O retorno da direita ao poder na América do Sul não é um fenômeno homogêneo. É fruto de processos variados tanto em sua origem quanto em seu desenvolvimento.
Por exemplo, nos dois gigantes do subcontinente, esse retorno teve diferentes caminhos, embora as consequências comecem a se mostrar similares – mas, claro, não idênticas.
Entre os governos progressistas da região neste século, os do lulismo brasileiro e do kirchnerismo argentino foram alguns dos mais moderados, ou menos ligados ao conceito de “Pátria Grande” enaltecido por Hugo Chávez. Chegaram ao poder em alianças com o centro e se destacaram por governos de coalizão inclusive com forças de centro-direita, apesar de serem chamados equivocadamente de “comunistas” ou “extremistas” pelos atuais governantes desses países e por alguns meios de comunicação que tentam ocultar sua ideologia e um certo macartismo.
Em seu lugar, se instalaram modelos que souberam aproveitar as debilidades desse gradualismo progressista, mas que, assim como nos casos andinos, mostraram uma fortaleza eleitoral que contrasta com governos que não são capazes de apresentar grandes realizações, ou que foram simplesmente desastrosos.
Para ter alguma conexão com os casos da primeira parte, vamos começar pela atlântica mas também andina Argentina, o que também permite alguma coerência cronológica a este relato.
Argentina: o bem sucedido colapso da economia macrista
Quem acompanha os meios de comunicação portenhos, de diferentes correntes ideológicas, observará que não faltam matérias, artigos e reportagens comparando a atual crise econômica do país governado por Mauricio Macri com a gerada em 2001, que terminou em corralito, e com o então presidente Fernando de la Rúa (1999-2001) renunciando e fugindo da Casa Rosada em helicóptero.
Por isso, parece estranho atribuir um sucesso a este atual governo que provavelmente não conseguirá sua reeleição, mas é que o simples fato de que ele ainda não esteja sepultado politicamente é prova de que continua sendo forte, ao menos eleitoralmente.
O fato de que Macri está perto de ser o primeiro presidente não peronista a terminar seu mandato desde o retorno da democracia (em 1983) também é importante, mas a principal façanha conseguir essa marca apesar das cifras econômicas que está deixando, e ainda assim insistir na candidatura à reeleição.
Analisemos alguns dos números da atual gestão da direita com os de 2015, o último dia gestão de Cristina Fernández de Kirchner: a pobreza saltou do alto índice de 29,7% há quatro anos, para o ainda maior 35,1% este ano; a inflação quase se duplicou no mesmo período, passando de 27,5% a 54,5%; o desemprego que era de 6,5% alcançou os dois dígitos, e agora é de 10,6%; enquanto o salário mínimo que era equivalente a 580 dólares naquele então, agora vale menos da metade, somente 275 pesos, fruto da desvalorização – o dólar saltou de 9,5 pesos em dezembro de 2015 a 56,9 pesos neste mês de outubro, e chegou a superar os 60 em agosto, sem contar que encontra inclusive acima dos 70 em algumas casas de câmbio e no mercado paralelo, que estão aproveitando a falta de dólares na economia e o recentemente instalado controle de câmbios macrista.
Há também outros números: a taxa de juros quase triplicou, de 36,6% a 91,5%; o déficit fiscal passou de 2,7% a 4,9% e a dívida argentina, que era de 52,6% do PIB (produto interno bruto) em 2015 (cifra claramente ruim) aumentou após os 57 bilhões de dólares recebidos do Fundo Monetário Internacional (FMI) em 2018, e agora é de 92% do PIB, a quase falência, e uma dor de cabeça garantida para o próximo presidente.
Mas passemos das porcentagens intangíveis a números mais ligados aos fatos concretos e mais dramáticos: a gestão de Macri prejudicou tanto os trabalhadores, ao levar à pobreza mais de dois milhões de pessoas, quanto os empresários e a classe média, como se pode ver pelas quase 19 mil empresas fechadas no país (entre pequenos comércios, empresas menores e até filiais de grandes empresas estrangeiras que preferiram se mudar de país). Também se registrou cerca de 73 bilhões de dólares em fuga de capitais, além da perda de 36 bilhões de dólares em pagamento de juros de dívida.
