Frente à ascensão de Éric Zemmour nas pesquisas, algumas pessoas à esquerda estão inclinadas a pensar que se trata apenas de uma bolha midiática e ficam sentadas à espera que ela acabe sozinha. Poderíamos também contentar-nos em ver nele mais uma manifestação do “pétainismo transcendental” de que falava Alain Badiou: uma “forma histórica da consciência das pessoas, no nosso velho e cansado país, quando a sensação monótona de uma crise, de um perigo, as faz abandonarem-se às propostas de um aventureiro que lhes promete a sua proteção e a restauração da velha ordem”. O problema é que esta caracterização desenvolvida pelo filósofo sobre Nicolas Sarkozy poderia aplicar-se a muitos políticos que se fazem passar por salvadores, tanto a Emmanuel Macron como a Zemmour e Marine Le Pen. Por conseguinte, pouco faz para nos ajudar a compreender o significado específico da ascensão resistível – pelo menos nesta fase – de Éric Zemmour.
O nosso ponto de vista é que essa ascensão exprime algumas das principais tendências da política francesa. Estas tendências, pré-existentes a Zemmour, não estão prestes a desaparecer (como alguns imaginavam que a ascensão da extrema direita tinha sido travada pelo fraco resultado da FN/RN nas últimas eleições regionais) e teremos de as enfrentar, aconteça o que acontecer à sua provável candidatura nas eleições presidenciais. A transformação (em curso) do capital midiático de Zemmour em capital político coloca porém novos problemas – e cria novas ameaças – como veremos. O sucesso atual de Zemmour lembra também – no contexto específico da França – a dinâmica que vimos em ação nos últimos anos noutros países, em particular nos Estados Unidos e no Brasil, onde figuras tão grotescas quanto perigosas (Trump e Bolsonaro) conseguiram derrubar organizações de direita e conquistar o poder através de eleições.
O que se pretende aqui é fornecer algumas chaves de leitura do ‘Zemmourismo’, partindo do entendimento de que – ao contrário das afirmações do ‘grande homem’ e do que os seus adoradores imaginam – não é na sua personalidade, na sua inteligência ou no seu talento que devemos procurar a fonte do sucesso nas pesquisas que observamos neste momento. Pelo contrário, a nulidade da personagem traz-nos de volta ao enigma que Marx tentou esclarecer no seu 18 Brumário de Louis Napoléon Bonaparte: como pode uma pessoa tão medíocre ocupar a primeira linha da cena midiática e abalar o jogo político numa das principais potências capitalistas? A hipótese aqui defendida é que Zemmour é apenas o nome próprio de um processo de fascistização e, como tal, deve primeiro ser interrogado como sintoma ou, para usar a expressão de Gramsci, como um “sintoma mórbido”.
Meios de comunicação subordinados à lógica do lucro
O aspecto mais óbvio do problema é que Zemmour é uma construção midiática. Isto não data da criação do império Bolloré, que fez do ideólogo – que foi duas vezes condenado por incitamento ao ódio racial – a sua principal atração no canal de notícias CNews.
Recordemos que antes de começar na CNews, foi lançado há quase 20 anos na ITélé (o antepassado da CNews), para um debate diário, que imaginamos ser altamente conflituoso, com Christophe Barbier e depois, sobretudo, por Laurent Ruquier, que, ao fazer de Zemmour a peça central do seu programa On n’est pas couché, desempenhou o papel do Dr. Frankenstein neste caso. Ruquier pode muito bem lamentar ter contribuído para a criação do “fenômeno Zemmour”; ele não questiona as razões pelas quais ele e a produtora do espetáculo (Catherine Barma) escolheram Zemmour e o mantiveram no ar durante vários anos, ou seja, a lógica do buzz e das audiências a todo o custo, e portanto do lucro (embolsado pela empresa de produção de Barma e por Ruquier sob a forma de salários mirabolantes).
A criação do personagem midiático pode mesmo ser rastreada até à publicação do Premier sexe, um manifesto masculinista para o qual Zemmour roubou certas “ideias” desenvolvidas antes dele pelo ideólogo neofascista Alain Soral, nomeadamente no que diz respeito à “feminização das sociedades” ou à “desvitalização dos homens”. O livro afirmava a inferioridade congênita das mulheres e o domínio necessário dos homens (secretamente desejado pelas mulheres, segundo a psicanálise de quinta categoria desenvolvida por Zemmour e Soral).
