Para quem foi testemunha das eleições presidenciais no Brasil, só é possível sentir preocupação e frustração com as eleições no Reino Unido. Nos meus últimos artigos, já tinha dito que o grande ganhador aqui seria Boris Johnson e a linha-dura da direita.
Com suas ações, Johnson, o oportunista, recebeu a ira de boa parte de seus colegas, forçando muitos moderados a deixar o partido. Alguns saíram da política e outros se candidataram como independentes ou se juntaram ao partido centrista Liberal Democrats. Boris foi tão longe que até John Major, ex-Primeiro Ministro, e Michael Heseltine, um dos arquitetos do neoliberalismo britânico da era Thatcher, estão pregando o voto contra os Conservadores.
Por outro lado, o Partido Trabalhista (Labour Party), há anos, vem perdendo eleitores tradicionais. Desde a sua fundação o partido teve base eleitoral sólida na Escócia. Não tem mais. As frustrações de um eleitorado que quase nunca tem suas opções políticas contempladas viu na possível independência maior representação. A maioria dos distritos eleitorais da nação agora está nas mãos do SNP, o partido nacionalista escocês, e não parece que esta nova tendência irá se reverter nas próximas eleições.
Tanto na Escócia, como na Inglaterra, os Trabalhistas já não representam mais a classe trabalhadora (se é que as pessoas ainda se identificam assim): sem empregos de qualidade, sem chão de fábrica e sem sindicatos que os apoie. Quem sabe este é o verdadeiro legado de Tony Blair, propagador da terceira via e para quem a palavra ‘classe’ não fazia parte do repertório.
O que restou foram os nacionalismos. O virulento nacionalismo inglês, cuja maior manifestação é o Brexit, e o nacionalismo escocês que se fundamenta num passado social-democrático de um povo que se vê mais como oprimido do que opressor1.
O nacionalismo inglês, baseado na noção mítica de um império soberano cuja grandeza seria autossuficiente, não necessita da ajuda de mais ninguém, nem mesmo de seus compatriotas escoceses, irlandeses ou galeses. E a quebra da União britânica (Reino Unido) pode ser um dos efeitos colaterais do Brexit, já que a reação a esta possibilidade, por parte de quase metade dos eleitores ingleses – que formam mais de 80% do eleitorado total – é a total indiferença.
O neoliberalismo e o individualismo destruíram a compaixão, que já não existe nem mesmo entre aqueles que compartilharam a mesma trajetória, como entre ingleses, escoceses, galeses e irlandeses. Um passado comum de indústrias siderúrgica e naval, mineração de carvão e a solidariedade forjada por fortes sindicatos, destruídos por Thatcher, de nada mais vale. Outro dia, numa matéria de telejornal da BBC, John, ex-mineiro, disse que seu pai estará se revirando no túmulo quando souber que o filho votou para o partido Conservador. Assim como ele, há milhares que pensam igual nas ex-zonas industriais inglesas e galesas. E aqueles que, pelo ódio remanescente a Thatcher, não conseguem marcar uma cruz ao lado de um nome Conservador, votarão para o Brexit Party. Nada mais que o Brexit parece importar.
Pior, o que era ideia mal elaborada, vaga se transfixou em ‘Brexit duro’, que não comporta nenhum tipo de ‘sujeição’ à União Europeia: o Brexit precisar acontecer e rapidamente, não importa como e com quais consequências.
É por isso que Boris Johnson incorporou o Brexit com o seu mantra: ‘Get Brexit done’ (Brexit, já).
Desde que Boris se tornou primeiro-ministro, ele tem demonstrado total falta de pudor em fazer usos de métodos espúrios para continuar em 10 Downing Street, o que é alarmante.
Só para dar alguns exemplos, desde que as eleições começaram, os Conservadores:
1) Mudaram a arroba do Twitter do Partido depois de um debate entre Boris e Corbyn para dar a falsa impressão de ser uma conta de checagem de fatos.
2) Assim que o programa de governo do Labour foi lançado, os Conservadores lançaram um site chamado “Labourmanifesto.co.uk” com as cores do Labour e uma foto de Corbyn. O site pretendia criticar as propostas do partido.
3) Atacam o Labour Party com histórias estapafúrdias e números econômicos improvados, mas que saem na mídia conservadora sem questionamentos. Dizem os Conservadores, por exemplo, que Corbyn quer acabar com o MI5, serviço de inteligência britânico.
