O brasileiro Rodolfo Cunha Cordeiro trocou a vida pacata de Presidente Prudente, no interior de São Paulo, para ocupar a linha de frente do Exército russo em Donbass, região separatista localizada ao leste da Ucrânia. Antes de deixar o Conjunto Habitacional Ana Jacinta, onde vivia com os pais e os irmãos, o agora oficial das tropas da Rússia conta que estudava direito e trabalhava na área de segurança.
Quando resolveu vender a sua moto para comprar uma passagem apenas de ida rumo a Moscou, o paulista de 36 anos contou a Opera Mundi que a sua mãe e a família o apoiaram. “Sabe que até hoje eu sinto falta da minha moto?”, disse com um sorriso tímido.
Através de um aplicativo de mensagens, ele já havia adiantado que vivia apenas com a sua Makarov 9mm, uma pistola russa desenvolvida e fabricada no período da União Soviética. Após conversas, o primeiro encontro com o soldado aconteceu nas dependências do Hotel Central de Donetsk, local que ainda exibe as marcas do último bombardeio provocado pelas forças ucranianas em 27 de novembro de 2022.
Dali, mais duas reuniões aconteceram: uma delas no Donbass Palace, hotel que foi ocupado pela Gestapo durante a Segunda Guerra Mundial e que também foi atingido duas vezes pelo Exército ucraniano durante o atual conflito, sendo o último ataque no primeiro dia de 2024.
Conhecido na cidade como ‘Magayver’ (versão em português do personagem da série norte-americana MacGyver), Rodolfo é mais um entre os milhares de estrangeiros que lutam pela independência do Donbass desde 2014, quando Kiev sofreu um golpe que ficou conhecido como Euromaidan. Ao cancelar um acordo econômico que integraria a Ucrânia à União Europeia, os protestos pró-Ocidente ficaram cada vez mais frequentes, levando à queda do então presidente Viktor Yanukovych em fevereiro daquele ano e mergulhando o país em uma guerra civil que ajuda a explicar o atual conflito entre os países.
“Eu acompanhei tudo desde o começo. Vi as pessoas sendo queimadas lá em Odessa e resolvi vir para cá em solidariedade, onde permaneço até hoje”, explicou o combatente brasileiro que confessou nunca ter pensando em voltar ao Brasil. “Mas quem sabe um dia? Tenho questões para resolver com um banco que me sacaneou”, disse em tom descontraído.
Em Donetsk há 10 anos, Rodolfo avaliou que foi muito bem recebido desde o primeiro dia e que um dos maiores desafios até então foi o da barreira linguística. Basta uma ida em algum café da cidade para logo ser reconhecido e abraçado pelos soldados que o admiram.
A Opera Mundi, o brasileiro disse que aprendeu a falar russo sozinho com ajuda de materiais que encontrou na internet, além de utilizar alguns aplicativos específicos. “Também comecei a ler livros e fui pegando. Com seis meses, um ano, eu já estava com o idioma intermediário”, explicou ao acrescentar que o frio, a culinária e as diferenças culturais também acabam sendo uma barreira inicial que só o tempo é capaz de derrubar.
“Teve um que até fez uma tatuagem do meu rosto usando uma foto minha”, lembrou.
“Tem muito cara querendo me matar”
Sabendo que poderia perder a vida, Rodolfo ‘Magayver’, como gosta de ser chamado, fala que veio preparado mental e fisicamente para o que iria enfrentar. Estava certo que a situação não seria das melhores e que presenciar os horrores da guerra era parte do contexto de conflito armado.
“Eu já sabia que aqui eu poderia perder a minha vida, tanto que eu acabei sendo ferido por oito vezes e ainda tenho que fazer mais duas cirurgias, uma na perna e outra no dedão da mão”, desabafou enquanto mostrava alguns dos ferimentos na pele.
Além, também, de falar sobre a sua “segurança na cintura”, exibindo a fiel companheira semiautomática.
Donetsk é um dos territórios mais impactados pelo conflito. A situação se agravou após a Operação Militar Especial na Ucrânia iniciada pela Rússia em 2022. As ruas desertas, os diversos estabelecimentos abandonados, os tapumes de madeira que substituem as vidraças estilhaçadas, a falta de tratamento e distribuição de água e os estrondos constantes das explosões provocados pelos combates às margens da cidade, são alguns dos fatores que deixaram a realidade da população ainda mais difícil.
