de busca por autonomia. A trajetória de dor e de sobrevivência coreana possui feridas rasgadas por períodos tenebrosos como o da colonização japonesa, de 1910 a 1945, e como o domínio dos Estados Unidos, a partir de 1945.
O período da revolução coreana, de 1950 a 1953, uma difícil guerra contra o imperialismo norte-americano, que dividiu a Coreia em República Popular da Coreia (a do Norte) e República da Coreia (a do Sul, sob domínio norte-americano) também deve ser citado, sem nos esquecermos que a luta coreana por emancipação não se resume somente ao século XX e XXI.
Até 1443, na era Joseon, o alfabeto oficial da Coreia era o chinês. Somente com a criação da escrita Hangeul, no mesmo ano, que a nação adquire seu alfabeto oficial. Com esse ensaio, será demonstrado que a luta por emancipação coreana também se expressa por meio da arte, em que utilizo como objeto de análise o livro de ficção Hong Gildong, publicado em 1612 (GYUN, p.1) por Heo Gyun.
Trata-se do primeiro livro escrito em Hangeul e que possui uma interessante narrativa de subversão. A história descrita pelo livro se inicia exatamente no ano em que foi inventado o alfabeto coreano pelo rei Sejong, em 1443 (GYUN, p.8). A obra é um clássico coreano.
Minha leitura aponta para a ideia de que esse livro quebra um processo de dominação por meio de signos, no sentido do termo sausurriano, tanto de forma concreta quanto de forma conceitual: a forma concreta se expressa pela maior autonomia da língua coreana ao ter seu alfabeto próprio, posto que, anteriormente, as histórias coreanas eram dominadas pelo alfabeto chinês, dificultando a criação de uma identidade nacional e uma alfabetização ampla do povo.
A utilização de um alfabeto próprio, portanto, facilitaria a comunicação entre os habitantes da nação e impulsionaria a emancipação deste povo.
A língua e o alfabeto funcionam como instrumento de dominação dos impérios sobre os países tributários. A Coreia pagava tributos para a China e dependia militarmente desta (ARMSTRONG). De tal forma, a língua funcionava como mais uma forma de impor a ideologia chinesa sobre o povo coreano.
Além desse processo linguístico, a Coreia também foi dominada pela influência do pensamento filosófico chinês, na qual Confúcio se destacava como expoente teórico. Este possuía uma ideia rígida de hierarquia, em que deveria se respeitar os pais, ter uma simbologia rígida de prazos (três anos de luto após o funeral, por exemplo), além do apreço e respeito pelos rituais (CONFUCIO, p.43).
Para o filósofo, a família sanguínea era de maior importância. Logo, os filhos bastardos não deveriam ter tanta relevância hierárquica no núcleo familiar.
Toda essa questão estruturante do pensamento de Confúcio é subvertida na narrativa de Hong Gildong. Primeiramente Hong Gildong é um filho bastardo, que foi gerido devido à necessidade emitida em um sonho de bom agouro do ministro-mor Hong. O rugido do dragão azul emitia um bom presságio, de acordo com ele.
O homem, como sentia a necessidade de gerir um filho naquele momento, avançou sobre uma de suas “criadas”, Chun Sim (GYUN, p.9). Logo, nasce Hong Gildong, um filho brilhante e ilegítimo. Essa questão do seu brilhantismo, mesmo tendo em conta suas origens, já desafia os preceitos coloniais confucianos da China, e é uma marca da subversão presente em todo o texto.
“Logo se vê que esta criança é dotada das qualidades de um herói, mas onde isso vai prestar, se nasceu de uma criada? Que desgraça foi a sua teimosia naquele dia! Hoje, é somente arrependimento!” (GYUN, p.10). O lamento da família ecoa diante do impasse confuciano. Segundo os preceitos puros confucianos, “em nossa aldeia, aqueles que são corretos são muito diferentes.
Os pais protegem os filhos, e os filhos protegem os pais. Retidão é algo encontrado nesse comportamento” (CONFÚCIO, p.43). Ora, compreende-se que era necessário para ser correto haver uma relação forte entre pai e filho, mas como haveria retidão com um filho bastardo?