4)Tentam enganar a população com propostas requentadas ou enganosas (como dizer que vão construir 40 novos hospitais, quando só 6 teriam financiamento identificado nos planos).
5) Disseram que não estavam em conversa com os Estados Unidos em questões comerciais relacionadas ao NHS, o serviço de saúde, quando claramente estavam.
Uma mídia nas mãos de alguns bilionários
Para além das mentiras e jogo sujo nesta campanha, os Conservadores contam com a maior parte da mídia, que não só apoiam o primeiro-ministro e deixam de examinar as suas declarações, como também instrumentam uma grande campanha de difamação de Jeremy Corbyn. O líder trabalhista é atacado de várias maneiras, tachado de comunista, chamado de fraco, incapaz de tomar decisões, dinossauro socialista que vai levar o Reino Unido de volta aos anos 70 e à bancarrota. Mas talvez o maior estrago feito à imagem de Corbyn e do partido tenha sido a narrativa do antissemitismo.
É bem verdade que jamais um líder Trabalhista foi bem quisto pela mídia britânica que, como a brasileira, está nas mãos de uns poucos bilionários. O único Trabalhista que recebeu apoio, pós-Thatcher, foi Tony Blair, depois que ele tornou o Labour num bicho inofensivo ao tipo de capitalismo implementado por Thatcher e seus seguidores.
Assim como o PT e seus líderes foram inviabilizados pela narrativa da corrupção, Jeremy Corbyn e a esquerda do partido estão sendo destruídos através da narrativa do antissemitismo.
Tanto quanto no Brasil, ambas estas ‘histórias’ tem um fundo de verdade. Houve corrupção nos governos do PT, como também é verdade que existe antissemitismo perpetrado por alguns elementos dentro do Labour2.
A narrativa da esquerda antissemita ficou ainda mais poderosa com a saída do partido de alguns parlamentares judeus e finalmente, semana passada, com uma carta escrita, em plena campanha eleitoral, pelo rabino-chefe ortodoxo do Reino Unido, Ephraim Mirvis, dizendo que Jeremy Corbyn seria um perigo para a comunidade judaica.
Tim Green/FlickrCC
Bonecos de Johnson e Corbyn em loja na Inglaterra: eleição acontece nesta quinta
Acusações graves, com certeza, que precisam ser levadas a sério. E efetivamente, Labour, apesar de reagir lentamente, tem tentado lidar com esta questão abertamente: um exemplo é uma investigação independente sobre o antissemitismo existente no seio do partido.
Porém, não é correto dizer que Jeremy Corbyn é antissemita. Seu histórico parlamentar mostra as inúmeras vezes em que ele fez moções em favor do povo judeu tanto dentro como fora do Reino Unido. E para o bem da verdade, desde que entrou na política, ainda desconhecido, a grande causa de Corbyn sempre foi o antirracismo e a defesa da paz3. A imagem formada de Corbyn como antissemita é reforçada pelo fato do líder do Labour ter se encontrado com líderes do Hamas no passado. Isso porque a narrativa única da mídia não abre espaço para a verdadeira motivação de Corbyn, pacifista convicto: a de ser um grande defensor do diálogo para lidar com conflitos pacificamente.
O problema da ‘questão antissemita’ é o mesmo da ‘corrupção do PT’. Fica muito difícil, se não quase impossível, contra-argumentar. Nenhuma pessoa que se intitula ética pode se opor à luta contra o antissemitismo. Todos os partidos políticos e toda a sociedade tem o dever de lutar contra estes males. E pior, críticas éticas (envolvendo corrupção ou antissemitismo) fazem com que apoiadores e aliados se acuem ou não tenham coragem de se associar com os acusados. Isso aconteceu com o PT e está agora acontecendo com o Labour de Corbyn.
O que fazer quando a maior parte da mídia diz que um partido é inerentemente corrupto? O que dizer quando um rabino, que representa boa parte da comunidade judaica, está pedindo o voto contra um partido porque, diz ele, é antissemita? Quem teria a coragem de se alçar contra as palavras do rabino-chefe? E se o rabino-chefe está dizendo isso, quem fora da pequena comunidade de aproximadamente 300.000 pessoas poderia levantar a cabeça e dizer, não senhor Rabino, o senhor está errado?