É comum cruzar com grupos de jovens soldados em restaurantes que ainda resistem no comércio. E é nesse cenário de incertezas e solidão que Rodolfo lembra dos amigos que perdeu durante as diversas batalhas que travou, incluindo a de Mariupol, onde se feriu ao lado de outro brasileiro.
“Ver os companheiros que você convive no dia a dia morrendo, perdendo membros… Mas, é a guerra. É a essência da guerra e não tem como mudar isso”, disse.
Ao contar sobre a rede de apoio criada ao lado de outros latino-americanos que também decidiram lutar por outro povo que não o seu, Cordeiro fixa o olhar para o nada, como se tivesse a certeza de que o seu destino será o mesmo daqueles que hoje são lembrados como estatísticas.
Ele recordou com emoção o caso de Alexis Castilho, o companheiro colombiano que viveu por oito anos em Donetsk, mas perdeu a vida em combate. A família precisou da ajuda financeira dos próprios soldados para pagar o envio das cinzas de volta à terra natal. “Me identifiquei com muitos combatentes que vieram também. Mas, em 2015, muitos retornaram para os seus países. Os poucos que decidiram ficar, morreram nas batalhas”.
Rodolfo também revelou que do lado ucraniano existem muitos estrangeiros contando mentiras, incluindo brasileiros, que, segundo ele, fazem rifas e vaquinhas em nome da causa do povo ucraniano, mas no fim, pegam o dinheiro para uso próprio.
“Teve um que comprou medalhas numa fábrica para se autopromover. O detalhe é que venderam para ele uma premiação dada aos liquidadores do desastre de Chernobyl de 1986. Teve um outro que comprou duas medalhas de aniversário de 50 anos da Vitória Soviética na Segunda Guerra Mundial e disse que ganhou da Ucrânia”, contou.
‘Magayver’ fez parte dos principais combates, sobretudo, durante a guerra civil. Recordou alguns desses episódios ao dividir as histórias nas trincheiras.
Inicialmente manteve-se em Donetsk, depois foi lutar no Estado de Lugansk. Durante a operação especial russa, participou da batalha do aeroporto e também esteve presente na linha de frente em Kiev e Kharkiv, dois lugares que, para ele, foram os “mais quentes” desde o início da ofensiva liderada pelo presidente russo Vladimir Putin.
Quando questionado de como vive ali, afirmou que se “esconde”, já que “tem muito cara querendo me matar”.
Ainda assim, Rodolfo carrega com orgulho o título de Cidadão da República Popular de Donetsk, mesmo ciente de que esse documento não é reconhecido por nenhum país do mundo. Ele também já conquistou o passaporte da Rússia e fez questão de dizer “eu sou russo”.
Sobre as cirurgias que ainda precisa fazer, o brasileiro alega que há dois anos aguarda do governo local o pagamento da compensação dos ferimentos. “Não fizeram a cirurgia na minha perna e também não estão querendo fazer na minha mão”, lamentou.
Mas unidades de saúde não são os lugares que Cordeiro mais aprecia: um dos episódios em que ele virou manchete de jornais brasileiros foi por conta da fuga do hospital Central de Donetsk após ser alvejado durante um combate em 2022.
“Eu estava lá sem o documento e os médicos não queriam me dar alta. Já não aguentava mais a comida sem sal. Aquilo estava parecendo uma prisão para mim e aí eu acabei fugindo. Queria voltar logo para o front”, disse.
Ocidente x Rússia
Rodolfo buscou desmistificar que a guerra que completou dois anos em 24 de fevereiro teve seu estopim recentemente, como “acreditam algumas pessoas no Ocidente”. O oficial do Exército russo enfatizou que o conflito desatou em 2014 com uma guerra civil instituída pela própria Ucrânia, que não aceitou que as pessoas das regiões de Donetsk e Lugansk se separassem.
“Houve um referendo e a população decidiu que não queria mais fazer parte da Ucrânia. Muitos falam que eles (os russos) invadiram. Não! São as próprias pessoas aqui que pegaram em armas e foram lutar pelos seus direitos de liberdade”, reforçou.