Seria sem dúvida possível demonstrar que a publicação deste livro foi perfeita e deliberadamente calibrada por Zemmour, com evidentes excessos e provocações, a fim de favorecer uma ampla apropriação midiática. No início dos anos 2000, Zemmour ainda era um jornalista político bastante obscuro no Le Figaro, mas na sua busca por uma rápida ascensão social, soube jogar habilmente o jogo da mídia – como mostrou Gérard Noiriel – e tornou-se aquilo que é conhecido como um “bom cliente”: divisivo, é verdade, mas não há nada sem algo em troca.
Zemmour como construção midiática, aqui o essencial já foi dito por Pauline Perrenot no Acrimed. Mas o caso vai mais longe: Zemmour é a expressão da aniquilação quase total do debate público numa altura em que os chamados programas de “debate” se multiplicaram, mas as condições para um verdadeiro debate racional e pluralista nunca (ou quase nunca) se encontram reunidas. Se muitos editorialistas e políticos podem dizer em voz alta que Zemmour representa uma elevação do debate público, é porque este último caiu tão baixo que algumas vagas referências históricas (que, além disso, são mais parecidas com o “romance nacional” do que com a história propriamente dita), alguns números geralmente falsos e algumas citações aprendidas de cor são suficientes para fazer de um pedante um “grande intelectual”.
Há aqui tendências pesadas e antigas: naturalmente a fraqueza do pluralismo político e ideológico nos meios privados (todos nas mãos de bilionários) e nos meios públicos; mas também o fato de os editorialistas e intelectuais dos meios (BHL, Finkielkraut, Comte-Sponville, etc.), em outras palavras, intelectuais que devem a sua fama inteiramente aos meios e não a um trabalho que tenha sido aclamado no campo intelectual, definirem essencialmente a agenda midiática (o que deve estar em debate), em colaboração com os partidos dominantes, e serem chamados aos meios a dizer a “verdade” sobre as transformações da sociedade francesa (em grande parte marginalizando os investigadores/as universitários e as revistas intelectuais).
Deve também notar-se que o “fenômeno Zemmour” faz explodir a ilusão de que os meios da internet e as redes sociais tornaram os chamados meios tradicionais (imprensa escrita, televisão e rádio) obsoletos, o que nos pouparia a necessidade da sua transformação radical. Zemmour é um puro produto destes meios de comunicação tradicionais (Le Figaro e RTL em particular, e mesmo France 2 durante algum tempo), e podemos ver pelo seu exemplo que uma grande parte do que é promovido, partilhado e discutido nas redes sociais ou nos meios de comunicação da internet vem de programas de televisão e rádio, com os “novos meios de comunicação” (já não tão novos) a desempenharem, deste ponto de vista, um papel de caixa de ressonância.
Finalmente, é de salientar que embora as pesquisas meçam essencialmente a exposição midiática dos candidatos (ou mesmo, no caso de Zemmour, de alguém que ainda não se tenha declarado candidato), são, de certa forma, uma profecia autorrealizada: A onipresença midiática de Zemmour permite-lhe ver seus números nas pesquisas subir e em troca esta subida o faz existir politicamente como uma possibilidade tangível, fazendo-o subir ainda mais nas pesquisas e justificando posteriormente a sua supermidiatização (especialmente porque esta subida pode fazê-lo aparecer como o “voto útil” do campo dos “patriotas”, ou seja, da extrema direita e da direita extremada). Em qualquer caso, a responsabilidade dos “grandes” meios de comunicação social é aqui máxima.
Uma solução alternativa para a burguesia
Zemmour não é apenas um artefato midiático e das pesquisas; representa também uma alternativa possível para algumas franjas da burguesia. Os patrões não gostam de incerteza e nunca põem todos os seus ovos no mesmo cesto. Nos EUA, a burguesia financia – geralmente de acordo com os interesses específicos de cada uma das suas frações – tanto o partido Republicano como o Democrata (Clinton e Biden receberam mesmo mais dinheiro do que Trump). Do mesmo modo, na Alemanha nos anos 1930, os capitalistas alemães financiaram todos os partidos de direita e de extrema direita, incluindo os nazistas.
