A palavra que mais se repete entre os venezuelanos e estrangeiros que estão em Caracas, capital da Venezuela, quando se discute as eleições legislativas do próximo domingo (06/11), é soberania.
Entre membros do governo, militantes de conselhos comunais, acadêmicos e observadores internacionais, a soberania venezuelana é frequentemente citada para destacar a relevância do pleito que irá eleger 277 deputados para uma nova Assembleia Nacional.
Dentre os fatores que levaram a disputa eleitoral legislativa do país latino-americano a se tornar um tema com desdobramentos globais, estão os posicionamentos de importantes agentes da comunidade internacional, como EUA e União Europeia, e o fato de esses atores apoiarem o autoproclamado presidente Juan Guaidó, que lidera o setor da oposição que se recusou a participar da eleição.
O governo de Donald Trump voltou a alegar que não reconhece Nicolás Maduro como presidente e que não reconhecerá os resultados eleitorais do pleito, assim como a UE, que se negou a enviar observadores internacionais.
Para o ministro das Relações Exteriores da Venezuela, Jorge Arreaza, a reação negativa desses agentes externos “é algo natural”, porque “somos uma ameaça ao modelo de acumulação de capital”.
“Que os Estados Unidos e a União Europeia tenham a reação que eles preferirem, porque a única reação que nos interessa é a do povo venezuelano”, disse Arreaza, que participou de uma conferência sobre política e economia nesta sexta-feira (04/11) em Caracas.
Segundo o chanceler, a melhora nas relações entre a Venezuela e os EUA não depende, entretanto, do resultado das eleições legislativas, mas sim do próprio governo norte-americano. “Se eles quiserem melhorar a relação, nós estamos dispostos ao diálogo, se não quiserem, estamos dispostos a vencer da mesma maneira”, disse.
Para vencer, a coalizão governista chamada Grande Polo Patriotico – composta pelo PSUV e outras oito organizações de esquerda – precisa conquistar a maioria da Assembleia Nacional que, desde o último pleito em 2015, passou a ser controlada pela oposição e viveu uma crise de legitimidade.
O órgão legislativo foi colocado em desacato pela Justiça venezuelana em 2017, após anos de uma disputa legal envolvendo problemas na votação de três parlamentares – todos de oposição. Os deputados acusados se recusaram a repetir a votação em seus determinados estados, abrindo um impasse com a Justiça, que culminou com a retirada de poderes da AN.
Então eleito para seu primeiro mandato, o jovem e até então desconhecido deputado de direita Juan Guaidó havia sido apontado para presidir a Assembleia e, quando vem a decisão da Justiça, o parlamentar inicia uma campanha abertamente golpista contra o governo. Desde que se autoproclamou presidente do país, em 2018, Guaidó protagonizou duas tentativas de golpe, um envolvimento com uma invasão mercenária frustrada, parcerias com milícias narcotraficantes da Colômbia e o roubo de ativos venezuelanos no exterior, principalmente em países que o reconhecem como mandatário legítimo da Venezuela.
É nesse contexto que os venezuelanos vão escolher a próxima conformação do Legislativo e, potencialmente, colocar fim a um impasse utilizado pela oposição para desestabilizar o Executivo.
Entretanto, para o historiador indiano Vijay Prashad, que foi escolhido como um dos observadores internacionais para o pleito, o resultado da votação do próximo domingo não é o fator mais importante para o cenário político, mas sim demonstrar que a eleição tem legitimidade e reforçar a soberania venezuelana diante da comunidade internacional.
“Em 2015, a oposição tentou usar a vitória para fazer uma provocação política contra Maduro. Isso não funcionou. Nessa eleição, a oposição está profundamente dividida, mas o resultado não é o mais importante. O mais importante é que os agentes imperialistas tentarão dizer que essa não é uma eleição legítima”, disse.
