“Quando uma ordem mundial desaba, inicia-se a reflexão a seu respeito”
Ulrich Beck, 2011[1]
A ideia deste livro surgiu no final do outono de 2015, após uma série de atentados ter abalado Paris, em 13 de novembro, e a discussão sobre a chegada de centenas de milhares de refugiados ter se tornado cada vez mais intensa na Alemanha. O trato político, midiático e discursivo para com esses acontecimentos deixou a impressão de que o mundo voltara de repente para trás dos padrões arduamente alcançados e tidos como seguros.
Em um contexto imediato de terrorismo e migração está o fato de que ao redor do mundo se expandem os territórios onde não vigora mais um Estado. Os três países de origem da maioria das pessoas que pediram asilo na Alemanha em 2016 — Síria, Afeganistão e Iraque — ocupam os primeiros lugares no Fragile State Index daquele ano, elaborado pela ONG Fund for Peace.[2] Enquanto as manchas brancas nos mapas tornavam-se cada vez menores ao longo dos séculos, isto parece agora ir em outra direção: nos tempos de Google Maps, crescem paradoxalmente os territórios sobre os quais pouco se sabe e que os antigos cartógrafos teriam descrito com a frase hic sunt leones.
Muitas reações políticas frente aos atentados terroristas e aos movimentos migratórios encaixam-se, por sua vez, em um modelo que poderíamos qualificar de “securitização” (securitization) e de política simbólica pós-democrática: tornaram-se barulhentos os apelos por cercas ou mesmo por ordens de disparo nas fronteiras; o presidente francês impôs o estado de exceção e declarou que o país encontrava-se em guerra. Incapazes de tratar as causas globais de desafios como migração, terrorismo e crescente desigualdade com meios nacionais ou confrontá-las com estratégias de longo prazo, cada vez mais políticos preferem aplicar o law and order em seu país e prometer torná-lo “grande” de novo.[3] No seu papel de empregados, cossoberanos, estudantes ou usuários da infraestrutura pública, não se pode mais oferecer muita coisa aos cidadãos e cidadãs nos tempos de austeridade. Assim, o ponto principal da ação política desloca-se para a dimensão do pertencimento nacional, para a promessa de segurança e restabelecimento do (suposto) brilho de tempos passados.
Seria possível aumentar a lista dos sintomas da recaída quase de forma ilimitada: com o desejo de uma desglobalização anárquica e unilateral ou com o surgimento do movimento identitário, por exemplo, na França, Itália e Áustria; com a xenofobia e islamofobia crescentes; com uma onda da chamada criminalidade do ódio; e, naturalmente, com a ascensão de demagogos autoritários como Rodrigo Duterte, Recep Tayyip Erdogan ou Narendra Modi.
Tudo isto se associou, já no final do outono de 2015, a um histerismo e brutalização do discurso público e a certo instinto apocalíptico por parte das mídias consolidadas. Aparentemente, não se podia mais falar de fuga e migração sem empregar conceitos de campos lexicais como “catástrofes naturais” e “epidemias”.[4] Em vez de clamar por descontração e pragmatismo ou contextua- lizar os acontecimentos historicamente e, desta forma, relativizá-los, o perigo do terror e a migração foram estilizados, não só na Alemanha, como os maiores desafios — e, assinalemos, não desde a reunificação, mas desde a Segunda Guerra Mundial. E tanto nas manifestações como na internet circulam, de repente, conceitos como “imprensa mentirosa”, “ditadura da chanceler” e “traidores do povo”.
