Uma vitória de Jair Bolsonaro (PL) no Brasil — improvável de acordo com as pesquisas eleitorais — pode tranquilizar os republicanos às vésperas das eleições de meio de mandato, nas quais os americanos vão eleger congressistas federais e estaduais, em novembro deste ano. Quem diz isso é um dos convidados do podcast War Room, apresentado por Steve Bannon, referência da extrema-direita internacional.
“Ano que vem a gente tem França e Hungria, em abril ou maio. Depois temos Bolsonaro em outubro e então as eleições de meio de mandato [nos Estados Unidos]. Esse é o tabuleiro de xadrez. Será fascinante, correto Matthew?”, perguntou Bannon.
“Se o Bolsonaro vem com uma grande vitória, a gente deve se sentir melhor para as eleições de meio de mandato”, disse o comentarista político Matthew Tyrmand, membro do conselho do Projeto Veritas, uma organização conservadora que usa câmeras secretas contra grupos e indivíduos, incluindo jornalistas. “Todos os movimentos são interconectados e interdependentes”, explicou. Bannon havia pedido ao seu convidado que explicasse a importância do ano de 2022 em episódio que foi ao ar em 24 de novembro de 2021.
Em ao menos outras seis ocasiões, Bannon colocou o Brasil ao lado de outros países que enfrentaram eleições polarizadas neste ano. Na Hungria o trumpismo saiu satisfeito, mas na França e na Colômbia a esquerda ou a centro-esquerda se mostraram vencedoras, o que torna o Brasil ainda mais importante para os planos da extrema-direita dos Estados Unidos.
“O Brasil, com essa disputa do Lula contra Bolsonaro, vai ser o último bastião de nós tentando dizer alguma coisa”, disse Bannon no programa de sete de julho deste ano. “Acho que a eleição mais importante do mundo é a do Brasil”, afirmou Tyrmard em outro episódio.
“O que vai acontecer no próximo ano com os franceses e brasileiros está conectado [com o futuro dos EUA], porque as coisas tendem a acontecer de certa forma no Ocidente Cristão e Judeu”, disse Bannon ao fim de 2021.
As eleições nesses países seriam tão importantes para a extrema-direita que toda a “elite global” estaria mobilizada para dar a vitória à esquerda, argumentam os comentaristas do podcast. “Falando sobre 2022, por que o Facebook está dizendo que vai aumentar seus esforços, entre aspas, anti desinformação, para as Filipinas, para o Brasil, para a França, para a Hungria, para as eleições de meio de mandato dos EUA? É porque o Facebook está tentando moldar o mundo em sua nova ordem”, disse Jason Miller, fundador da rede social Gettr.
O apresentador e seus convidados também opinaram sobre a política brasileira: criticaram o Supremo Tribunal Federal (STF), órgão que protagonizou conflitos com o atual presidente, e disseram que Lula é ligado ao Partido Comunista Chinês. O CCP (sigla em inglês para o partido) é citado em ao menos 552 episódios dos 923 analisados pela Agência Pública. O Brasil é citado em ao menos 96 episódios — desses, 94 também citam a China.
Em 12 de dezembro de 2021, Bannon disse que o STF é “cheio de comunistas declarados”, o que seria um problema, já que o tribunal “controla o mecanismo de supervisão das eleições” — na verdade, as eleições são promovidas e fiscalizadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
“Eles [STF] estão usando urnas que vêm da Venezuela. O povo quer cédulas auditáveis e em papel no Brasil”, acrescentou o apresentador sobre o sistema eleitoral brasileiro, que nunca teve fraudes comprovadas. Também é mentira que as urnas brasileiras venham da Venezuela, como mostrou o Estadão Verifica.
Jason Miller também criticou o tribunal no programa: “Obviamente, meus amigos da Suprema Corte no Brasil estão tentando sufocar a liberdade de expressão. Eles não querem ver quem gosta do presidente Bolsonaro ter voz. Eles não querem que ninguém que goste do presidente Trump tenha voz”, disse em 20 de outubro do último ano. A Pública revelou que a Gettr patrocinou eventos com pré-campanha bolsonarista e levou carro de som aos atos de 7 de setembro no Rio de Janeiro, onde Miller esteve presente.
Já Luís Inácio Lula da Silva, líder nas pesquisas de intenção de voto, foi definido por Bannon como “um gângster internacional” e o “mais corrupto de todos”. Lula é citado em 11 episódios e o nome “Bolsonaro”, em 30 — desses, 26 citam o Brasil. Bannon também se refere à família Bolsonaro como “os garotos do Brasil” (“the boys from Brazil”, em inglês).
O filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, foi mencionado em três programas. Em entrevista à BBC, Bannon disse que dá conselhos “sobre como [desenvolver] um movimento nacionalista populista na América Latina”.
A eleição brasileira é importante para os planos da extrema-direita dos Estados Unidos
Reprodução Twitter
Nos trechos sobre o Brasil nos 96 episódios, a importância da reeleição de Bolsonaro para a extrema-direita (20) e o recorde de imigrantes indocumentados que entram nos EUA pela fronteira sul (19) são os temas mais presentes.
Também se destacam propagandas da Gettr (12) — feitas por Bannon ou Miller —, agradecimentos à audiência do público brasileiro (10) e propagação de informações falsas sobre a pandemia (6), como a defesa da ivermectina contra a covid-19, que não tem respaldo científico.