Fania Rodrigues/Opera Mundi
Cena de Caracas: venezuelanos dizem que garantia da soberania está em jogo nestas eleições
Presidente do Instituto de Pesquisa Tricontinental, Prashad acredita que os EUA não terão muito crédito ao alegarem fraude nas eleições venezuelanas, já que o próprio presidente norte-americano está usando o mesmo argumento para não reconhecer sua derrota na disputa presidencial.
“Os EUA irão fazer de tudo para dizer que essa não é uma eleição legítima, mas a legitimidade dos EUA é nula e da OEA também é nula, muito por conta do envolvimento do órgão na situação boliviana, então eles tentarão apelar aos europeus e aos canadenses”, afirma.
A derrota de Trump, porém, mudou o cenário norte-americano na Europa, diz Prashad. Segundo o historiador, “os europeus querem Biden, eles querem que Trump vá embora e dificilmente apoiarão alguma medida extrema do republicano contra a Venezuela”.
“Quando Biden assumir, em janeiro, a Assembleia Nacional já estará eleita. A correlação de forças não é favorável para os que querem dizer que é uma eleição fraudulenta”, diz.
Um poder em conflito
Mais de 14 mil candidatos se inscreveram para essa eleições legislativas que, como disse Arreaza, irá devolver ao país “um Poder que entrou em conflito com os outros Poderes”.
A oposição, que parecia ter conquistado uma vitória significativa no pleito de 2015, se apresenta neste ano profundamente dividida e com projetos radicalmente distintos dos defendidos pela esquerda. De fato, não são todos os partidos de centro e de direita que estão participando das eleições. Uma fração de legendas fieis a Guaidó e à sua narrativa de presidente autoproclamado se recusou a participar da disputa eleitoral e acusou fraude mesmo antes da votação.
Outros partidos opositores, que encararam positivamente a oportunidade de disputar o Legislativo e apresentaram candidatos, buscam se desvencilhar da imagem negativa criada pelos fracassos e escândalos de Guaidó ao mesmo tempo que apresentam projetos neoliberais e conservadores para o país.
As cinco legendas mais destacadas desse bloco foram capazes de se unir em torno de uma coalizão chamada Aliança Democrática, apresentando uma lista nacional única na busca de forte presença na AN. Entre os integrantes, estão frações de dois dos partidos mais tradicionais da Venezuela, Ação Democrática e Copei, que ficaram muito divididos após outros setores decidirem apoiar Guaidó e não participar da votação.
A visão que esse campo político apresenta para o país é a de solucionar a crise econômica com um choque de neoliberalismo, dolarização total e privatizações onde forem “necessárias”.
Medidas como essas tendem a afetar mais os setores populares da sociedade venezuelana, como é o caso do coletivo popular La Minka, inciativa surgida em 2017 na região central de Caracas.
Formada por artistas e jovens militantes, a organização atua em diversas frentes, desde cursos e venda de artigos artísticos, à produção e venda de pães.
“Nossa luta é contra as opressões do capital sobre o trabalho, do homem sobre a mulher, do império sobre a periferia”, explica José Solorzano, um dos fundadores do coletivo.
A Minka surgiu como uma resposta à especulação de preços durante um episódio que ficou conhecido como a “guerra do pão”, quando proprietários de padarias realizavam atos de sabotagem para inflacionar esse produto básico. Junto ao governo, que obrigou uma redução dos preços da mercadoria, os ativistas passaram a controlar essa pequena padaria na avenida Baralt, no coração de Caracas.
As frentes de trabalho, desde então, passaram a aumentar e a Mika começou a ter um papel de destaque na Comuna Miraflores, organização de bairro que pretende ser um órgão de poder popular do governo boliviariano.
Diante dos ataques do capital privado, os integrantes do coletivo alertam sobre os riscos que um governo neoliberal poderia representar ao país e às camadas trabalhadoras.
“Nós trabalhamos por uma plataforma de acumulação de força para um novo projeto político que não venha do capital, mas sim dos trabalhadores organizados a partir da consciência de classe. Fazemos coisas pequenas, mas juntos transformamos o mundo”, diz Solorzano.