A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) emitiu uma sentença, na última semana, em que responsabiliza o Estado equatoriano pela violência sexual sofrida pela adolescente Paola del Rosario Guzmán Albarracín dentro da escola que frequentava. O abuso era cometido pelo vice-diretor da instituição. Por conta das repetidas violações, Paola se suicidou aos 16 anos de idade.
“A sentença é emblemática, de transcendental importância, pois é o primeiro caso que a Corte Interamericana trata sobre a violência sexual contra meninas, especialmente no âmbito educativo”, disse em entrevista à imprensa Lita Martínez, diretora-executiva do Centro Equatoriano para a Promoção e Ação da Mulher (Cepam) Guayaquil, uma das organizações que levou o caso à Corte.
Catalina Martínez, diretora regional do Centro de Direitos Reprodutivos (CRR), explicou que a sentença é importante não só por ser de cumprimento obrigatório para o Equador, mas que, por ser uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, as sentenças do órgão “são aplicáveis para todos os Estados da região que fazem parte do sistema [interamericano].”
“Este caso, lamentavelmente, não é isolado, há muitas Paolas no Equador e muitas Paolas na região, que são ou estão sendo vítimas de assédio e abuso sexual no âmbito escolar”, disse Martínez, citando números do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), que mostram que três em cada dez estudantes foram assediados em escolas da América Latina.
O que aconteceu?
Segundo um histórico feito pelo Centro de Direitos Reprodutivos (CRR) e pela mãe da vítima, Petita Albarracín, Paola começou a ser vítima de assédio e abuso sexual desde os 14 anos por parte de Bolívar Espín, vice-diretor do colégio Dr. Enríque Martínez Serrano, o qual ela frequentava em Guayaquil.
Em outubro de 2002, a mãe começou a notar mudanças na adolescente. “Já não era a mesma menina alegre. Começou a ficar sozinha e casa. Um dia, quando estava no quarto, perguntei se tinha algum problema, e ela me disse que não. Quando nos aproximamos da cama, vi algumas feridas, mas ela disse que não era nada”, relatou a mãe, em janeiro, ante à Corte.
Levada ao médico, foi informada de que tinha psoríase e que essas erupções podiam ser causadas por estresse e preocupação.
“Produto desta violência, Paola ficou grávida aos 15 anos e o abusador disse que deveria fazer um aborto no serviço médico do colégio. Ali, ela foi novamente vítima de violência sexual, pois o médico condicionou o procedimento em troca de sexo”, continua o relato.
Em 12 de dezembro de 2002, a adolescente ingeriu fósforo branco – conhecido no Equador como diabillos – e, no caminho para o colégio, contou para suas amigas, que informaram o fato à escola.
“Ao invés de levá-la ao hospital, Paola foi forçada a rezar pela sua alma e pedir perdão a Deus”, relata o CRR.
Horas depois, sua mãe, contactada por uma das amigas da jovem, chegou ao colégio. “Quando cheguei, vi, um beco e, no final dele, estava minha filha. O vice-diretor se aproximou e me disse: ‘Recolha sua filha e leve-a’. Minha filha me escutou e me disse: ‘Mamãe, me perdoa’. E a levamos ao hospital”, contou Albarracín, que afirmou que o abusador tinha 65 anos.
Primeiro, foram a um hospital público e, depois, a uma clínica privada. Paola morreu no dia seguinte.
Sentença
Após a morte, começou um processo penal. A mãe de Paola apresentou uma acusação contra o vice-diretor por assédio sexual, estupro e incentivo ao suicídio.
Em 6 de fevereiro de 2003, ordenou-se a detenção de Espín e, dois anos e meio depois, ele foi indiciado por estupro agravado. Mesmo assim, o vice-diretor fugiu e o processo foi interrompido. Em 2008, a pedido do abusador, a Justiça equatoriana determinou a prescrição da ação penal.
ReproRights/Twiiter
Petita Albarracín, mãe de Paola, durante sessão da Corte IDH
No meio deste processo, o caso foi apresentado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e, anos depois, à Corte IDH.
Em um comunicado em que explica a sentença, a Corte assinala que a instituição “estabeleceu que os autos do caso se basearam no abuso de uma relação de poder e confiança, pois a violência sexual foi cometida por uma pessoa em uma posição que tinha dever de cuidar dentro do âmbito escolar, no marco de uma situação de vulnerabilidade em que se encontrava a criança Paola Guzmán.”
“O abuso aparece, de forma concreta, segundo os relatos de que os atos com fins sexuais que o vice-diretor desenvolveu com Paola começaram como condição para que ele a ajudasse a passar de ano”, diz a Corte.
O órgão determinou que o Estado do Equador é responsável pela violação dos direitos à vida, à integridade pessoal, à proteção da honra e da dignidade e à educação ao descumprir as obrigações de prevenir atos de violência contra a mulher, em prejuízo de Paola.
A Corte também concluiu que houve violações de direitos da mãe e da irmã da vítima, concretamente os às garantias judiciais, proteção judicial, igualdade ante a lei e integridade pessoal.
Em razão das violações aos direitos humanos, a Corte ordenou várias medidas de reparação, entre elas: oferecer, gratuitamente e de forma imediata, tratamento psicológico à mãe e à irmã da vítima; realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional; declarar um dia oficial de luta contra a violência sexual nas aulas; além de pagar indenização aos familiares de Paola.
“No marco do respeito aos direitos humanos e do sistema interamericano, o Equador executará a sentença ditada pela Corte IDH no caso de Paola Guzmán”, escreveu, no Twitter, o presidente Lenín Moreno.
O mandatário afirmou que “se mantém firme”, desde o “primeiro dia” de seu governo, na “luta para erradicar a violência sexual no setor educativo”.
‘Minha filha foi vítima’
“Limpou-se o nome da minha filha, que foi considerada culpada ante a Justiça equatoriana. Agora, fica claro que minha Paola foi vítima de um terrível abuso sexual que a levou ao suicídio”, disse Albarracín após tomar conhecimento da sentença. Ela afirmou que, mesmo que não tenha mais a filha junto a ela, está tranquila que sua morte não será em vão, “pois, com essa sentença, os agressores nunca mais serão encobertos”.
“Por fim, se fez justiça nessa luta. O que Paola viveu não quero que outras meninas passem, nem que outras mães sofram o que eu sofri”, disse Albarracín.
A mãe da adolescente espera que, depois dessa decisão, “haja medidas de proteção” para evitar mais abusos e violência sexual contra meninos e meninas nas escolas.
(*) Tradução: Opera Mundi