Agora, no estado de crise de representação política que a França atravessa (o que significa uma ruptura da ligação entre representantes e representados, manifestada pelo desaparecimento de partidos políticos solidamente implantados na sociedade, tais como o Partido Socialista, a direita gaulista ou o Partido Comunista), os poderosos procuram assegurar a existência de uma variedade de agentes capazes de defender a ordem social e favorecer a acumulação de capital, por todos os meios necessários. Isto pode ser feito favorecendo a emergência de figuras que inegavelmente pertencem às classes possuidoras e defendem os seus interesses, mas cuja reputação não é manchada pelo pertencimento a partidos desacreditados.
Macron é obviamente um destes agentes e sabemos qual foi a mobilização midiática mas também patronal de que beneficiou em 2016 e 2017, sem a qual não teria tido qualquer chance de vencer. Ao longo do seu mandato, ele tem se mostrado cada vez mais claramente como a encarnação política do partido da Ordem, em particular reprimindo ferozmente os movimentos sociais (especialmente os Coletes Amarelos). Isto implicou que ele transformasse profundamente o seu eleitorado, atraindo segmentos da direita tradicional (que tinham votado em Fillon), mantendo ao mesmo tempo os segmentos mais à direita do antigo eleitorado do PS. Isso tem funcionado até agora e não há indicação de que a sua aposta se perca em 2022.
O problema é que ao unir a direita descomplexada (de Darmanin e Blanquer) e a “direita complexada” (para usar a expressão de Frédéric Lordon) de Collomb, Rugy ou Valls, Macron aboliu a alternância esquerda/direita que tinha sido tão bem sucedida para a burguesia francesa desde 1981 para impor políticas neoliberais e para eliminar qualquer perspectiva de ruptura, num país que é no entanto marcado por grandes contestações sociais e uma forte aspiração a manter as conquistas sociais do período pós-guerra.
E mesmo que a burguesia fundamentalmente não tenha nada a temer da FN/RN (Marine Le Pen nunca deixou de lhe dar promessas de bom comportamento econômico para atrair o eleitorado do LR [Les Républicains, partido da direita]: pagamento da dívida pública, nenhuma saída do euro, nenhum aumento do salário mínimo, etc.), os grandes patrões franceses nunca consideraram a FN/RN (Front National/Rassemblement National, de extrema direita) como um candidato sério à alternativa e muito menos como “o seu partido”. Para Bolloré e outros setores da classe possuidora (Zemmour tem cada vez mais apoio dos grandes patrões), esta é uma oportunidade para trazer à tona uma alternativa a Macron que não está associada ao nome de Le Pen (considerado demasiado sulfuroso e portanto mais suscetível de provocar mobilizações, portanto incertezas etc.), mesmo que o atual inquilino do Palácio do Eliseu ainda detenha certamente a chave para a maioria da classe capitalista francesa.
Deste ponto de vista, Zemmour faz tudo o que pode para mostrar uma política burguesa ofensiva que não é diferente do que a LREM (La Republique en Marche, partido de Macron) e a LR propõem: aumentar a idade da aposentadoria, baixar os impostos sobre os lucros das empresas, baixar as contribuições, etc. A outra parte da sua política “social”, que ainda não é clara, obviamente dirá respeito aos imigrantes, uma vez que Zemmour já diz que financiará os cortes fiscais privando-os de toda a assistência social, abolindo a AME etc., o que não é de forma alguma diferente do que a FN/RN está propondo. Uma fusão de neoliberalismo e neofascismo, em suma.
A ascensão do racismo conspiratório
Tem-se dito muito nos últimos vinte anos que o discurso racista se tornou um lugar comum nos principais meios de comunicação social e entre os “responsáveis” políticos. Isto parece inegável: as obsessões autoritárias, xenófobas e racistas da extrema direita, em torno da insegurança, do Islã e da imigração, assumiram nas últimas duas décadas um papel político midiático que antes não tinham, particularmente concentrado em torno da questão dos chamados bairros “sensíveis”, sobre os quais é repetida até à exaustão a retórica neocolonial – ou mesmo a das Cruzadas – da “reconquista” (republicana, dizem-nos).
