O primeiro evento da tão esperada visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à China foi a cerimônia oficial de posse de Dilma Rousseff como chefe do Novo Banco de Desenvolvimento (“Banco do Brics”) no dia 13 de abril. A nomeação da ex-mandatária do Brasil para o cargo demonstra a prioridade que o petista dará ao bloco em seu governo.
Nos últimos anos, o Brics vinha perdendo parte de seu dinamismo. Uma das razões foi o recuo do Brasil – que sempre foi um dos motores do grupo – devido à escolha feita pelos governos Temer e Bolsonaro (2016-2022) de se alinharem com os Estados Unidos.
Em seu discurso, o presidente Lula fez duras críticas ao FMI e aos países desenvolvidos, que “querem nos governar [os países em desenvolvimento] sem ter mandato” e à hegemonia do dólar, questionando por que os países do Sul Global não podem fazer comércio em suas próprias moedas.
Logo após a cerimônia, Lula visitou um centro de pesquisa da Huawei, onde foi recebido pelo presidente da companhia chinesa mais atingida pelas sanções dos EUA. No ano passado, os lucros da Huawei despencaram 69% na comparação anual, para US$ 5,18 bilhões. Os sinais do realinhamento geopolítico brasileiro não poderiam ser mais claros.
Um novo impulso para o Brics?
Após a última reunião de cúpula em 2022 em Pequim (online), a ideia de expandir o grupo se fortaleceu e há boas chances de que mais países se juntem ao Brics este ano. Três deles já solicitaram oficialmente a adesão ao grupo (Argentina, Argélia e Irã), e outros estão publicamente considerando sua adesão, como Indonésia, Arábia Saudita, Turquia, Egito, Nigéria e México.
O Brics ocupam um lugar cada vez mais importante na economia mundial. Em PIB pelo Poder de Paridade de Compra (PPC), a China é a maior economia, a Índia é a terceira, a Rússia a sexta, e o Brasil a oitava. O bloco representa agora 31,5% do PIB global PPC, enquanto a participação do G7 caiu para 30%.
Espera-se que eles contribuam com mais de 50% do PIB global até 2030, sendo que a ampliação proposta quase certamente antecipará isso.
Por outro lado, o comércio bilateral entre eles também cresceu robustamente: o comércio entre Brasil e China vem batendo recordes a cada ano e atingiu US$ 150 bilhões em 2022; já entre Brasil e Índia houve um aumento de 63% em 2021, atingindo mais de US$ 11 bilhões; Rússia e Índia triplicaram seu comércio no último ano, expandindo-se para US$ 32,8 bilhões, enquanto que China e Rússia saltaram de US$ 147 bilhões em 2021 para US$ 190 bilhões em 2022, um aumento de cerca de 30%.
A dinâmica do conflito na Ucrânia aproximou-os politicamente. A China e a Rússia nunca estiveram tão alinhadas, com uma “parceria sem limites”, como se viu na recente visita do Presidente Xi Jinping a Moscou. A África do Sul e a Índia não só se recusaram a ceder à pressão da Otan para condenar a Rússia pelo conflito ou impor-lhe sanções, como se aproximaram ainda mais de Moscou. A Índia, que nos últimos anos tem estado mais próxima dos Estados Unidos, parece estar cada vez mais comprometida com a estratégia de cooperação do Sul Global.
Recentemente, uma pesquisa de opinião realizada pelo Conselho Europeu de Relações Exteriores revelou que 80% dos indianos e 79% dos chineses acreditam que a Rússia é um “aliado” ou um “parceiro necessário”, mesmo com a propaganda maciça da demonização da Rússia pela mídia hegemônica ocidental.
China, Rússia e a Índia não são apenas parceiros no Brics, mas também na Organização de Cooperação de Xangai, o outro grande pilar da construção de uma nova ordem multipolar.