Porém, se Labour ainda tem alguns elementos antissemitas nas suas fileiras, os Conservadores não são exemplos de ética, com passado e presente repletos de acusações de racismo e, mais especificamente, de islamofobia. Enquanto Corbyn é demonizado por ser visto ao lado de supostos antissemitas, o próprio Boris Johnson é conhecido por escrever colunas nos jornais de direita comparando muçulmanas que usam o niqab com caixas postais, ou dizendo que negros tem sorrisos de melancias, ou afirmando que filhos de mães solteiras não recebem boa educação. Estes descalabros de Johnson, em vez de serem condenados veementemente, como deveriam ser, são tratados como as gracinhas de um homem que ‘diz o que pensa’.
E as pesquisas de opinião mostram, tal como com Trump, que ‘mentir’ pode ter significados diferentes. A população está consciente de que quando Johnson diz que vai introduzir 50.000 novas enfermeiras no sistema de saúde, está faltando com a verdade. Mas, igualmente, estas mesmas pessoas dizem que ele está sendo sincero quando chama as mulheres muçulmanas de ‘caixas postais’, porque ele não teria papas na língua.
E porque é aceitável se referir às mulheres muçulmanas desta maneira, ou dizer que de acordo o Corão é correto enganar os outros? Em outras palavras, por que no Reino Unido é aceitável ser islamofóbico?
Quatro homens negros foram absolvidos de um crime que teria ocorrido em 1972. Para estes homens, foram quase 50 anos de luta por justiça, passaram tempo na prisão, perderam oportunidades de empregos, tiveram suas vidas pessoais massacradas, casamentos destruídos. Os quatro foram acusados por um policial branco.
O racismo no Reino Unido, como em outras partes do mundo, é inerente à sociedade, seja contra judeus, negros, asiáticos no geral ou muçulmanos e, portanto, presente em todas as partes, inclusive nos partidos políticos. Tal como no Brasil. E sim, é necessário lutar contra o racismo, seja ele de que tipo for. O que não é correto é demonizar alguns grupos, quando sabemos que o problema é institucional e muito mais extenso.
Como vimos, os problemas do Labour nestas eleições não começam com Corbyn, mas com a perda do seu eleitorado tradicional, que não tem mais porque ser leal a um partido chamado ‘trabalhista’, mesmo que este partido ainda vise a melhoria das vidas destas pessoas, como é o caso do Labour de Corbyn. Porém, há também outras causas para a falta de apelo do Labour nessas eleições que nos remete à eleição de Bolsonaro, tanto nas atitudes do Partido Conservador como da mídia. Afinal, o nome de Steve Bannon ronda ambas eleições.
Tal como no Brasil, a demonização de Corbyn não começou com as eleições. Vem ocorrendo sistematicamente desde que ele se tornou líder do partido. A lavagem cerebral vem acontecendo no conta-gotas, dia após dia. O ataque ocorre há anos e é tão generalizado que meras opiniões se tornam verdades. Verdades tão verdadeiras quanto a cientificidade da economia neoliberal, cujas premissas não podem mais ser contestadas, de tão repetidas que são.
Há outra similaridade com o que aconteceu nas eleições brasileiras: boa parte da opinião pública acha (ou finge) que Boris e Corbyn são equidistantes em suas aberrações, exatamente como fizeram os formadores de opinião brasileiros em relação a Haddad e Bolsonaro. Isso faz com que o eleitorado ache que não tem opção. Que os dois são iguais, que os dois lados mentem e os partidos de centro, por medo de se sujar e por ambições eleitorais, se omitem e atacam Labour também, perpetuando o mito da equidistância.
Nós brasileiros sabemos bem no que resultou tudo isso. Aqui não será diferente. Espero que esteja enganada.
1 Ironicamente, um lugar onde o nacionalismo está perdendo força é na Irlanda do Norte. Já faz anos que a assembleia legislativa de Stormont não se senta para sessões e muitos jovens estão cansados de uma política que não leva em conta seus desejos. Será interessante ver o que acontece nestas eleições ali
2 Existe confusão entre Israel e ‘judeus’, que implica no fato de que críticas às políticas dos governos israelenses (especialmente as anti-Palestina) são extrapoladas, abarcando também uma posição contra a existência do Estado de Israel, quando não um ataque direto aos judeus no geral.
3 Uma segunda acusação que se faz contra ele tem a ver com suas notórias conversas com líderes do Sinn Fein, quando o partido estava na ilegalidade, e também com o Hammas. Portanto, Corbyn seria amigo de terroristas