A novidade dos últimos cinco anos é o aparecimento nos “grandes” meios de comunicação – canais de “notícias” 24 horas e estações de rádio comerciais – de um enxame de pseudojornalistas de extrema direita (de Valeurs Actuelles, Causeur, L’Incorrect etc.) e a presença quase permanente de porta-vozes da FN/RN, ao lado de velhos veteranos da direita reacionária e racista (Rioufol, Thréard, etc.) que, em contato com esta jovem guarda, estão se radicalizando cada vez mais. Isto é verdade para os canais de Bolloré, mas não está de modo algum limitado a eles; quer se assista à BFM ou LCI, ou se pensarmos na chegada de Devecchio à France Inter.
A esta banalização óbvia do discurso autoritário e racista, favorecido pelo poder político quando os ministros entram em guerra contra a “subversão migratória”, o “separatismo” ou o “islamoesquerdismo”, quando um ministro do Interior justifica uma lei contra os muçulmanos, referindo-se às observações antissemitas de Napoleão em 1806, ou quando um presidente da República dá uma entrevista exclusiva à Valeurs Actuelles (recentemente condenada pelos tribunais por insulto racista), há uma radicalização da qual Zemmour é ao mesmo tempo o vetor e o produto. Dois exemplos serão suficientes.
Nos anos 1980 e 1990, a denúncia do chamado “racismo antibranco” foi unicamente obra de Jean-Marie Le Pen e da FN. A partir dos anos 2000, certos ideólogos – em torno de Jacques Julliard, Pierre-André Taguieff ou Alain Finkielkraut – difundiram a ideia de que, a par de outras formas de racismo (antissemitismo, racismo antiárabe etc.), existe algo como “racismo antibranco”. Parece que entramos em uma nova fase: “racismo antibranco” como forma de racismo entre outras (que já não faria mais sentido do que falar de sexismo anti-homem) foi sucedido pela ideia de que vivemos num “regime comunitarista e racialista antibranco, um apartheid invertido” (as palavras são de Michel Onfray)¹.
O outro exemplo, relacionado com o anterior, é o da islamofobia. Se alguns começaram a denunciar o Islã e os muçulmanos nos anos 1980 e especialmente desde o início dos anos 2000 – e se muitos ideólogos e políticos continuam a fazê-lo – com o pretexto de que ameaçam a “coexistência” através do seu “comunitarismo” ou “separatismo”, a partir daí assistimos ao desenvolvimento de uma versão muito mais agressiva da islamofobia, segundo a qual os muçulmanos aspiram subjugar a sociedade francesa, destruir a República, a França ou o Ocidente (há variações), dissolver a identidade nacional ou civilizacional etc.
Este discurso, há tempos confinado às margens (ou seja, na extrema direita), tornou-se tão comum que um escritor tão central no campo literário francês como Michel Houellebecq foi capaz de escrever um livro de sucesso sobre o mesmo (intitulado Submissão), que é obviamente considerado salutar e visionário por islamofóbicos de todas as tendências (na França e em outros lugares).
Recordemos que este livro imaginou a vitória de um candidato muçulmano nas eleições presidenciais de 2022 e a subsequente transformação da França numa República Islâmica. Esta é uma previsão estranha, dado que toda uma indústria editorial e midiática de islamofobia se desenvolveu nos últimos 20 anos na França e que os principais candidatos presidenciais da direita e da extrema direita têm se sobreposto constantemente uns aos outros nesta questão há meses. Recordemos que o livro de Houellebecq vendeu quase 350 mil exemplares após um mês e encabeçou os rankings de vendas na França, Alemanha e Itália (onde já tínhamos visto os livros violentamente racistas de Fallaci venderem vários milhões de exemplares!).
