Tenho acompanhado muito pouco o noticiário. A falta de tempo para dar conta do mundo de informações que recebemos diariamente está ainda menor. Tenho tentado focar nos assuntos relacionados ao trabalho, aos vários grupos do WhatsApp do qual faço parte por causa dele, e dar resposta às inúmeras demandas que recebo. Além disso, os noticiários roubam-me a esperança e a energia. E quando chego em casa, tenho outras demandas para atender, meus meninos para cuidar, os quais me preenchem do ânimo necessário para o dia seguinte.
Porém, tenho um companheiro que consome notícias de televisão e de rádio de forma diária. Informação é alimento e também nos engrandece. Por isso, várias vezes ele me chama para eu assistir uma ou outra reportagem, chamado ao qual costumo atender.
Numa delas, escutei sobre a suposta compra fraudulenta de respiradores da China por um secretário estadual de saúde brasileiro. A reportagem dizia que havia indícios de superfaturamento de preços e que o governo do Estado tinha antecipado parte do pagamento, prática não aceita pela legislação que rege as aquisições feitas pela Administração Pública. O secretário responde agora a inquérito criminal e é investigado pelo Ministério Público, pelo Tribunal de Contas. Situação como essa já levou ao pedido de exoneração de secretário de saúde estadual no auge da pandemia da covid-19.
A reportagem gerou-me certa revolta. Explico.
Nós, secretárias e secretários de Saúde, temos que tomar decisões diariamente. Fazemos isso a cada instante, eu, na maioria das vezes, em conjunto com a equipe, em discussões da Comissão de Monitoramento da covid-19 da Prefeitura de Conde, com os demais secretários e secretárias. O fato é que a pandemia pela qual estamos passando piorou em muito a realidade da saúde pública que tentamos gerir, exigindo de nós muito mais coragem e agilidade nas decisões e nos processos administrativos burocráticos.
Pergunto a vocês: o que fariam se tivessem que comprar respiradores para salvar vidas da possível morte causada pela covid-19, se esses só estivessem disponíveis na China, se os fornecedores chineses fossem os únicos a entregar os respiradores em prazo factível à urgência da demanda, embora o preço fosse alto, se eles exigissem uma parte do pagamento antecipada para iniciar a fabricação deles? Há duas opções: não comprar os respiradores e aumentar a probabilidade de mortes causadas pela covid-19 ou assumir o risco de comprá-los nessas condições? Nas duas situações, as secretárias e os secretários de saúde podem responder a possíveis processos por serem as autoridades sanitárias em exercício do cargo e, portanto, do poder de decidir que rumo tomar.
A minha decisão não seria outra: arriscar-me ao fazer essa aquisição para salvar vidas da covid-19, tomando todas as precauções documentais que possam justificar essa aquisição nessas condições.
Pois bem, essa situação acontece com muitos secretários de saúde brasileiros, não só em relação aos respiradores mas também em relação às aquisições de equipamento de proteção individual (EPIs) para os trabalhadores da saúde, de medicamentos. A mão invisível do mercado é bem visível para nós secretárias de saúde e ordenadoras de despesas, nesse momento de pandemia, e nossas armas contra ela são muito fracas. Entre a morte e o risco da aquisição, a grande maioria arrisca-se. Entre a possível contaminação de seus trabalhadores e a aquisição de EPIs em preços altos, arriscamos realizando a compra. Estamos tão vulneráveis enquanto gestores públicos e ordenadores de despesas quanto uma pessoa que infringe o distanciamento social estando numa aglomeração de pessoas sem máscara em local fechado.
Além do mercado, temos sido muito pressionados pelos órgãos de controle. Temos recebidos inúmeros questionamentos sobre os atos que tomados, com o que gastamos os recursos, quanto pagamos, como fazemos os testes rápidos, como atuam nossos médicos, que medicamentos estamos administrando em nossa rede. Os prazos para respostas por vezes lembram as batalhas judiciais eleitorais: em horas! Não questiono aqui a necessidade de prestar contas a toda sociedade e à população sobre o que fazemos, longe disso. Esse é nosso dever. Questiono a predominância da desconfiança do que fazemos como premissa e os métodos utilizados.