Sintomas como estes serão discutidos neste livro sob o conceito da “grande regressão”. Este deve exprimir, para além de toda crença progressista ingênua — provavelmente implicada no conceito —, que os “efeitos-catraca” parecem ter sido anulados nos mais diversos campos e que nos tornamos testemunhas de uma perda de “civilidade” considerada definitiva.[5] Entretanto, o termo deve caracterizar, ao mesmo tempo, outro fenômeno: o fato de que o debate sobre os efeitos da globalização caiu, às vezes, para aquém do nível que ele alcançara cerca de vinte anos atrás. Duas previsões — que hoje podem ser consideradas proféticas — foram várias vezes lembradas logo depois da eleição de Donald Trump: a frase de Ralf Dahrendorf, segundo a qual o século XXI poderia se tornar “o século do autoritarismo”[6], e o livro de Richard Rorty Achieving Our Country, no qual ele problematiza os efeitos da globalização (e o papel da “esquerda cultural”) e lista toda uma série de possíveis retrocessos: a ascensão de “demagogos ordinários”, um aumento da desigualdade social e econômica, o irromper de um “mundo orwelliano”, uma revolta dos mais frágeis, um retorno do “sadismo”, do ressentimento e dos comentários depreciativos sobre mulheres e membros de minorias.[7]
A coletânea na qual se encontra a perspectiva de Dahrendorf aqui citada surgiu em 1998 e, com ela, chegou-se ao auge de uma primeira onda de reflexão sobre a globalização. Ao folhear os livros daquele ano, nos deparamos com outras frases que podem servir como comentários sobre os acontecimentos de 2016. Wilhelm Heitmeyer chamava a atenção para um “capitalismo autoritário”, uma “política de repressão estatal” e um “populismo de direita brutal”.[8] Dani Rodrik profetizava que a globalização levaria a uma “desintegração social”, e advertia para o fato de que uma “recaída protecionista” não seria um cenário irrealista.[9]
Muitas dessas avaliações baseiam-se em algo como a “mecânica polanyiana” de uma segunda grande transformação. O historiador econômico austro-húngaro Karl Polanyi esboça em seu clássico The Great Transformation, publicado em 1944, como a sociedade industrial capitalista surge no século xix a partir de relações menores, feudais, marcadamente agrárias, integradas política, cultural e institucionalmente, trazendo uma série de consequências colaterais e movimentos contrários, até a economia adequar-se novamente aos patamares dos Estados de bem-estar nacionais.[10] Este desenvolvimento extensivo do ponto de vista geográfico e social repete-se agora, pois o capitalismo deixa para trás as fronteiras do Estado nacional — e mais uma vez com muitas consequências colaterais e movimentos contrários.[11] Basta lembrarmo-nos da fundação da Attac em 1998, da chamada “Batalha de Seattle” em 1999 e do primeiro fórum social internacional em 2001, em Porto Alegre, do lado da esquerda[12], e dos primeiros sucessos dos populistas críticos à globalização, à direita: do surpreendentemente forte desempenho de Pat Buchanan nas prévias dos Republicanos estadunidenses em 1996 (e ao qual Rorty e Rodrik se referiram) ou do sucesso do FPÕ[13] de Jorg Haider, que conseguiu ser o segundo mais votado nas eleições parlamentares austríacas em 1998.
Resumindo as possíveis soluções daquela época, impunha-se uma readequação da economia desenfreada em um patamar global: através do estabelecimento de instituições transnacionais, a política devia dedicar-se a procurar soluções globais para problemas globais. Paralelamente a isto, devia surgir uma mentalidade correspondente, um sentimento cosmopolita do “nós”.[14]
A ironia amarga consiste no fato de que os riscos da globalização esboçados naqueles tempos tornaram-se reais nos anos seguintes — terrorismo internacional, mudança climática, crise financeira e monetária e, finalmente, grandes movimentos migratórios —, apesar de não estarmos preparados para isto politicamente. E também do lado subjetivo não se instituiu um sentimento forte e cosmopolita do “nós”. Experimentamos, muito mais, uma renascença étnica, nacional e confessional das diferenças entre o nós e o eles. Depois do suposto “fim da história”, a lógica de uma “luta das culturas” substituiu surpreendentemente rápido o esquema “amigo-inimigo” da guerra fria.