Estes mitos de uma conspiração islâmica para subjugar a Europa não são novos. A extrema direita alimenta-se deles desde os anos 1970: de O Campo dos Santos, de Jean Raspail (um dos livros favoritos de Marine Le Pen), defendendo um genocídio preventivo contra os não brancos suspeitos de quererem cometer um “genocídio branco”, a Renaud Camus e à sua “grande substituição”. Com algumas diferenças, funcionam de forma semelhante e desempenham um papel análogo às mitologias antissemitas da “conspiração judaica mundial”. Na realidade, são duas variedades de racismo conspiratório.²
Num importante livro publicado recentemente, Reza Zia-Ebrahimi mostrou a função desta forma de racismo: para evitar a “guerra civil”, a “desintegração da nação francesa”, a “destruição da civilização ocidental/europeia”, um “genocídio branco” (dependendo da variante escolhida por este ou aquele movimento de extrema direita), seria necessário utilizar meios preventivos, rompendo com os “direitos humanos” (desumanizando assim certas populações consideradas ameaçadoras) e pondo em xeque o Estado de direito: não só impedir todas as formas de imigração do Sul global (abolir de uma vez por todas o direito de asilo quando diz respeito a certos países e certas populações, revogar o direito ao reagrupamento familiar etc.), recusar conceder direitos aos migrantes que aqui se encontram (amplificando o que já se passa há anos), mas também “limpar os bairros” (uma expressão usada várias vezes por Zemmour) e levar a cabo a “remigração” (ou seja, deportação em massa).
Não foi por acaso que Zemmour pôde considerar explicitamente a deportação de milhões de muçulmanos. Quando um jornalista italiano lhe perguntou, em 2014, se era isto que ele estava a sugerir, esta foi a sua resposta: “Eu sei, é irrealista mas a história é surpreendente. Quem teria dito, em 1940, que um milhão de pieds-noirs, vinte anos mais tarde, teria deixado a Argélia para regressar a França?”. Mas isto não é surpreendente uma vez que Zemmour considera os migrantes do Sul global como ladrões, violadores e assassinos. E não vamos fingir que Marine Le Pen não iria tão longe, já que ela chegou a dizer num comício em 2012: “Quantos Mohamed Merahs nos barcos e aviões que chegam à França todos os dias cheios de imigrantes? Quantos Mohamed Merahs entre os filhos destes imigrantes não assimilados?”.
Reprodução/Twitter Eric Zemmour
Zemmour: ascensão de ultradireitista islamofóbico é produto da grande mídia
É importante ser o mais claro possível sobre este ponto: a vitória política deste racismo conspiratório acabaria por nos levar muito mais além da discriminação sistémica que os muçulmanos na França já sofrem e para além da institucionalização desta discriminação. O que está no fim do caminho é uma vasta operação de limpeza étnica (que a história do século XX demonstrou abundantemente poder assumir a forma de deportação em massa, mas também de massacres de natureza genocida), bem como uma repressão total da esquerda social e política (em todos os seus componentes, dos mais radicais aos mais moderados), os movimentos antirracistas, feministas e LGBTQI+, na medida em que estes últimos constituiriam, segundo os neofascistas, um “partido do estrangeiro”, cúmplice na destruição da França, do Ocidente, dos brancos mas também dos homens.
Os ataques cometidos por militantes de extrema direita – em particular Breivik, em 2011, contra jovens ativistas socialistas na Noruega, ou Tarrant, em 2019, contra muçulmanos na Nova Zelândia (que resultaram cada um em várias dezenas de mortes), bem como as tentativas de atentados de extrema direita regularmente frustradas na França nos últimos anos – ilustram claramente onde leva este catastrofismo paranoico e racista que constitui o conspiracionismo islamofóbico e quem são os seus alvos lógicos.
Um retrocesso ideológico anti-igualitário
Por vezes, consolamo-nos ao imaginar que Zemmour e os seus semelhantes encarnam o último suspiro de um mundo antigo em vias de extinção. Segue-se então o declive de um progressismo ingênuo segundo o qual a humanidade se moveria necessariamente – mesmo de uma forma algo caótica – para mais igualdade e respeito pelos direitos humanos fundamentais.
É assim que se posiciona o ideólogo neofascista e que os seus apoiadores o veem, como resistindo a forças imensas e ao rolo compressor de uma ideologia que quebraria valores tradicionais, identidades herdadas e hierarquias “naturais”. Contudo, basta comparar a presença muito pequena de ativistas ou intelectuais antirracistas nos “grandes” meios de comunicação com a presença crescente de ideólogos de extrema direita ou da direita extremada para ver como é grotesca esta narrativa. Nesta corrente política há uma tendência constante para exagerar o poder do adversário a fim de melhor justificar uma política extremista de restauração ou, para ser mais preciso, de contrarrevolução.