Ricardo Stuckert/PR
Posse de Dilma Rousseff como presidente do NDB, em Xangai
NBD, CRA e as alternativas ao dólar
Os dois instrumentos mais importantes criados pelo Brics são o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) e o Acordo de Reserva Contingente (ARC). O primeiro tem o objetivo de financiar diversos projetos de desenvolvimento (com ênfase na sustentabilidade), sendo considerado como uma possível alternativa ao Banco Mundial, e o segundo poderia se tornar um fundo alternativo ao FMI, mas a falta de liderança forte desde sua inauguração em 2015 e a ausência de uma estratégia sólida por parte dos cinco países membros impediu que o banco decolasse.
Atualmente, uma das principais batalhas estratégicas para o Sul Global – como enfatizou o presidente Lula – é a criação de alternativas para a hegemonia do dólar. Como o senador republicano norte-americano Marco Rubio confessou há alguns dias, os Estados Unidos perderão cada vez mais sua capacidade de sancionar os países se estes diminuírem o uso do dólar.
Praticamente toda semana há um novo acordo entre países, ou empresas, para contornar o uso do dólar, como o recentemente anunciado pelo Brasil e China, que já tem acordos semelhantes com 25 países e regiões.
Neste momento, existe um grupo de trabalho dentro do Brics cuja tarefa é propor a criação de uma moeda de reserva para os cinco países, que poderia ser baseada em ouro e outras commodities. O projeto é chamado de R5 devido à coincidência de que todas as moedas do bloco começam com R: renminbi, rublos, reais, rupias e rands. Isto permitiria a estes países aumentar lentamente seu comércio mútuo crescente sem utilizar o dólar, e também diminuir a participação do dólar em suas reservas internacionais.
Outro potencial inexplorado até agora seria o uso do fundo chamado ARC – que conta com US$ 100 bilhões – para resgatar países insolventes. Quando as reservas internacionais de um país ficam sem dólares (e ele não pode mais negociar no exterior ou pagar suas dívidas externas), ele é forçado a pedir ajuda ao FMI, que aproveita o desespero dos governos e sua falta de opções para impor pacotes de austeridade com cortes nos orçamentos estatais e nos serviços públicos, privatizações e outras medidas neoliberais. Durante décadas, esta tem sido uma das armas dos EUA e da União Europeia para garantir a implementação do neoliberalismo nos países do Sul Global.
Atualmente, os cinco membros do Brics não têm nenhum problema com suas reservas internacionais, mas países como Argentina, Sri Lanka, Paquistão, Gana e Bangladesh se encontram, nesse momento, de joelhos perante o FMI. Se eles pudessem acessar o ARC, com melhores condições de reembolso dos empréstimos, isso significaria um avanço político para o grupo, que começaria a demonstrar sua capacidade de construir alternativas para a hegemonia financeira de Washington e Bruxelas.
O NBD também precisaria começar a se desdolarizar, realizando mais operações com as moedas de seus cinco membros. Por exemplo, dos US$ 32,8 bilhões de projetos aprovados até agora no NBD, cerca de 20 bilhões eram em dólares e cerca do equivalente a US$ 3 bilhões em euros. Apenas US$ 5 bilhões em RMB e muito pouco em outras moedas.
Reorganizar e expandir o NBD e o ARC será um grande desafio. As lideranças dos cinco países precisarão estar alinhadas em uma estratégia comum que garanta que ambos os instrumentos cumpram suas missões originais, o que não será fácil. Dilma Rousseff, uma líder experiente e globalmente respeitada, traz esperança para um novo começo.
Dilma lutou contra a ditadura civil-militar do Brasil nos anos 60 e 70, foi torturada e passou três anos na prisão por isso. Ela se tornou uma das principais ministras do presidente Lula nos anos 2000 e foi eleita a primeira mulher presidente do Brasil duas vezes, até ser derrubada pelo golpe fraudulento do Congresso em 2016. Ela acaba de voltar à vida política para dirigir uma das instituições mais promissoras do Sul Global.
Afinal de contas, Dilma Rousseff nunca fugiu de grandes desafios.
(*) Marco Fernandes é bacharel, mestre em história e doutor em psicologia social pela Universidade de São Paulo. É pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e co-editor do Notícias da China/Dongsheng.