A fonte de quase todas essas cifras é um estudo ainda mais complexo do Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica (CELAG), e é preciso destacar que muitos desses números são indicadores que foram atualizados pela última vez no primeiro semestre. Por exemplo, a inflação e o desemprego podem ser ainda maiores ao medir as consequências da última desvalorização do peso, após o resultado das eleições primárias e a errática reação do governo nas semanas seguintes.
Também é preciso lembrar que a comparação é com o último ano da era kirchnerista, que não foi o melhor momento dessa gestão, que teve índices muitíssimo melhores em verões anteriores, os quais permitiram a manutenção desse setor no poder durante 12 anos.
Ao se ter a dimensão do cenário argentino, não resta dúvida de que os 32% de votos que Macri conseguiu nas primárias de agosto foi um grande sucesso. Qualquer governo que produzo um desastre dessas proporções sequer cogitaria disputar a reeleição. Sem ir mais longe, o próximo caso que analisaremos envolve um ex-presidente (Michel Temer) que teve cifras econômicas menos desastrosas, e que nem pensou em reeleição, porque seus 3% de popularidade não permitiam sequer sonhar com isso.
De qualquer forma, esse resultado de Macri não nasceu agora. Ele começa com toda uma questionável (embora raramente questionada pelos meios de comunicação tradicionais) construção narrativa sobre a “pesada herança”, muito parecida à retórica usada por Sebastián Piñera no Chile, e agora por Jair Bolsonaro, no Brasil.
Brasil: do golpe de Temer ao totalitarismo legitimado de Bolsonaro
Durante os 13 anos de governo do Partido dos Trabalhadores (PT) de Lula da Silva e Dilma Rousseff, o Brasil teve grandes avanços, sendo o principal deles o de tirar mais de 50 milhões de pessoas da pobreza, segundo números da Agência das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) – que chegou a ser dirigida por um brasileiro, justamente pelo sucesso da política do país de combate à fome.
Entretanto, para chegar à vitória eleitoral de Dilma Rousseff, o PT decidiu apostar em uma aliança que foi a semente do seu declínio. O Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) sempre foi um apoio legislativo para o lulismo, mas só a partir de 2011 passou a ser oficialmente um partido governista, com direito a ministérios e até à vice-presidência, que ficou com Michel Temer.
A partir dos resultados econômicos durante o governo de Dilma, que não foram tão favoráveis quanto os de Lula mas serviram para ela se reeleger em 2014, o PT começou a sofrer com problemas ainda maiores em questões políticas: os setores de direita que passaram anos abraçados ao sucesso lulista por conveniência aproveitaram o tempo de vacas magras para se lembrar que não sintonizam ideologicamente com o partido, e rapidamente geraram uma bancada cuja principal bandeira era a queda presidenta.
Em 2016, Dilma Rousseff sofreu um impeachment apesar de não ter cometido crime de responsabilidade, foi confirmado posteriormente por informe realizado por técnicos do Senado brasileiro. O golpe contou também com a cumplicidade do Supremo Tribunal Federal (STF, máximo órgão do Poder Judiciário), que era tão consciente do seu papel nesse vexame que tentou ser salomônico e terminou cometendo nova irregularidade: se havia crime cometido por Dilma para justificar sua saída, ela teria que perder seus direitos políticos, mas a Corte decidiu mantê-los, o que evidenciou um certo sentimento de culpa de alguns magistrados.
Palácio do Planalto//Flickr
Presidente Jair Bolsonaro (esq.), Maurício Macri (centro) e Mario Abdo Benítez (dir.)
O episódio demonstra que o caso brasileiro apresenta uma diferença em comparação aos demais, com respeito a como a direita chegou de volta ao poder de forma forçada, com uma manobra institucional, após quatro derrotas seguidas para o PT nas presidenciais, e só mostrou uma hegemonia eleitoral depois disso.