O fato é que existe aqui obviamente um elemento de verdade: Zemmour aparece na França como a versão mais agressiva de uma reação para defender os privilégios – particularmente de gênero e raça – contra a ascensão de ideias e movimentos feministas e antirracistas. É difícil, por exemplo, não notar que a intensificação da islamofobia político-midiática nos últimos dois anos se segue à maior manifestação – numérica e politicamente – que teve lugar na França nos últimos vinte anos contra o racismo dirigido especificamente a muçulmanos/as, a manifestação realizada em 10 de Novembro de 2019.
Na medida em que esta manifestação tinha sido convocada não só por organizações muçulmanas e de defesa dos muçulmanos/as, mas também pelo essencial da esquerda social e política, o objetivo para o poder político e a extrema direita era o de enfraquecer o polo autónomo liderado pelo Collectif contre l'islamophobie en France (isto foi feito com a dissolução desta organização no final de 2020 sem qualquer razão séria) e desqualificar esta esquerda que tinha (finalmente!) decidido participar numa mobilização contra a islamofobia, arrastando-a através da lama de acusações de comunitarismo mas também de antissemitismo, cumplicidade com o terrorismo, etc3.
Do mesmo modo, não é contraditório assinalar tanto uma progressão do movimento feminista como das ideias feministas, marcada na França pelo sucesso das manifestações contra as violências sexistas e sexuais, mas também por grandes sucessos de vendas nas livrarias das publicações feministas, e pela atenção despertada por um ideólogo cujo machismo ferrenho é bem conhecido. Também aqui, Zemmour é a encarnação de uma contraofensiva anti-igualitária que acompanha a quarta onda feminista como uma sombra: ao denunciar uma chamada “tirania das minorias”, não se trata simplesmente de ele e os seus comparsas esconderem a manutenção de estruturas de dominação masculina, mas de silenciar de uma vez por todas os movimentos que desestabilizam a ordem heteropatriarcal.
As forças reacionárias não foram deixadas ao abandono face às poderosas mobilizações feministas em todo o mundo ou ao enorme movimento global contra a violência policial racista. E a guerra cultural que estão a travar não deve ser considerada como um simples sobressalto sem futuro: visa a aniquilação e só terminará se for detida. Será necessário recordar que, tanto no caso do antissemitismo como da supremacia branca, foi na sequência das conquistas democráticas, precisamente numa lógica de retrocesso e ressentimento, que nasceram e se desenvolveram algumas das ideologias e movimentos mais violentamente racistas e reacionários (em particular, nos Estados Unidos, o Ku Klux Klan e, na Alemanha, o movimento Völkisch, do qual os nazis são um dos continuadores)?
A política que Zemmour procura popularizar não se limita à denúncia das teorias (e das práticas) antirracistas e feministas desenvolvidas ao longo das últimas décadas. Na sua mira está a própria ideia de igualdade e direitos humanos fundamentais. Não é por acaso que Zemmour cita regularmente um dos principais ideólogos contrarrevolucionários do final do século 18 e início do século 19, Joseph de Maistre, em particular para justificar a sua rejeição de qualquer forma de universalismo em favor de um nacionalismo étnico (“Eu sou como Joseph de Maistre, não conheço o homem, só conheci italianos, franceses, ingleses, etc.”)
Zemmour está, portanto, não só obcecado com Maio de 68, o fetiche que o antigo presidente Nicolas Sarkozy tantas vezes acenava, mas também com 1789 e a Revolução Francesa, da qual, segundo ele, provém o declínio francês. Esta obsessão coloca-o plena e inegavelmente em toda uma tradição de anti-iluminismo que o historiador do fascismo Zeev Sternhell identificou perfeitamente e que visa tanto o universalismo abstrato próprio da modernidade burguesa e da democracia liberal, como o humanismo revolucionário transportado desde o século 19 pelo movimento operário em todas as suas componentes, mas também a maioria dos movimentos anticoloniais de libertação nacional. É preciso recordar que este ponto de convergência entre a extrema direita fascista e tradicionalista foi resumido por Goebbels alguns meses após a chegada dos nazis ao poder, quando afirmou que os nazis tinham “apagado 1789 da história”?