Para entender a questão da subversão de hierarquias do romance, pode ser inferido que o autor de Hong Gildong projeta a questão familiar na questão nacional, entre China e Coreia. Como um povo bárbaro, um povo que não era chinês poderia alcançar o Caminho? Tal conceito confuciano era uma forma de alcançar a virtude (CONFÚCIO, p.43).
Confúcio questiona a probabilidade dos povos bárbaros terem uma boa liderança quando cita que “tribos bárbaras com seus líderes são inferiores aos reinos chineses sem líderes” (CONFUCIO, p.46). De fato, compreende-se a partir dessa contestação que Confúcio não via entre os povos não-chineses uma possibilidade tão alta de êxito para alcançar o caminho da liderança.
Em relação a esse entrave hierárquico entre povos de Confúcio, entra a subversão do autor coreano. O personagem Hong Gildong alcança êxito e cumpre os ritos destacados por Confúcio para seguir o Caminho. Ele também respeita os pais, mesmo sendo “ilegítimo”. E se projeta, portanto, enquanto Coréia, sendo a China os entraves para seu êxito.
É possível perceber que essa subversão não se faz em uma relação completa de oposição de Confúcio. Tanto que a questão do respeito hierárquico entre famílias ainda existe na Coreia até hoje e essa tradição manteve-se, até mesmo na fala, ao entender que há níveis de respeito nos verbos e esse processo de polidez é rigidamente seguido no país. Porém, essa subversão ocorre dentro desse sistema de respeito ao mostrar o valor de um filho bastardo, o qual, mesmo não tendo as mesmas origens, poderia ser valoroso e seguir os rituais.
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Página de abertura do romance coreano do século XVII Hong Gildong jeon com selo da Biblioteca Nacional da Coréia
O próprio Hong Gildong reclama que também gostaria de estudar e seguir a tradição: “Se se nasce homem neste mundo, o certo não seria estudar os caminhos de Confúcio e de Mêncio, agir com coragem lá fora para se tornar um fiel súdito do rei?” (GYUN, p,11). Em relação a pretensão de seguir os ensinamentos de Confúcio, Hong Gildong já torna seus princípios verticalizados para o Caminho que o filósofo chinês postulava.
Para Confúcio, era necessário que o homem de retidão tivesse coerência nas palavras. Essa coerência no filho ilegítimo já se destaca quando ele avisa para a mãe que prevê uma ameaça no seu futuro: “Difícil prever os acontecimentos futuros. Não faça pouco de minhas palavras, e tente enxergar o que pode vir em breve.” (GYUN, p.13)
Como posteriormente visto na narrativa, a ameaça prevista por Hong se torna real e ele precisa se exilar, se tornando marginalizado por um tempo. A frase já demonstra a coerência de Hong Gildong e a importância que dava às palavras, mostrando que mesmo esse sendo um filho ilegítimo, cumpria todos os pontos citados por Confúcio para se alcançar êxito.
Também dentro desse romance, que trata sobre questões de dominação, é explicado como o oprimido pode se tornar violento após a sua exclusão. Por inveja dos outros pelo seu talento nato e por dificuldade por ser seoja, Hong Gildong passa por uma tentativa de assassinato, da qual consegue escapar. Dentro do calor do momento, Hong Gildong em uma explosão de fúria mata os responsáveis pelo atentado.
Dentro desse processo, entra novamente o questionamento da filosofia confuciana, o “certo”, segundo Confúcio, era não ser impaciente e também apresentar generosidade (CONFUCIO, p.49) . Hong Gildong encontra-se diante desse impasse. “Ainda que alguém me faça mal, como posso fazer mal em retorno?”. Em seguida: “Como poderia romper com os deveres morais familiares por uma raiva momentânea?” (GYUN, p.21).
Entendendo que Hong Gildong também fala pelo processo do povo coreano, compreende-se que essa pergunta também se expande para o conflito entre a raiva perante as injustiças que o povo sofreu diante da guerra chinesa e também a vontade de respeito, de adquirir honra ao seguir os mandamentos confucianos.
A forma com que Hong Gildong encontra de lidar com a situação de raiva e de explosão encarada perante essa resistência de revidar diante do atentado é de se afastar da família para conseguir resolver esse dano moral que causou a si próprio.