Também é preciso destacar o papel da Operação Lava Jato, que colaborou e muito para essa mudança de clima político no país, e as revelações do The Intercept sobre as manipulações realizadas pelos procuradores mostram não só a pressão psicológica a testemunhas para envolver a Lula da Silva nos casos, mesmo sem ter provas do que diziam, como também a forma como preservaram líderes da direita, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, citado em listas de corrupção mas nunca investigado, por ser considerado um “aliado estratégico” pelo então juiz (e atual ministro da Justiça) Sérgio Moro.
Contudo, mesmo diante de todo esse cenário adverso, o PT poderia ter vencido as eleições de 2018. Aliás, só perdeu porque Lula não foi candidato, porque inclusive estando na prisão, as pesquisas que o mencionavam como opção eleitoral mostravam que nesse cenário ele chegaria a números próximos de 40%, enquanto Jair Bolsonaro ficaria mais próximo dos 20% – o que expõe a curiosidade de que muitos dos eleitores do ex-presidente, sem poder votar nele, preferiram a candidatura de extrema direita em vez do seu candidato, Fernando Haddad, ou de outro nome da esquerda.
Em termos de gestão, o Brasil pós-PT ainda não alcança os níveis da Argentina de Macri, mas vai por esse caminho: o desemprego, que começou a crescer preocupantemente no segundo mandato de Dilma Rousseff, agora está próximo aos 20%, sem contar o número de pessoas que estão empregadas porém vivem em situação de precarização, dentro do modelo estabelecido pela reforma trabalhista impulsada por Temer, e ainda sem contar o que está por vir com a reforma da Previdência de Bolsonaro e seu ministro Economia, Paulo Guedes – ambos os projetos foram defendidos no Congresso Nacional com a promessa de que recuperariam o emprego, o que não aconteceu na prática.
O que sim aconteceu foi uma queda de quase 15% no consumo durante esses três anos, o que também está ligado ao aumento do desemprego e à queda da produção – as estimativas de crescimento do PIB (produto interno Bruto) para 2019 feitas pelo Banco Central já foram corrigidas para baixo mais de dez vezes desde março, quando era de mais de 2%, e ficou em 0,8% em setembro.
Tudo isso explica também porque o país começa a ter cifras de pobreza que se aproximam dos níveis de antes do governo de Lula da Silva. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), mais de 3 milhões de pessoas passaram ao nível de pobreza entre 2017 e este ano, e esse número inclui casos de pessoas que têm emprego mas não recebem dele renda suficiente para melhorar sua situação social.
Outro aspecto no qual o Brasil não vê um futuro muito favorável é o das relações internacionais. Bolsonaro soube usar sua insensibilidade diplomática para fazer com que muitíssimos países se afastassem do Brasil, especialmente os europeus, com ofensas machistas à esposa de Emmanuel Macron e burlas do seu vice-presidente Hamilton Mourão aos problemas de saúde de Angela Merkel, entre outras declarações que “não condizem com a postura de um chefe de Estado”, como disse o mandatário francês, em um vídeo que vazou nas redes sociais no que conversa sobre o tema com o chileno Sebastián Piñera.
A única exceção, por enquanto, são os Estados Unidos de Donald Trump, por quem Jair Bolsonaro não esconde até uma certa veneração. Contudo, a possibilidade de que o presidente estadunidense seja derrubado por um processo de impeachment similar ao que sofreu Dilma Rousseff há 3 anos (e no qual Bolsonaro foi um dos protagonistas) poderia levar o governo brasileiro a ficar completamente isolado internacionalmente.