A extremização da direita
Como já foi referido, o discurso racista tornou-se cada vez mais comum entre os políticos e nos “grandes” meios de comunicação. Isto não é novidade: Jacques Chirac foi eleito presidente da República (em 1995) apenas alguns anos depois de ter falado num comício – com muitas gargalhadas em fundo – sobre o “ruído e o cheiro” das famílias imigrantes. Da mesma forma, um antigo presidente – Valéry Giscard d'Estaing – pôde, em 1991, equiparar a imigração a uma “invasão” e propor a substituição do “direito de sangue” pelo “direito de solo” para a aquisição da nacionalidade francesa.
Mas é verdade que o apelo de Sarkozy para “descomplexar” a direita levou-o a ir mais longe, e foi ouvido pelas suas tropas e pelos seus omnipresentes editorialistas: embora Chirac tenha sido eleito por se colocar como um baluarte contra a extrema direita, foram as “ideias” e a linguagem desta última que alimentaram a direita a partir de 2002, o ano que marcou a chegada de Sarkozy ao primeiro plano do palco político-mediático.
A esquerda habituou-se a tratar com ironia ou desprezo o homem que acaba de ser condenado a um ano de prisão pelo financiamento ilegal da sua campanha de 2012. É de salientar, no entanto, que Sarkozy foi o principal ator na extremização da direita, e não se compreenderia o sucesso de Zemmour à direita, em todas as suas franjas (incluindo o macronismo, sob a autoridade, aliás, do próprio Macron, que soubemos recentemente ter encomendado um relatório sobre imigração a Zemmour), sem a ação de Sarkozy durante dez anos de vida política durante os quais esteve permanentemente no centro das atenções (entre 2002 e 2012). Antes de Macron seguir por este caminho, Sarkozy foi o principal introdutor na França de um populismo neoliberal-autoritário que é largamente semelhante ao thatcherismo (como brilhantemente analisado por Stuart Hall).
É importante sublinhar isto porque, com a ascensão de Zemmour, estão sem dúvida sendo removidos os últimos obstáculos à síntese político-eleitoral entre uma direita extremizada e uma extrema-direita com a qual a maioria dos barões da direita (e pelo menos parte do seu eleitorado) ainda estavam relutantes em formar uma aliança. Se Zemmour se colocar permanentemente à frente da LR e da FN/RN nas sondagens, tem todas as hipóteses de ganhar o apoio destas duas organizações, e de poder, numa possível segunda volta, acumular os votos dos seus respectivos eleitores. Não é que o oportunismo só seja estrutural entre pessoas cuja profissão é a política; é também porque o terreno tem sido preparado por uma deriva ideológica da direita há duas décadas, o que nos traz de volta ao sarkozysmo4.
Se os filósofos para os meios de comunicação social podem apelar ao disparo de munições reais contra os Coletes Amarelos ou confessar que votariam mais facilmente em Marine Le Pen do que em Jean-Luc Mélenchon (o que não é surpreendente para quem tenha conhecimento da falência absoluta de uma grande parte da intelectualidade durante o período entre guerras), se um porta-voz da LR pode afirmar silenciosamente que os brancos estão a ser submetidos a uma “limpeza étnica” nos bairros da classe trabalhadora e dos imigrantes, ou se os parlamentares de direita podem apelar à dissolução da UNEF (União Nacional de Estudantes da França) , é difícil ver o que poderia levar a direita a não se oferecer de corpo e alma – isto é, organizacional e ideologicamente – a Zemmour.
Portanto, não nos iludamos: num cenário de pesadelo que veria Zemmour ser eleito, ele não teria dificuldade em formar um governo composto por tenores de direita e reunindo uma maioria parlamentar. Mais uma vez, isto não deve surpreender ninguém familiarizado com a história dos governos fascistas no século 20, uma vez que, inicialmente, sempre tiveram mais ministros de direita do que de extrema direita.
É verdade que uma vitória eleitoral não permite tudo e que a oposição de setores importantes do Estado pode levar estes governos a comprometer o seu programa ou as suas ambições putschistas (vejam-se as tentativas de Trump de se manter no poder). A presença de um neofascista à frente do Estado não lhe dá necessariamente os meios políticos para fascistizar o Estado, como mostra o exemplo de Jair Bolsonaro no Brasil – pelo menos por enquanto. No entanto, o que tem acontecido no aparelho repressivo durante vários anos – as iniciativas facciosas dos sindicatos de polícia, a impunidade de que gozam os crimes policiais, bem como os tribunais dos militares que apelam ao confronto com as “hordas suburbanas” a fim de evitar a “desintegração da França” – são sinais de que partes significativas do Estado estão dispostas a ir muito mais longe numa direção ultraautoritária e na institucionalização do racismo.