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O trato político, midiático e discursivo para com esses acontecimentos deixou a impressão de que o mundo voltara de repente para trás
Olhando sob este contexto, a regressão que se espalhou no final do outono de 2015, os acontecimentos seguintes — como o conflito na Síria, o resultado da votação do Brexit, o atentado em Nice, os sucessos da Alternativa para a Alemanha (Alternative fur Deutschland — AfD) na Alemanha, a tentativa de golpe na Turquia e suas consequentes reações políticas, a vitória eleitoral de Trump, etc. — encaixaram-se muito bem neste panorama sombrio.
Enquanto se falou até agora sobretudo de riscos da globalização, vários ensaios desta coletânea enfatizam tratar-se de uma globalização de mercado radical; por isso poderíamos falar da mesma forma de riscos do neoliberalismo. Assim, os artigos aqui reunidos também podem ser entendidos como estudos sobre em quantos aspectos:
- citando Ernst Wolfgang Bockenforde de outra forma[15]
- as democracias neoliberais vivem de precondições que elas mesmas não podem garantir: mídias que ofereçam certo pluralismo de opinião, associações intermediárias como sindicatos, partidos e organizações, nas quais as pessoas podem experimentar algo como uma autoeficácia; partidos realmente de esquerda, que consigam articular os interesses de meios diversos; e um sistema educacional que não reduza a educação ao fornecimento de “capital humano” e à “decoreba” dos critérios do Pisa.
Possivelmente, a grande regressão agora observada é o resultado de uma combinação de riscos da globalização e do neoliberalismo: os problemas resultantes da falta de condução política na interdependência global atingem sociedades que não estão preparadas para isto institucional e culturalmente.
Este livro quer retomar a discussão sobre a globalização dos anos 1990 e prossegui-la. Cientistas e intelectuais manifestam-se aqui sobre questões urgentes: Como chegamos a esta situação? Onde estaremos daqui a cinco, dez ou vinte anos? Como deter a regressão global e invertê-la? Trata-se de uma tentativa de estabelecer, frente a uma “Internacional dos Nacionalistas”, algo como uma esfera pública transnacional em três níveis: no nível das colaboradoras e dos colaboradores, no nível dos fenômenos investigados e no nível da distribuição (a coletânea é publicada simultaneamente em vários países).
Meus agradecimentos vão, em primeiro lugar, às colaboradoras e aos colaboradores por sua prontidão em participar desta empreitada e produzir, em um tempo relativamente curto, textos substanciais. Além disso, agradeço às editoras parceiras por sua confiança no projeto, assim como a Mark Greif e John Thompson por seus conselhos. Esta coletânea é também um projeto editorial que não teria sido possível sem meus colegas da Suhrkamp. Por isso, um agradecimento especial vai para Edith Baller, Felix Dahm, Andrea Engel, Eva Gilmer, Petra Hardt, Christoph Hassenzahl, Christian Heilbronn, Nora Mercurio e Janika Rúter.
O texto foi escrito em 2016 a título de prefácio do livro “A Grande Regressão”, lançado pela editora Estação Liberdade (R$59,00).
[1] Ulrich Beck. “Kooperieren oder scheitern. Die Existenzkrise der Europaischen Union”. In: Blatter fur deutsche und internationale Politik 2 (2011), p. 41-53.
[2] J. J. Messner. Fragile State Index 2016. Washington: The Fund for Peace, 2016, p. 7.
[3] Ver também Zygmunt Bauman. Estranhos à nossa porta. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
[4] O que seria visualmente salientado pelo fato de que as fotos correspondentes mostravam, com frequência, pessoas usando máscara bucal (para o que deve haver motivos práticos), como é o caso da jornalista húngara, que em setembro de 2015 deu pontapés nos refugiados.
[5] Ver também, a respeito do conceito “modernização regressiva”, Oliver Nachtwey. Die Abstiegsgesellschaft. Uber das Aufbegehren in der regressiven Moderne. Berlim: Suhrkamp, 2016.
[6] Ralf Dahrendorf. “Anmerkungen zur Globalisierung”. In: Perspektiven der Weltgesellschaft. Org. Ulrich Beck. Frankfurt: Suhrkamp, 1998, p. 41-54, p. 52 e seguintes.
