A partir desta quinta-feira (11/01) terá início, na Corte Internacional de Justiça (ICJ, na sigla em inglês), o processo dos procedimentos instituídos pela África do Sul contra o Estado de Israel. Na quinta-feira os representantes da África do Sul apresentam sua acusação (já detalhada no documento de entrada do pedido), e na sexta-feira (12) Israel apresentará sua defesa.
A África do Sul aponta que Israel, com suas ações sobre a Faixa de Gaza desde o dia 7 de outubro, quebra a Convenção de Prevenção e Punição ao Crime de Genocídio (Convenção do Genocídio). Ainda é cedo para retirar as implicações e significados da ação sul-africana, mas tudo indica estarmos diante de um marco da história recente da questão palestino-israelense. Resta saber de fato qual o impacto que ela pode ter sobre a impunidade da qual Israel goza. Ou seja, qual são seus possíveis efeitos práticos?
Afinal, departamentos da ONU têm empilhadas resoluções normativas e relatórios de comissões investigativas. A própria introdução do pedido sul-africano coloca a acusação de genocídio dentro do contexto mais amplo da “conduta de Israel [em relação] aos palestinos durante os 75 anos de apartheid, os 56 anos de sua ocupação beligerante dos territórios palestinos e os 16 anos do bloqueio a Gaza”.
Duas das normativas mais centrais são a 194, de 1948, que regraria o retorno dos palestinos expulsos a antigas vilas que hoje estão em Israel ou compensação àqueles que decidirem não retornar; e a 242, de 1967, que não permite a Israel anexar territórios invadidos (Faixa de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental) durante a Guerra dos Seis Dias. Sabemos hoje, em 2024, que há cerca de 6 milhões de refugiados que ainda não retornaram a suas terras, e que o controle militar israelense sobre a Cisjordânia e Faixa de Gaza cresceram, mesmo durante os trinta anos dos Acordos de Oslo.
A adjudicação entre África do Sul e Israel que tem início na quinta-feira trata, portanto, de um dos casos mais extremos nesse arco de tempo, à exceção do que ocorreu entre 1947-1949 (a Nakba para os palestinos). Afinal, falamos aqui de uma violência que escalou nos últimos três meses até configurar algo que traz à tona o debate sobre genocídio.
O Artigo 2 da Convenção do Genocídio, sobre a base do conceito geral de atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional étnico racial ou religioso, lista cinco pontos que definem se uma ação militar vai além de um crime de guerra e constitui crime de genocídio: matar membros do grupo; causar sérios danos físicos ou mentais a membros do grupo; deliberadamente infligir sobre o grupo condições de vida calculadas para levar a sua destruição física no todo ou em parte; impor medidas com intenção de prevenir nascimentos dentro do grupo; forçosamente transferir crianças de um grupo para outro grupo.
Os argumentos da acusação
A justificativa central do pedido de 84 páginas da África do Sul diz que o país requerente, como signatário da Convenção do Genocídio, torna-se parte obrigatória no esforço de prevenir, evitar e interromper sua ocorrência. O mesmo valeria para Israel. O pedido sul-africano argumenta que, a partir do enquadramento da Convenção, os atos de Israel nos últimos três meses incluem “matar palestinos em Gaza, causar a eles sério dano físico e mental e infligir sobre eles condições de vida calculadas a trazer sua destruição física”, ou seja, se encaixariam em pontos da definição da Convenção.
Hoje, por dados de 9 de janeiro, sabemos que 23.210 palestinos foram mortos, sendo que 70% foram crianças e mulheres. Sobre danos físicos e mentais, o relatório conta, entre outras coisas, o número de feridos. Nos números do dia 9, são 59.167 desde 7 de outubro. O relatório registra também o possível uso de fósforo branco por forças israelenses em áreas densamente povoadas de Gaza. Além disso, há um número imenso de deslocados internos. Três meses desde o início da operação israelense, hoje são 1,9 milhão de pessoas, 85% da população, por dados do começo de janeiro. Um ponto ao qual o relatório se dedica é o discurso de ódio e de desumanização dirigido aos palestinos e espalhado em redes sociais.
Já quando o relatório aponta à destruição da vida palestina, se refere a infraestruturas básicas e culturais do povo atingido. Neste início de ano, são 69 mil moradias totalmente destruídas e 29 mil parcialmente destruídas (60% do total), 30 hospitais e 53 centros de saúde atingidos, 3 igrejas e 142 mesquitas colocadas abaixo. Os sul-africanos apontam que Israel bombardeou seguidamente padarias e estruturas de água, além de ter colocado abaixo terras agrícolas, plantações e tendas de cultura de vegetais. Já por volta de 16 de novembro, a infraestrutura de comida não era mais “funcional”. Pão já é escasso ou quase não-existente, com essa escassez levando ao aumento de preços.