O combatente descreve ainda que, entre os anos de 2014 a 2022, os cidadãos de Donbass trocaram os seus passaportes pelos da República Popular de Donetsk e Lugansk. Porém, em 2019 houve um processo onde por livre e espontânea vontade parte da população começou a solicitar a documentação russa. “E aí eu vejo que, ao perceberem que a população estava sofrendo uma agressão injusta, os governantes da Rússia resolveram tomar parte para defender esse povo”.
Para ele, diversas notícias que chegam ao Brasil são distorcidas. Ele rebate a narrativa de que a Rússia invadiu e matou civis. “Eu estive presente desde o começo e não vi nada disso”, alegou com bastante firmeza.
“São poucas as mídias que vêm para cá. Posso afirmar com plena convicção que isso de invasão não aconteceu”, voltou a repetir.
Quando questionado sobre a operação russa ter como foco a desnazificação da Ucrânia, Cordeiro respondeu que “sim”, sem hesitar. “Vejo isso desde o começo. Quantas vezes não pegaram prisioneiros com bandeiras, insígnias e tatuagens nazistas? Eu realmente presenciei essas coisas e não é conversa fiada, não. Direto a gente pega eles com equipamentos da OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte]. Eu mesmo já presenciei a existência de munições da Espanha e de outros países também”, alegou.
De ‘super-heroi’ a terrorista
Na Praça Lênin, no centro de Donetsk, o filho da enfermeira Sandra Regina da Cunha Cordeiro e do motorista Edson Cordeiro, parou para mostrar no celular algumas lembranças de quando levava a vida como um simples jovem do interior paulista. Entre as memórias que carrega no telefone, estão algumas fotografias em que aparece vestido de “Homem de Ferro”.
A fantasia criada por ele próprio revelou que, além da habilidade incrível para aprender idiomas e imitar personagens icônicos da cultura popular brasileira (como o Silvio Santos falando russo, por exemplo), ele também demonstra ter talento como designer e figurinista. “Sou autodidata e o impossível atende pelo meu nome”, disse em tom de brincadeira.
Hoje, Cordeiro está na lista de “terroristas” pelo Exército da Ucrânia. Segundo a inteligência do país, o brasileiro apresenta uma ameaça à segurança nacional, pois o governo ucraniano não reconhece a independência dos estados de Donbass.
“Não luto por dinheiro”
Essa foi uma das frases mais repetidas por Cordeiro. O combatente diz estar farto de ler em entrevistas que já concedeu sobre ter se mudado para Donetsk para lutar por dinheiro. Segundo ele, o seu objetivo sempre foi ajudar a libertar um povo oprimido e que o fim desse conflito também está no seu horizonte.
Fez questão de reforçar que os separatistas buscam por um acordo de paz “há muito tempo”, citando os dois Tratados de Minsk (protocolos assinados por representantes da Ucrânia, Rússia, República Popular de Donetsk e República Popular de Lugansk para pôr fim à guerra na Ucrânia).
“Mas o pessoal do outro lado não respeita. A única forma de acabar com esse conflito é o governo da Ucrânia assumir que esses territórios são independentes e abrir mão deles, porque de outra maneira eu não vejo solução. Os ucranianos bombardeiam o território constantemente. A população daqui não vai se render, de jeito nenhum”, comentou.
Ao perguntar se pretende ficar até o fim, Cordeiro diz que provavelmente sim. “Ultimamente eu ando com alguns problemas de saúde. Preciso fazer algumas operações. Porém, pretendo sim. Eu já fiz mais de 10 cirurgias. Algumas vezes eu preciso mesmo operar, outras eles só retiram os estilhaços, costuram e a vida segue. Nada grave, não é mesmo?”
A respeito da política brasileira, Cordeiro garante que há muito tempo não acompanha de perto o que se passa no Brasil e que usa as suas horas vagas apenas para ler sobre as notícias locais, falar com os amigos mais próximos e com os familiares. Ele também pontuou que, desde que deixou o país, em nenhum momento foi procurado por nenhuma representação do governo.
Sobre a reeleição de Putin como presidente da Rússia, o brasileiro disse que já havia uma expectativa da vitória e que a maioria das pessoas que vive no Donbass queria que isso ocorresse.
“Vejo o compromisso dele com o povo daqui”, afirmou.