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Ignorar Zemmour não é infelizmente uma opção para os anticapitalistas e movimentos sociais. Se ele é de facto o produto de pelo menos duas décadas de transformação política e ideológica, e em grande parte um monstro criado pelos meios de comunicação social dominantes, ele é agora um ator central de fascistização, que temos imperativamente de combater como tal. O fato é que, como no caso de Trump ou Le Pen, “tudo menos Zemmour” é um beco sem saída.
Voltaremos num futuro artigo a alguns caminhos políticos para enfrentar o perigo, mas digamos desde já que o neofascismo não pode ser derrotado sem o desenvolvimento de bastiões de resistência antifascista no corpo social, sem a união de movimentos de emancipação em torno de objetivos tácticos realizáveis, Sem o desenvolvimento de bastiões de resistência antifascista no corpo social, sem a unidade dos movimentos de emancipação em torno de objetivos tácticos realizáveis, permitindo vitórias (mesmo parciais) e confiança renovada na luta coletiva, sem que o antirracismo político penetre mais do que atualmente no senso comum e nas práticas militantes, e sem a emergência de uma alternativa de esquerda capaz de se envolver numa ruptura política com o neoliberalismo autoritário. A meta é alta, mas será que temos outra escolha senão aceitar o desafio?
Ugo Palheta é sociólogo, professor na Universidade de Lille e membro da Cresppa-CSU. É autor de numerosos artigos para Contretemps, de La Possibilité du fascisme (La Découverte, 2018) e, mais recentemente com Ludivine Bantigny, de Face à la menace fasciste (Textuel, 2021). Artigo publicado em Contretemps. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.
[1] É de notar que, pelo contrário, nos principais meios de comunicação social, qualquer pessoa que faça um discurso consistente visando o racismo sistêmico vivido por imigrantes e descendentes de imigrantes não europeus é instantaneamente acusada de desenvolver “pensamento de vítima”, ou mesmo de sucumbir a uma forma de “racismo invertido”. Também surgiram outras palavras que, na boca daqueles que as usam, têm mais ou menos o mesmo significado e, sobretudo, a mesma função (proibir qualquer debate sobre racismo sistêmico): “indigenismo”, “decolonialismo”, “interseccionalismo”, “wokismo”.
[2] Estes dois conspiracionismos podem também ser interligados por certos ideólogos e movimentos neofascistas, que imaginam que são os judeus, através de figuras como George Soros, que estão por detrás da “grande substituição” ou do “genocídio branco” (particularmente através da defesa dos direitos dos migrantes). No entanto, nas narrativas mais populares da extrema direita (mas também em parte dos principais meios de comunicação social), os judeus e a luta contra o antissemitismo são geralmente utilizados para apoiar os mitos do domínio global do Islã, que é visto como uma essência maligna, intangível e opressiva, intrinsecamente antissemita e fundamentalmente intolerante.
[3] Embora a esquerda seja tão frequentemente acusada de complacência com o antissemitismo, é impressionante que Zemmour possa ser objeto de hipermediatização e, ao mesmo tempo, empregar constantemente uma retórica negacionista que consiste em absolver Vichy, e em particular Philippe Pétain, da sua responsabilidade na deportação de dezenas de milhares de judeus (sem sequer mencionar a sua defesa do ideólogo antissemita Maurras e muitas outras declarações)
[4] O gaullismo não tem uma realidade há muito tempo: existe apenas de uma forma fantasmagórica, como uma referência vazia, e não há nenhuma razão real para lamentar o facto. No entanto, pode parecer irónico que os herdeiros deste movimento, nascidos na luta contra a colaboração Petainista, sejam tão atraídos por um ideólogo que fez da defesa de Pétain um elemento cardeal do seu “pensamento”. É preciso reformular por completo toda a presença de milhões de muçulmanos como “ocupação” (ou mesmo como “colonização inversa”) para imaginar que esta política estaria em continuidade com o apelo de 18 de Junho…