A primeira participação das regiões separatistas de Donbass nas eleições presidenciais da Rússia já coleciona histórias. Opera Mundi esteve presente em um dos 22 colégios eleitorais no bairro de Kirovsky, subúrbio da República Popular de Donetsk, para acompanhar a tarde da então votação do sábado (16/03). Apesar dos contínuos bombardeios nas zonas periféricas da cidade, era evidente o clima de esperança entre as pessoas que chegavam, muitas vezes em grupos, ao distrito que leva o nome de um lendário líder bolchevique e que também foi prefeito da cidade russa de São Petersburgo: o revolucionário Sergei Mironovich Kirov.
Durante o processo, Irina Lugovaya, responsável pelo centro eleitoral 234, recebeu a reportagem com simpatia e falou sobre a expectativa positiva dos cidadãos em um momento importante que poderia mudar os rumos da Guerra na Ucrânia (ou Operação Militar Especial, como também chamam os moradores da região). Segundo ela, a vontade e esperança daquelas pessoas em participarem estava superando o medo de novos ataques.
Por volta das 14h30 (horário local), cerca de 300 eleitores já haviam votado naquele local. A presença de mulheres foi bastante expressiva (o que era de se esperar), pois boa parte de seus companheiros e filhos estão na linha de frente, mesmo que a poucos quilômetros dali.
E foi neste clima de confiança que Irina perguntou se Opera Mundi gostaria de ir até o casamento do seu sobrinho acompanhar a cerimônia e a votação. Na Rússia há a possibilidade de solicitar as tais “urnas volantes” em domicílio. Esse sistema, que foi bastante utilizado durante a pandemia, acabou sendo adotado para atender, principalmente, os mais velhos ou aqueles que possuem problemas de mobilidade. Existe também a opção do voto via internet, graças ao sistema blockchain implementado pelas autoridades russas.
Convite aceito. Junto também estavam uma fotógrafa e a mestre de cerimônias, além da comissão de representantes dos partidos e um policial. A presença dos dois últimos é condição obrigatória para que a urna possa se deslocar.
Quando chegamos, Vladimir e Natália estavam prontos para celebrarem o amor em meio à guerra. Ambos já tinham exercido o direito ao voto. O noivo contou que a data foi uma coincidência, mas que estava feliz em poder viver, pela primeira vez, um momento “indescritível” e “emocionante” diante de uma realidade tão difícil. “E espero que seja a última”, disse ao sorrir.
Já pensando sobre o futuro, os recém-casados contaram que esperam que “tudo fique finalmente bem” porque não pretendem ir para outro lugar, querem viver as suas vidas na sua terra e ao lado do seu povo. “Não queremos ir a lugar nenhum, estamos felizes. Só queremos que os bombardeios parem”, afirmou com confiança ao mostrar as alianças que brilhavam nas mãos de Natália.
“Não nos importamos com o que eles pensam”
Apesar de não revelar a escolha do voto, boa parte da população parecia decidida em reeleger Vladimir Putin. Segundo a administração do governo de Donetsk, cerca de 89% dos eleitores compareceram aos colégios eleitorais espalhados pela cidade. Entre os dias 11 e 14 de março, equipes foram recolhendo os votos nas casas dos cidadãos e cidadãs votantes a fim de evitarem aglomerações. A exemplo do que aconteceu em Kherson, onde as forças ucranianas atacaram um centro de votação ferindo diversas pessoas, o receio de bombardeiros às zonas eleitorais naquela região também era iminente.
O irmão do noivo, que votou depois da cerimônia em um recinto montado especialmente para receber a urna, disse que poder votar e presenciar a felicidade dos recém-casados fez a data se tornar ainda mais especial, reforçando que “vai ficar tudo bem”. Ao argumentar que o povo de Donetsk não estava preocupado com o que o Ocidente pensava sobre as eleições russas, o jovem trabalhador pareceu muito convicto de que os cidadãos e as cidadãs da região iriam eleger o presidente que queriam. “Vamos escolher o presidente que queremos”, declarou ao som da canção “I Will Always Love You”, de Whitney Houston.
Sobre o que foi difundido no Ocidente, de que essas eleições são “ilegítimas”, apenas reiterou: “as pessoas têm os seus próprios pensamentos. Podem pensar o que quiserem, não nos importamos com isso.”
Debaixo de bombas
Vivendo há mais de uma década entre conflitos, as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, além dos territórios de Kherson e de Zaporozhye, declararam as suas independências em fevereiro de 2014 logo após o golpe sofrido pelo ex-presidente ucraniano Viktor Yanukovych, no episódio que ficou conhecido como Euromaidan. Motivados pela anexação da Crimeia pela Rússia, a população local resolveu pegar em armas para defender a sua liberdade, já que parte dos cidadãos se consideram russos – como revelou o referendo de independência das regiões de Donbass realizado em maio de 2014. Desde então, Kiev não aceita a decisão, bem como os Estados Unidos e a União Europeia, aliados da Ucrânia.
A partir de 2022, quando a Rússia finalmente reconhece as regiões separatistas e avança sobre os territórios ucranianos, diversos moradores de Donetsk começaram a trocar os seus passaportes. Hoje, parte deles já possuem a documentação russa que lhes garante o direito de entrar no país que os acolheu a qualquer momento.
Na primeira noite na cidade de Donetsk, Opera Mundi foi recebido por estrondos resultantes de explosões. O ataque mais forte, que atingiu um prédio residencial, aconteceu no início da manhã do dia 10 de março, no bairro de Kirovsky. Vassily, um motorista de ônibus que está se recuperando de uma cirurgia nos rins, nos acompanhou mostrando os rastros de destruição deixados pelas forças ucranianas na região.
Em seu carro, Vassily faz questão de estampar a bandeira da Federação Russa, além de exibir uma enorme cruz ortodoxa pendurada no retrovisor. “Se quiser pode fotografar, não há problema”, exclamou. Aos 45 anos, ele vive com a sua esposa. Os seus dois filhos, um rapaz de 21 anos e uma moça de 19, cresceram em um duro contexto de guerra. Com a intensificação do conflito, em 2022, a mais nova se mudou para a cidade russa de Rostov, enquanto o irmão já preenche as fileiras na linha de combate do exército da Rússia.
“Deixem Donbass em paz”
Na madrugada de sexta-feira (15/03), a reportagem também presenciou a triste história de Marina, que viu os três filhos (uma criança de dois anos, um menino de nove anos e uma adolescente de 16 anos) perderem suas vidas após um bombardeio em sua casa, no bairro de Petrovsky, subúrbio de Donetsk. O pai da menina mais nova também morreu em combate em janeiro de 2023, aos 34 anos. O funeral, que aconteceu no domingo (17/03), foi marcado pelos ruídos das explosões e rajadas de tiros.
Durante a semana das eleições russas, Opera Mundi visitou ainda o hospital de traumatologia de Donetsk, onde conversamos com alguns sobreviventes do ataque ao mercado do bairro de Tekstilshchi, em 21 de janeiro deste ano. Naquele dia, 27 pessoas perderam as suas vidas e 24 ficaram gravemente feridas.
Igory, que vive na região, é um dos que permanece internado após sofrer vários ferimentos provocados pelos fragmentos das balas 155 mm (artilharia fabricada e fornecida pelos países membros da OTAN ao Exército ucraniano). Durante a conversa, ele demonstrou ser um grande apreciador de futebol ao lembrar do Sporting de Portugal. Quando questionado se conhecia algum time do Brasil, a resposta foi direta: “o Santos de Pelé”.
Lyudmila, outra vítima do ataque ao mercado, também se recupera do trauma que viveu enquanto aguarda por mais uma cirurgia na perna. No início, quando chegamos e perguntamos se podíamos entrevistá-la, ficou surpresa com a nossa visita, mas rapidamente sentiu-se à vontade para contar a sua história.
Emocionada, ela contou, ao mostrar vídeos e fotos, que conhecia praticamente todas as pessoas atingidas e que, dias atrás, a amiga de 28 anos com quem dividia o quarto do hospital, havia perdido uma perna. Mãe de cinco filhos, Lyudmila afirmou que os países da OTAN estão enviando armas à Ucrânia para matar o povo de Donetsk e que isso precisa acabar. “Se Kiev quer fazer parte da Europa, que faça, mas deixem Donbass em paz”, finalizou.