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Em ao menos outras seis ocasiões, Bannon colocou o Brasil ao lado de outros países que enfrentaram eleições polarizadas neste ano
A Pública analisou todos os episódios do podcast War Zone em um período de cerca de um ano. O primeiro episódio que cita o Brasil data de 23 de setembro de 2021, e o último, de oito de agosto de 2022.
Bruno Fonseca/Agência Pública
América Latina é o “quintal” dos EUA
A retórica do “nós versus eles” domina o podcast. Análise das transcrições dos 923 episódios feita pela consultoria de dados Novelo Data a pedido da Pública mostrou que este é o tópico mais presente. O apresentador e seus convidados dividem as pessoas em dois grupos, o deles e o de seus inimigos. A análise feita pela Novelo — chamada modelagem de tópicos — identificou que os pronomes (nós, eles, deles) se destacam no discurso ecoado pelo podcast, o que é incomum e pode indicar a importância da construção dessa dualidade para o programa.
Ao fazer a comparação entre o que eles – Bannon e seus convidados – defendem e o que seus inimigos pregam, os participantes do programa se apoiam em temáticas como a China, a guerra da Ucrânia e a fronteira sul dos EUA.
Dizem que a China está tentando “roubar” o continente americano dos Estados Unidos, o que deveria forçar o país adotar espécie de Doutrina Monroe atualizada — a Doutrina Monroe foi o marco das relações dos EUA com a América Latina desde o final do século 19, prevendo eliminar a influência de países europeus e se tornar a potência predominante no continente.
Na avaliação deles, o atual presidente dos Estados Unidos Joe Biden não estaria sendo duro o suficiente contra interesses chineses, permitindo que o maior inimigo dos EUA tomasse conta de seu “quintal”, como eles se referem à América Latina em alguns programas. A “ofensiva comunista” estaria sendo tão forte no Ocidente que o Brasil seria o último grande país que não cedeu ao regime. “Nós temos que estabilizar o nosso continente”, concluiu o apresentador em oito de janeiro deste ano.
“Se eles [chineses] conseguirem dominar o Brasil, poderão usar isso para controlar todo o continente sul-americano. Agora você tem Brasil, Venezuela e Cuba. Essa é uma linha direta para os Estados Unidos. E, claro, o CCP [partido comunista chinês] entende isso”, acrescentou Jack Posobiec, editor sênior do programa, que está presente em ao menos outros três episódios que citaram o Brasil.
Bannon concordou e disse que a América Latina “é o quintal que pode virar o jardim da frente” no episódio do dia 20 de outubro de 2021. “Eles [chineses] vão lutar para [dominar] todo o lugar”.
Em 15 de janeiro deste ano, Jason Miller disse que as viagens que fez ao Brasil mostraram que “o CCP está tentando aumentar seu crescimento e influência [no país]” por meio de uma “massiva campanha de oposição contra o presidente Bolsonaro”. Miller, que aparece no programa para fazer propaganda da rede social que fundou, a Gettr, também falou sobre liberdade de expressão.
“Na América do Sul, nosso quintal, a [liberdade de expressão] está muito crítica”, afirmou.
Cerca de 94 episódios do podcast citam a China e uma suposta dominação
Reprodução War Room
“Eles [chineses] compram as elites nesses países [latino-americanos], particularmente as elites de esquerda. O mais corrupto de todos é o Lula, o criminoso que foi pago pelo Partido Comunista Chinês pelas commodities [brasileiras] no início deste século. A corrupção é uma das razões pelas quais ele esteve preso. Ele é o criminoso nº 1 e está concorrendo contra o Bolsonaro”, disse Bannon em 30 de dezembro do último ano.
Em outro episódio, o apresentador foi ainda mais incisivo: “Lula é o garoto-propaganda da esquerda marxista internacional”, disse em 12 de dezembro de 2021. “Ele roubou com as duas mãos da Petrobras e tudo mais, aí foi enviado para a prisão. Ah, [a prisão] mais tarde foi revertida por um juiz de esquerda”, acrescentou. As condenações de Lula pela Lava Jato foram anuladas pelo STF, que considerou que o juiz Sergio Moro havia sido parcial. A decisão beneficiou políticos de diversos espectros políticos.
“Lula é como o Partido Comunista Chinês. Ele faz parte de uma organização criminosa transnacional. Esses caras não são governos, são bandidos, assim como Biden”, finalizou Bannon.
A retórica da suposta dominação chinesa foi reforçada pelo ex-chanceler Ernesto Araújo, único brasileiro entrevistado nos episódios analisados. Em 4 de janeiro deste ano, Araújo defendeu que “a China está em toda parte na América Latina” e controla o sistema político brasileiro.
Para enfrentar essa “guerra”, argumentam Bannon e seus convidados, é necessário ser “agressivo”, característica que tornaria Bolsonaro um exemplo de comportamento: “É uma lição para os partidos separatistas de direita na Europa. Você tem que segurar a linha e ser tão agressivo quanto [o ex-presidente dos EUA, Donald] Trump, [o primeiro-ministro da Hungria, Viktor] Orban e Bolsonaro. Esse é o caminho para a vitória. Não seja mole”, defendeu Matthew Tyrmand em 24 de novembro de 2021.
A Comissão que investiga a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021 está de olho nas relações internacionais da ultradireita americana, segundo informou em entrevista à Pública o deputado Jamie Raskin, do partido democrata.
(*) Reportagem publicada originalmente em Agência Pública