UN Photo/Shareef Sarhan
Palestinos em meio às ruínas de suas casas, destruídas por bombardeios israelenses no norte da Faixa de Gaza, em agosto de 2014
O relatório também fez uma longa lista de declarações de autoridades israelenses que configuram intenção de genocídio. A intenção, conectada com a conduta da operação militar, configura o enquadramento de genocídio.
Netanyahu, em 28 de outubro, na coletiva anunciando o início das operações terrestres, invocou a história bíblica dos Amalek pelos israelitas. O relatório sul-africano cita trecho sobre a passagem bíblica: “Agora vão, ataquem os Amaleks, e façam prescrever tudo que pertença a ele. Não poupe ninguém, e matem tanto homens quanto mulheres, crianças e as que criam, o gado e o rebanho, camelos e burros”.
Já o ministro da Defesa, Yoav Gallant, disse, em ocasião que se referiu às suas tropas, que “Gaza não irá retornar ao que era antes. Nós vamos eliminar tudo. Se não for em um dia, levará uma semana. Isso levará semanas ou mesmo meses, não atingiremos todos os lugares”.
Um dos pontos mais importantes, e isso é resultado de uma manobra da África do Sul, é que além do mérito do pedido – se Israel comete genocídio contra os palestinos –, o pedido à ICJ demanda medidas provisórias. Na rubrica 144, sob “extrema urgência”, o documento lista medidas que devem ser tomadas imediatamente. Entre elas: que o Estado de Israel imediatamente suspenda suas operações militares em e contra Gaza.
O avanço diplomático israelense
Israel vai buscar desmontar os argumentos sul-africanos. De acordo com o jornalista Barak Ravid, o ministério das Relações Exteriores israelense está instruindo suas embaixadas a pressionar diplomatas e políticos contra o caso sul-africano no ICJ nos países em que estão alocados.
O cabo diplomático do Ministério atesta que o “objetivo estratégico” é que, no curto prazo, a Corte rejeite o pedido de injunção para que Israel suspenda as operações militares. Já no escopo mais amplo, o desafio é impedir que a ICJ determine que Israel de fato comete genocídio e reconheça que o exército israelense opera na Faixa de Gaza de acordo com a lei internacional. Uma das táticas é se apoiar em declarações de outros países que testemunhem que Israel trabalha para aumentar o envio de ajuda humanitária aos palestinos e que se esforçou para diminuir o número de civis mortos.
As possíveis consequências
O jurista Francis Boyle, em entrevista ao Democracy Now, considera que a África do Sul tem boas chances de “ganhar uma ordem contra Israel para cessar e desistir de cometer atos genocidas contra os palestinos”. Boyle atuou de forma bem-sucedida no caso da acusação de genocídio da Bósnia contra a Sérvia. Se isso ocorrer, sob o Artigo 1 da Convenção, todos as partes signatárias estarão obrigadas a prevenir o genocídio contra os palestinos. Ravid expõe que um dos temores israelenses é sobre os impactos legais e também sobre ramificações econômicas e em relações de segurança com outros países a partir das decisões da ICJ.
Outra questão: se entre os 15 juízes da Corte eles chegarem à conclusão de que há de fato um genocídio, terceiras partes podem ser acusadas dentro da definição do Artigo 3 da Convenção, que criminaliza cumplicidade com atos genocidas. O principal alvo poderia ser os EUA.
Por fim, vale apontar que quem preside atualmente o conjunto dos 15 juízes da ICJ é a estadunidense Joan Donoghue, uma advogada e pesquisadora que atuou no Departamento de Estados dos EUA. Boyle, ao Democracy Now, disse que isso pode afetar os procedimentos do caso, já que “a presidente tem muito poder para moldar os procedimentos.” O especialista disse que é possível que ela possa usar “esse poder para moldar os procedimentos a favor de Israel.” Vale destacar que há um juiz brasileiro no ICJ, Leonardo Brant, que irá julgar o mérito do pedido sul-africano.
(*) Arturo Hartmann é doutor em Relações Internacionais, pesquisador do Centro Internacional de Estudos Árabes e Islâmicos da Universidade Federal de Sergipe (CEAI-UFS) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU).