Desde que escutei o podcast das Beneditas, do qual a prefeita de Conde, Márcia Lucena, faz parte, com a temática da “indigestão pública”, não pude deixar de me identificar com essa expressão. É isso o que venho sentido há 3 anos, desde que aceitei o desafio de ser secretária de Saúde de Conde.
De onde vem esse sentimento? Vem de várias situações com as quais me confronto diariamente.
A primeira delas é o descompasso da urgência das ações inerentes à política de saúde com os procedimentos para a sua resolução. Grande parte das questões que afligem a política de saúde dependem de aquisições, contratações, as quais são regidas pela lei de licitações. Essa lei estabelece inúmeros procedimentos para compras, que, a depender do objeto a ser comprado ou contratado, tem uma sequência de atos a serem cumpridos até culminar no seu fim. Em cidades pequenas como Conde, todas as aquisições são concentradas numa única Comissão de licitação, que abrange toda a Prefeitura. A cada ano que passa, assisto às regras para a contratação ficarem cada vez mais específicas, criando um verdadeiro arcabouço de requisitos a serem seguidos, que impedem que implementemos o Sistema Único de Saúde na medida da celeridade que o direito à saúde requer. A rigidez não decorre apenas da norma editada, mas também dos posicionamentos dos órgãos de controle, que vão dificultando a resolução do problema.
Explico essa dificuldade com algumas situações insertas no meu dia-a-dia. A primeira delas trata-se da necessidade que temos de trabalhar com computadores. Na Secretaria de Saúde, estamos com falta de computadores e por isso fui avaliar a quantidade de recursos em conta corrente, seus carimbos que delimitam seu uso e o que está disponível em orçamento para pensar como resolver esse problema. Concluí que não temos recursos de investimento disponível para adquirir computadores, mas temos recursos em conta de custeio, que possibilita locar computadores. Numa leitura rápida do problema, seria possível locar computadores com os recursos disponíveis em conta para resolver a problemática atual e atender às limitações de uso dos recursos públicos de custeio. Todavia, soube que essa saída não é aceita pelo Tribunal de Contas do Estado da Paraíba, que não recomenda locar bens que, no período de um ano, tenham o valor total da locação coincidente com o valor da aquisição desse bem. A recomendação parece plausível numa primeira avaliação, mas torna-se incompatível com a realidade da resolução do problema em vista de todas as situações que condicionam essa saída, bem como das dificuldades de manutenção desses bens (só temos duas pessoas em toda a Prefeitura pra isso). Posso como gestora ousar e defender essa saída como meio de solução do problema? Sim, posso, mas corro o risco de ter as contas da Secretaria de Saúde rejeitadas por essa decisão.
As aquisições também angustiam-nos pelos seus tempos e especificidades. É possível passar meses entre a cotação de preços de um micro-ônibus, chegar ao momento do pregão presencial e nenhuma empresa comparecer para o certame. Iniciar novamente a mesma licitação, e após de meses de trâmite, chegar na data do pregão presencial e uma empresa apresentar impugnação, que ao ser acatada, levará a novo início de novo processo de aquisição. Com isso, anos se passaram e o micro-ônibus não foi comprado. Os recursos financeiros continuaram na conta corrente e pra que você possa usar no ano seguinte ao recebimento, vai precisar que um decreto de suplementação seja feito, já que a lei orçamentária só prevê recurso novo que vai entrar no ano subsequente. Pra usar recurso financeiro que ficou na conta, só se houver um decreto, que depende de cálculos, avaliação do superávit pelo contador. São inúmeras regras pra garantir o bom uso do recurso que nó, gestoras, podemos responder também por não o gastar a tempo e necessidade. Enquanto isso, a demanda pelo micro-ônibus continua lá, te lembrando semanalmente que ele é necessário para realizar o transporte sanitário de usuários entre Conde e João Pessoa, que o usuário de Jacumã precisa ir acessar o serviço de saúde especializado no Centro, que falta transporte público na cidade, que a população tem poucos recursos disponíveis pra fazer por si só esse deslocamento, enfim, a indigestão pública faz-se presente.
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Precisamos aproveitar a pandemia da covid-19 para desburocratizar a implementação das políticas públicas e alterar as regras postas
No âmbito das aquisições em virtude da pandemia da covid-19, as gestoras públicas foram agraciadas pela possibilidade de usar a dispensa de licitação por meio da Lei Federal n.º. 13.979, de 06 de fevereiro de 2020. Bingo! Cheguei a soltar fogos de artifício com essa facilidade!! A celeridade na compra dos equipamentos de proteção individual (EPI) e do material de limpeza tornou-se luz no fim do túnel pra gente. Mas alguns meses depois, a desconfiança dos órgãos de controle em função dos valores das aquisições, diante do mercado que usou e abusou da lei da oferta e da procura, por meio de procedimentos investigatórios que visam responsabilizar as gestoras, nos levaram a tomar outros cuidados nas aquisições e com isso, a celeridade deixou de ser qualidade e passou a ser problema novamente.
Para todo lado que a gente tenta seguir, para driblar um problema decorrente da implementação da política e saúde, há obstáculos gigantes a serem seguidos. A gente tenta ser criativa, mudar a forma de resolver o problema, mas os impedimentos continuam ali, criando impossibilidades.
Como gestora pública e ordenadora de despesa que sou, vivo a angústia diária de não conseguir gastar bem e rapidamente os recursos públicos, atendendo à urgência que o direito à saúde exige. É difícil explicar à população a demora nas aquisições e na implementação do Sistema Único de Saúde. A população quer e merece resultados rápidos, mas o sistema e a máquina do Estado não nos dão condições pra isso.
Estamos também cada dia mais vulneráveis enquanto gestoras públicas, e isso atinge nossa humanidade. São tantos impedimentos, tantas pressões, que por muitas vezes pergunto-me: por que mesmo estou aqui nesse lugar, dando murro em ponta de faca, tentando fazer o SUS funcionar em Conde? Sim, eu sei porque estou nesse lugar. Estou porque acredito no poder do Estado e da política em mudar a sociedade, mas essa escolha de trabalho e de vida tem ficado cada dia mais pesada, ainda mais no atual contexto da pandemia, em que essa escolha pode significar a nossa contaminação e a de nossa família.
Precisamos aproveitar a pandemia da covid-19 para desburocratizar a implementação das políticas públicas e alterar as regras postas. Precisamos ousar, indignar-nos com esse pressuposto de que estamos nesse lugar por má-fé. Não, não estamos nele para roubar, como pensam muitos. Estamos aqui porque acreditamos que é papel do Estado construir ambientes, condições, situações que garantam o bem-viver de seu povo, a vida em comunidade, melhores condições de vida. Afinal de contas, as políticas públicas são uma forma do Estado distribuir sua renda de forma mais equitativa a fortalecer seus cidadãos e cidadãs.
Vivo a indigestão e a angústia diária de estar sempre em dívida com a população usuária do Sistema Único de Saúde em Conde por causa desse cenário.
*Renata Martins Domingos é secretária de Saúde da Prefeitura de Conde e presidenta da Comissão Intergestores Regional da Mata Atlântica da 1ª Região de Saúde do Estado da Paraíba