Talvez por isso, a grande notícia dos últimos dias na diplomacia brasileira foi a saudação do Brasil à China pelos 70 anos da revolução comunista de Mao Tsé Tung, tentando apagar aqueles primeiros meses após a vitória eleitoral de Bolsonaro, quando acusava o governo de Xi Jinping de supostamente se aliar ao PT para “comprar a soberania do Brasil”. A mensagem recente rendeu ao mandatário brasileiro um convite para visitar Pequim neste mês de outubro, mas ele terá que mostrar que pode conter seu anticomunismo, para não cometer outra gafe e voltar da Ásia com boas notícias, como a de uma possível reaproximação com os BRICS – em junho, durante a cúpula do G20, o Brasil mostrou certo desprezo para como as relações com Rússia e China, que por sua vez se aproximaram de países como México e Turquia, o que levou a rumores de que a sigla poderia mudar para algo assim como TRIMCS, ou outra forma que soe melhor.
Quem não soube se conter foi o ministro brasileiro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que esteve na Alemanha dias atrás, tentando de convencer o governo europeu de que seu compromisso com a preservação da Amazônia é autêntico, apesar dos gigantescos incêndios registrados nos últimos meses, que foram iniciados por apoiadores de Bolsonaro e ajudados pelas políticas de sucateamento dos órgãos de proteção ambiental – algo que o atual presidente prometeu na campanha que faria, e está cumprindo.
Alemanha e Noruega são os dois principais financiadores do chamado Fundo Amazônico, que entrega ao país tropical quase um bilhão de dólares por ano para a preservação da maior floresta do mundo, mas decidiram suspender essa remessa, ao considerar que o governo atual é responsável pelo desastre ecológico deste ano. Recentemente, o ministro Salles passou por Berlim para tentar reativar o Fundo, mas usou o mesmo discurso de seu presidente, de que as estatísticas sobre a devastação foram manipuladas por organizações ambientais “esquerdistas”, o que não convenceu as autoridades germânicas. Em tempo, os dados usados pelos ambientalistas são cifras difundidas e confirmadas tanto pelo INPE quanto pela NASA.
Bônus track: o bananesco caso do Paraguai
O golpe de Estado a Fernando Lugo foi um dos capítulos mais patéticos da história política de um continente que conhecem bem o que são os casos absurdos de disputa de poder.
Em meados de 2012, enquanto o governo tentava de viabilizar o debate pela reforma agrária – em um país onde mais de 85% das terras estão nas mãos de somente 2,5% da população rural –, um grupo de camponeses ligados a movimentos sociais pela terra foi atacado por forças policiais. Se produziu um confronto que terminou com 11 líderes sociais e 6 policiais mortos. A oposição de direita iniciou um processo de impeachment, responsabilizando o presidente pelo massacre, apesar de ele não ter nenhuma ligação com aquele movimento social, nem ter dado a ordem para a ação da polícia.
Dessa forma, e lançando p modelo que seria emulado no Brasil quatro anos depois, a direita paraguaia regressou ao poder pela força. Depois, também recuperou a hegemonia eleitoral perdida em 2008, o único pleito em que o Partido Colorado foi derrotado desde o fim da ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989).
Após os meses da administração transitória de quem era o vice-presidente de Lugo – o social-democrata Federico Franco, que governou entre junho de 2012 e agosto de 2013 –, vieram os mandatos de Horacio Cartes (2013-2018), um político-empresário que coleciona acusações de corrupção, lavagem de dinheiro e evasão de divisas, sem nunca ser julgado; e do atual presidente, Mario Abdo Benítez
Este segundo, após prometer lutar contra a corrupção – apesar de que o seu Partido Colorado é o campeão nacional do uso político das instituições públicas há 30 anos – foi flagrado negociando com uma empresa brasileira (ligada à família Bolsonaro) um acordo secreto que prejudicaria enormemente o Estado em uma de suas fontes de renda mais importantes, que é a venda ao Brasil dos excedentes da Central Hidroelétrica de Itaipu.
O escândalo levou a um pedido de impeachment de Benítez, que terminou arquivado após ele e Bolsonaro anularem o acordo, e apesar dos indícios de propina na negociação serem mais contundentes que os usados para justificar a derrubada de Lugo. De qualquer forma, mesmo salvando seu mandato, o presidente continua enfrentando uma crise política, a qual precisará de tempo e uma boa estratégia para superar.