Meses de protestos de ruas não convenceram autoridades do governo alemão a mudar sua posição em relação ao apoio militar a Israel, e os organizadores de atos em defesa do povo palestino passaram a recorrer à Justiça na esperança de obter mais sucesso.
Na semana passada, advogados em Berlim protocolaram uma “ação urgente” em nome dos palestinos contra o governo alemão em um tribunal do país, de acordo com uma declaração do European Legal Support Center, uma organização sem fins lucrativos alinhada ao movimento de apoio aos palestinos.
A ação alega que “armas alemãs estão sendo usadas para cometer graves violações do direito internacional, como o crime de genocídio e crimes de guerra”. Os autores pedem que a Justiça ordene a interrupção da exportação de armas alemãs para Israel.
Na sexta-feira passada, a porta-voz adjunta do governo federal alemão, Christiane Hoffmann, disse aos repórteres que responderia em outro momento à ação judicial.
O processo está relacionado às acusações criminais apresentadas em nome dos palestinos em fevereiro contra membros específicos do alto escalão do governo alemão, incluindo o chanceler federal, Olaf Scholz, a ministra do Exterior, Annalena Baerbock, e o ministro da Economia, Robert Habeck, cujas pastas têm a maior responsabilidade na aprovação das licenças de exportação de armas.
Alguns países, como o Canadá e a Holanda, tomaram medidas para rever seu apoio militar a Israel desde o início da guerra na Faixa de Gaza
“Armas de guerra” x “equipamentos militares”
A iniciativa judicial mais recente mira o governo alemão como um todo, e argumenta especificamente contra as “armas de guerra”. As leis alemãs sobre licenças de exportação as distinguem de “outros equipamentos militares”. As “armas de guerra” incluem tanques e jatos, e sua exportação precisa cumprir requisitos mais exigentes.
“Outros equipamentos militares”, como definido pela terminologia, podem incluir itens como capacetes, coletes à prova de balas, suprimentos médicos e recursos de treinamento.
Em duas décadas, de 2003 a 2023, o governo alemão aprovou quase 3,3 bilhões de euros em licenças de exportação de armas para Israel, de acordo com a Forensis, uma organização sem fins lucrativos com sede em Berlim. Mais da metade desse valor foi listado como “armas de guerra”, incluindo itens de grande porte, como submarinos.
A Forensis está alinhada aos autores da ação, mas seu relatório baseia-se em dados abertos do governo alemão e de outras fontes públicas, como o Instituto Internacional de Pesquisas para a Paz de Estocolmo (Sipri). Em um relatório recente do Sipri, a Alemanha foi listada como o segundo maior fornecedor de armas de Israel, atrás dos Estados Unidos, entre 2019 e 2023. Os dois países são responsáveis por quase todas as importações de armas de Israel. Em 2022 e 2023, a divisão entre os dois foi de quase 50-50.
Mas no último período de cinco anos, o relatório da Forensis afirma que o valor das “exportações reais” de “armas de guerra” alemãs para Israel é “confidencial” ou “não divulgado”, para “evitar a ‘identificação de empresas relevantes’ e ‘proteger segredos comerciais e empresariais'”, citando um relatório do governo alemão de 2020.
O governo alemão aprovou quase todas as licenças de exportação para Israel desde 2003. Em 2023, o valor total das licenças de exportação de armas aprovadas foi cerca de dez vezes maior do que o do ano anterior e excedeu a média de 20 anos.
Valor total é apenas parte da história
Navios, veículos blindados, artefatos explosivos e peças de tanques e aeronaves estão entre os itens de exportação que a Alemanha aprovou para Israel durante o período de duas décadas, e são exemplos de “armas de guerra” no alvo do processo movido pelos apoiadores dos palestinos.
Os autores da ação alegam que esses tipos de licenças continuaram a ser emitidas sem interrupção após o ataque terrorista do Hamas em 7 de outubro, que provocou a retaliação sem precedentes de Israel na Faixa de Gaza e é o foco das alegações de genocídio e outros crimes de guerra.
Embora as autoridades alemãs, até o momento, disseram pouco sobre o assunto, a defesa do governo na Corte Internacional de Justiça (CIJ) em Haia, nesta semana, dá uma ideia de como a Alemanha deve se defender nos processos que tramitam nos seus tribunais nacionais.
Embora os processos sejam separados, tanto a Nicarágua, em nível internacional, quanto os autores pró-palestinos, em nível nacional, querem que o apoio da Alemanha a Israel e que as exportações de armas, em particular, parem, e acusam Berlim de um suposto apoio a genocídio e de violação do direito internacional.
As autoridades alemãs não contestam os números gerais de exportação, embora discordem da forma como foram caracterizados. Os advogados que representam a Alemanha na CIJ retrataram a ação da Nicarágua como “sem base factual ou de direito”.
“O quadro apresentado pela Nicarágua é, na melhor das hipóteses, impreciso e, na pior, uma deturpação deliberada da situação real”, disse Christian Tams, professor de direito internacional da Universidade de Glasgow, ao painel de juízes da CIJ na terça-feira.
Ele apresentou dados detalhados que mostram uma redução gradual das aprovações de exportação desde o início da campanha de Israel em Gaza. Ele também indicou que o que foi aprovado e entregue não eram armas de guerra, mas que só poderiam ser usadas para treinamento e apoio.
Os “laços estreitos” entre a Alemanha e Israel, disse Tams, são “baseados em uma estrutura legal robusta que avalia os pedidos de licença de exportação caso a caso e que garante a conformidade com a lei nacional e as obrigações internacionais da Alemanha”.
Protesto interno de servidores
O relatório da Forensis parece apoiar estas alegações, pelo menos em parte, e mostra mais aprovação de licenças de exportação para “outros equipamentos militares” do que para “armas de guerra”, especialmente em 2023 – embora os números confidenciais e não divulgados sobre as “exportações reais” de armas de guerra não estejam contabilizados.
Para decidir se os processos contra a Alemanha têm mérito, os tribunais provavelmente terão que analisar esses números com muita precisão, para determinar se a diferenciação da Alemanha entre os tipos de apoio militar retrata com exatidão sua capacidade real de contribuir com supostos crimes de guerra. É improvável que haja decisões definitivas tão cedo, embora um julgamento inicial sobre a questão da CIJ possa ocorrer dentro de semanas.
Até lá, o governo alemão poderá ter que enfrentar uma revolta interna. Antes do processo na CIJ, centenas de funcionários públicos alemães supostamente enviaram uma carta anônima de protesto, de acordo com reportagens da mídia alemã de esquerda e da rede Al Jazeera em inglês.
“Israel está cometendo crimes em Gaza que estão em clara contradição com o direito internacional e, portanto, com a Lei Básica”, diz a declaração, referindo-se à Constituição da Alemanha. “Portanto, é nosso dever, como servidores federais, criticar essa política do governo federal e lembrá-la de que o governo federal deve aderir estritamente à Constituição e ao direito internacional”.
A DW não pôde verificar de forma independente a veracidade da carta. Um porta-voz do Ministério da Economia disse que “geralmente não comentamos cartas abertas”. Um porta-voz do Ministério do Exterior confirmou que foi recebida uma comunicação alegando ser de membros do serviço público alemão.
Não foram fornecidos mais detalhes, a não ser uma reiteração da rejeição do governo alemão às acusações de que seu apoio a Israel viola a lei nacional ou internacional.