[7] Richard Rorty. Stolz auf unser Land. Die amerikanische Linke und der Patriotismus. Frankfurt: Suhrkamp, 1999, sobretudo o capítulo 4, “Eine kulturelle Linke”, p. 43-103, p. 81 e seguintes. [Ed. orig.: Achieving Our Country: Leftist Thought in Twentieth-Century America. Cambridge: Harvard University Press, 1999.]
[8] Wilhelm Heitmeyer. “Autoritarer Kapitalismus, Demokratieent- leerung und Rechtspopulismus. Eine Analyse von Entwicklungs- tendenzen”. In: Schattenseiten der Globalisierung. Rechtsradikalismus, Rechtspopulismus und separatistischer Regionalismus in westlichen Demokratien. Org. Dietmar Loch e Wilhelm Heitmeyer. Frankfurt: Suhrkamp, 1998, p. 497-534, p. 500.
[9] Dani Rodrik. Grenzen der Globalisierung Okonomische Integration und soziale Desintegration. Frankfurt/Nova York: Campus, 2000 [1997], p. 86. Também podemos citar neste contexto, entre outros, Benjamin Barber. Coca-Cola und Heiliger Krieg Wie Kapitalismus undFundamentalismus Demokratie undFreiheit abschaffen. Berna/ Munique/Viena: Scherz, 1996; Noam Chomsky. Profit Over People. Neoliberalismus und globale Weltordnung. Hamburgo/Viena: Europa Verlag, 2000; Viviane Forrester. Der Terror der Okonomie. Viena: Zsolnay, 1997 [ed. bras.: O horror económico, São Paulo: Unesp, 1997]; Robert B. Reich. Die neue Weltwirtschaft. Das Ende der nationalen Okonomie. Berlim/Frankfurt: Ullstein, 1993; Harald Schumann e Hans-Peter Martin. Die Globalisierungsfalle. Der Angriff auf Demokratie und Wohlstand. Reinbek: Rowohlt, 1996; Joseph E. Stiglitz. Die Schatten der Globalisierung. Berlim: Siedler, 2002.
[10] Karl Polanyi. The Great Transformation. Politische undokonomische Ursprunge von Gesellschaften und Wirtschaftssystemen. Frankfurt: Suhrkamp, 1978 [1944].
[11] Ver também — referindo-se explicitamente a Polanyi — Philip G. Cerny. “Globalisierung und die neue Logik kollektiven Han- dels”. In: Politik der Globalisierung. Org. Ulrich Beck. Frankfurt: Suhrkamp, 1998, p. 263-296.
[12] Acompanhados naquele tempo por outros influentes diagnósticos jornalísticos e teóricos, devemos nos lembrar de livros como Naomi Klein. No Logo! Der Kampf der Global Players um Marktmacht — ein Spiel mit vielen Verlierern und wenigen Gewinnern. Munique: Riemann, 2001; ou Michael Hardt e Toni Negri. Empire. Die neue Weltordnung. Frankfurt/Nova York: Campus, 2002 [ed. bras.: Império: a nova ordem política da globalização, Rio de Janeiro: Record, 2000].
[13] Freiheitliche Partei Osterreichs ou Partido Austríaco da Liberdade (extrema-direita), que voltaria a integrar o governo em fins de 2017. [n.t.]
[14] Ver também Ulrich Beck. Der kosmopolitische Blick oder: Krieg ist Frieden. Frankfurt: Suhrkamp, 2004.
[15] Lê-se no livro de Bockenforde, mesmo que em outro contexto: “O Estado liberal e secularizado vive de precondições que ele mesmo não pode garantir.” (Ernst-Wolfgang Bockenforde. “Die Entstehung des Staates als Vorgang der Sakularisation”. In: idem. Staat, Ge- sellschaft, Freiheit. Studien zur Staatstheorie undzum Verfassungsrecht. Frankfurt: Suhrkamp, 1977 [1967], p. 42-64, p. 60.)
Tradução: Silvia Bittencourt