Mesmo assim, ele pretende corrigir os seus atos e também jamais se afastar do Caminho. Assim, se despede dos pais, prometendo voltar. Essa promessa de volta diz respeito à questão de Confúcio de emitir a vontade de que houvesse sempre notícias dos filhos para com os pais (CONFUCIO, p.41).
Hong Gildong, ironicamente, torna-se ladrão, contudo ele encara toda essa situação como fruto do Caminho, do destino que teria que enfrentar. “Eu não tinha aonde ir e o acaso me trouxe aqui.
Decerto, foi um desígnio dos céus. Me entregarei por completo a este antro de ladrões para realizar os intentos e os dotes de um legítimo varão” (GYUN, p.25). Diante disso, aceita o seu processo para que possa corrigir o dano moral que tenha causado e também para que possa tornar-se uma figura legítima diante dos olhos do povo.
Em relação aos saques que realizaria, Gyun demonstra que Hong Gildong jamais saiu dos valores morais confucianos. O mesmo justifica: “Sem poder encontrar paz na própria casa, confiei meu corpo à montanha e pretendia envelhecer junto às árvores.
Mas o céu nem isso me permitiu, e caí no reduto de ladrões. Contudo, jamais roubei um único fio de cabelo dos bens do povo, tirei sim fortunas dos safados e subornos dos governantes locais e por vezes subtraí grãos do reino” (GYUN, p.46). Subverteu as hierarquias e as regras apenas pelas demandas do povo, ou seja, diante da emergência sincera da população, como a fome, Hong Gildong saqueou e roubou.
Essa situação também pode ser interpretada como uma clara analogia entre a situação do povo coreano diante da dominação do povo chinês na era Joseon.
Diante dessa questão de roubo por necessidade, o autor pega o argumento do próprio Confúcio. Um bom líder é aquele que é generoso e faz tudo pelo povo, como Confúcio relataria em os Analectos. E justamente, foi dessa forma que Hong Gildong comportou-se durante seu tempo como marginalizado.
Por fim, Hong Gildong alcança uma posição de ministro da guerra e posteriormente, cria seu próprio reino. Dentro desse processo, ele consegue zelar pelo funeral de seu pai, seguir os ritos de 3 anos e também ser generoso com sua população. Além de seguir a filosofia da guerra chinesa, de Sun Tzu, que é citado no próprio livro ( GYUN, p.18).
O livro se encerra justamente com a afirmação de que os ritos foram seguidos: “Que formosura tudo que Gildong alcançou! É verdadeiramente um grande varão que tornou real tudo aquilo que desejava! Ainda que tenha nascido de mãe humilde, fez dissipar a mágoa acumulada no peito e reuniu em si a dedicação filial e o amor fraternal, esplêndido e raro de todos os tempos, leva-se aqui ao conhecimento da posteridade.” (GYUN, p.73-74).
Esse conhecimento para posteridade, citado pelo autor, é justamente o processo de autonomia alcançado por Hong Gildong, mesmo diante de todas as injustiças e discriminações. A narrativa direciona a mensagem, por meio da própria estética, marcada por um alfabeto próprio ao povo coreano.
E também por sua história, marcada pela conquista de um cidadão marginalizado de ampla honra e respeito pela população, família e nobres. É possível compreender que dentro do livro de Hong Gildong, há uma forte narrativa de emancipação coreana diante da dominação chinesa. Uma forte narrativa que subverte uma ordem pressuposta pela filosofia chinesa, se utilizando, porém, dos argumentos da mesma para enaltecer a própria narrativa de autonomia coreana.
O que fica para a posteridade é um romance que trata sobre a independência e conquista de mérito por parte dos coreanos. E essa brisa de autonomia continua a bater até hoje quando se ressoa o nome de Hong Gildong, um cidadão nitidamente coreano.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARMSTRONG, Charles K. Korean History and Political Geography. Asia Society. Disponível em: https://asiasociety.org/education/korean-history-and-political-geography Acesso em: 15 de nov de 2020
CONFUCIO. Os analectos. Primeira ed. 2006. 256 p.
GYUN, Heo. A História de Hong Gildong. Primeira ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2020.