Bruno Concha/Secom
Precisamos de mais auxílio e menos cobrança
Os métodos utilizados, ortodoxos, não auxiliam as nossas ações nesse momento de pandemia. Ao contrário, eles causam vagareza aos nossos trabalhos, porque a cada dia temos mais desafios, menos recursos, menos trabalhadores fazendo conosco esse trabalho por causa do adoecimento. Estamos numa guerra sanitária sem precedentes, e estamos sendo questionados se o tamanho da bala que vamos usar é compatível com o fuzil, se o material dela é o adequado enquanto armamos nosso fuzil pra atirar!
Não deu para perceber que estamos focados em salvar vidas?
Não é possível se juntar a nós nessa luta, ajudando-nos a encontrar caminhos em vez de nos apontar o dedo e duvidar de nossas ações, ou mesmo judicializá-las?
Erraremos, com toda a certeza. Isso faz parte da humanidade! Mas precisamos de órgãos que nos auxiliem a não errar, e não que fiquem procurando amiúde eventuais equívocos.
O sistema de freios e contrapesos está totalmente desequilibrado para nós, secretárias e secretários de saúde. Estamos muito vulneráveis nessa guerra! Muito!
Certo dia, diante de tantas demandas para resolver, da pressão para efetivá-las, da angústia das pessoas da equipe em resolver com agilidade os desafios, da ansiedade dos usuários em saber se têm ou não a covid-19, querendo fazer testes a qualquer custo, querendo furar a fila para isso, da notícia de que mais uma funcionária se afastou porque está com sintomas de síndrome gripal suspeitas da covid-19, baixei a cabeça e chorei. Chorei de desespero, chorei de nervosismo.
Não quero aqui me vitimizar. Quero só alertar para a dificuldade que temos de agir nessa pandemia tendo tanta desconfiança sob nós, que estamos de peito aberto tentando, cada um dentro de seu território ou dentro da região de saúde, construir caminhos para salvar vidas e aumentando nossa exposição ao novo coronavírus, podendo inclusive levar essa contaminação a nossas famílias em nossos lares. Estamos no campo de guerra real, com os pés no chão, expondo-nos diariamente e precisamos de colaboradores para esse enfrentamento.
Estamos sendo mais fiscalizados do que antes. Estamos sendo mais pressionados do que antes também. No meio dessa guerra sanitária, salta aos olhos que a desconfiança seja maior do que o auxílio na efetivação de nossas ações, com raras exceções.
Todavia, nesse caminho temos encontrado dentro de nós mesmos, secretárias, secretários e secretáries de saúde, a ajuda possível para seguir esse desafio. É de se ressaltar o trabalho importante e balizador de nossas ações desenvolvido pelo Conselho de Secretarias Municipais de Saúde da Paraíba (Cosems/PB), por meio de sua presidenta e de toda a sua equipe, especialmente a nossa apoiadora da 1ª região de saúde da Paraíba. Somos assessorados por esse Conselho, que nos ajuda a saber, com base na teia de portarias ministeriais, onde e como usar os recursos, como remodelar nossos serviços, dentre outros inúmeros assuntos. O Cosems tem assento nos órgãos deliberativos do Sistema Único de Saúde, razão pela qual é porta voz de nossas reivindicações e sofrimentos na Comissão Intergestores Bipartite e também junto ao Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) na Comissão Intergestores Tripartite. Salve o Cosems/PB, que nos salva diariamente!
Nesse sentido, temos aproveitado o espaço coletivo de comunicação criado pelo Cosems/PB para compartilhar experiências exitosas, desafios individuais, pequenas glórias, nossas angústias em cada território. Esse tem sido um espaço valoroso de trocas e de fortalecimento de nossas ações, individuais ou coletivas.
E falando nesse espaço coletivo de comunicação, aproveito aqui para publicizar a mensagem recebida nele da companheira de trabalho, a Secretária de Saúde de Rio Tinto, Isabel Regina Serrano de Oliveira, de que testou positivo para a covid-19 nos últimos dias. Sua mensagem avisando-nos sobre esse resultado demonstra a vulnerabilidade e a angústia que vivemos diariamente. Ofereço esse texto à Isabel, e encaminho a ela todas as boas energias do Universo, pedindo sua rápida recuperação em sua casa. Estamos juntas nessa luta e estamos sentindo sua falta nessa linha de frente.
Portando, precisamos de mais auxílio e menos cobrança. Salvar vidas é a meta coletiva de todos nós e esse caminho longo para a atingir ainda está longe de acabar.
(*) Renata Martins Domingos é secretária de Saúde da Prefeitura de Conde, na Paraíba.