No final de agosto, o governo chileno anunciou que assumiria a busca pelas 1.162 vítimas da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) que seguem desaparecidas até hoje. Desde então, uma questão em particular é tema de debates: como conseguir as informações necessárias para uma busca bem sucedida se as informações obtidas até o momento por comissões da verdade são secretas?
A Comissão Valech, criada em 2003, que documentou torturas contra milhares de pessoas durante a ditadura, se comprometeu a manter a confidencialidade das informações obtidas durante 50 anos. O governo do presidente Gabriel Boric, segundo projeto de lei apresentados ao Congresso na semana passada, pretende suspender o sigilo dos testemunhos, para ajudar a concretizar o Plano Nacional de Busca da Verdade e da Justiça. A ideia é fazê-lo parcialmente e com reservas.
É um desejo antigo de Boric, que apoiou proposta similar quando era deputado, em 2016. Dessa vez, seu gabinete cogitou emitir um decreto, mas ao fim decidiu submeter o tema ao Congresso, onde não tem maioria nem na Câmara, nem no Senado. O ministro da Justiça, Luis Cordero, acha possível reverter a minoria num caso como esse. “Existe um motivo de persuasão forte o suficiente para conseguirmos os votos”.
Quando a gestão de Ricardo Lagos (2000-2006) fixou o prazo de 50 anos, há duas décadas, o então presidente explicou que se tratava de um gesto de respeito às vítimas, que não queriam estar vivas quando suas confidências viessem à tona.
Uma fala da ministra de Mulheres e Equidade de Gênero, Antonia Orellana, dá uma pista do que motiva muitas vítimas a preferirem o sigilo. “Em dias nos quais se fala que a violência sexual contra as mulheres detidas nos centros de tortura é uma lenda urbana, seria bom lembrar que mais de 3.000 mulheres disseram terem sido vítimas dessa violência”, afirmou durante o anúncio do projeto.
Presidência do Chile
Presidente chileno Gabriel Boric encabeçou ato principal para recordar os 50 anos do golpe de Estado de 1973 em seu país
Na semana passada, Cordero alegou que as informações, se fossem acessadas antes de o prazo ser cumprido, seriam usadas apenas para o programa de busca, de modo que se possa conhecer as circunstâncias enfrentadas pelas vítimas e cotejar dados com os das investigações judiciais em curso.
“A finalidade é cumprir com um dos objetivos do plano, que é traçar a trajetória de cada uma das pessoas detidas e desaparecidas, de modo que essa informação possa ser revelada no momento em que haja descobertas relevantes, com consentimento prévio das vítimas ou herdeiros”, afirmou o ministro.
“Quero ser bem enfático. As vítimas decidem o que se faz com essa informação”, disse o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Álvaro Elizalde. “Se uma vítima se opuser, está em seu direito e sempre vamos respeitar sua decisão”.
Outros projetos apresentados no mesmo pacote pretendem criar a tipificação dos delitos de desaparição forçada e uma política nacional de memória e patrimônio, para aprimorar os mecanismos de financiamento e manutenção dos espaços de memória, além de eliminar o caráter secreto, reservado ou de circulação restrita de um conjunto de leis criadas durante a ditadura, entre outras propostas. Algumas delas são novas, outras tramitam há muitos anos.
Estatísticas
A Comissão de Prisão Política e Tortura, liderada pelo ex-bispo Sergio Valech (daí o apelido), produziu um informe que deu conta de 28.459 por prisões ilegais, tortura, execuções e desaparecimentos, além de mais de 800 centros de tortura. Durante o primeiro mandato de Michelle Bachelet (2006-2010), foi formada outra comissão, conhecida como Valech 2, que descobriu a existência de 9.795 novas vítimas de prisão política e tortura.