O livro “Cultura afro-brasileira: temas fundamentais em ensino, pesquisa e extensão” é resultado de debates a respeito de temas tratados durante o curso de especialização Políticas de Promoção da Igualdade Racial na Escola – PPIRE, na Unifesp. A obra é organizada por José Carlos Gomes da Silva e Melvina Araújo e pretende contribuir para a redução das desigualdades raciais no Brasil.
Leia abaixo a introdução da obra. O download do livro completo por ser feito aqui.
O presente volume é fruto de reflexões sobre alguns dos temas abordados no curso de especialização Políticas de Promoção da Igualdade Racial na Escola – PPIRE, oferecido pela Universidade Federal de São Paulo – Unifesp e pelo Comitê Gestor Institucional de Formação Inicial e Continuada de Profissionais da Educação Básica – Comfor. Tendo sido elaborado no contexto de implementação da Lei 10.639/03, que faz parte de um conjunto de políticas de ações afirmativas, este curso teve por objetivo contribuir para a redução das desigualdades raciais e o reconhecimento da diversidade étnico-racial no Brasil.
Vale observar que as políticas de ações afirmativas no interior das quais este curso teve lugar se tornaram possíveis graças às pressões do movimento negro e ao contexto em que ocorreu a Constituinte, no final dos anos 1980, em que se desenhou um novo modelo de nação não mais pautado na ideia de uma nação mestiça, composta pelas “três raças”, mas ancorado na ideia de uma nação multicultural, cuja riqueza cultural estaria na preservação das diferenças culturais das várias etnias que compõem a população nacional. Assim, um dos principais marcos do texto constitucional relaciona-se à garantia de alguns direitos coletivos, além dos direitos individuais.
O reordenamento jurídico e político relativo aos direitos coletivos que marcou a Constituição de 1988 está relacionado a um reordenamento ideológico e político global, que exigiu dos Estados-Nações a criação de dispositivos para compensar e corrigir as desigualdades históricas no acesso aos bens públicos. Nesse sentido, vale observar que esse reordenamento ideológico se relaciona ao desenvolvimento de agendas relativas à igualdade racial, ao feminismo e ao multiculturalismo, marcadas por um largo debate conceptual entre concepções de igualdade como semelhança e de igualdade como diferença. De acordo com Modood (2009), as concepções de igualdade que embasaram o multiculturalismo pressupõem o direito ser assimilado à cultura dominante com a tolerância da diferença na esfera privada, assim como o direito de ter diferenças reconhecidas e garantidas na esfera pública. Esses debates, em conjunto com as pressões dos movimentos sociais criaram um novo clima político pautado na autodefinição positiva de diferenças grupais.
No que concerne especificamente aos afrodescendentes, Sérgio Costa (2006) assinala que a institucionalização de mecanismos de reconhecimento de manifestações culturais afro-brasileiras e de visibilização pública do antirracismo foram fortemente influenciadas pelos debates em torno do centenário da abolição da escravidão, em 1988, do tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares, em 1995, e da participação do Brasil na Conferência de Durban, em 2001. Em consequência dessas discussões foi criado, em 2002, o Programa de Ações Afirmativas, que visava aumentar o número de negros, mulheres e portadores de deficiência em cargos da administração federal e, em 2003, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, com o objetivo de formular e coordenar as políticas e diretrizes para a promoção da igualdade racial.
As políticas de reconhecimento, assim como os movimentos sociais que as precederam e lhes são também coetâneos, foram – e continuam sendo – acompanhadas por um intenso debate no campo intelectual. Este debate, orientado pela questão do reconhecimento, é apresentado no capítulo 1, de autoria de Jair Batista da Silva e Glaydson José da Silva. Nesse capítulo, os autores argumentam que o problema racial emergiu em decorrência das iniciativas dos movimentos sociais e políticos que puseram em questão a desigualdade racial na sociedade brasileira, sobretudo na educação, sendo o debate atual em torno do problema do reconhecimento um desdobramento desses movimentos.
Nesse sentido, cabe ressaltar que uma das considerações do movimento negro acerca da inclusão social e, consequentemente reparação dos danos historicamente causados em virtude da escravidão e segregação dos negros em nossa sociedade, é a de que esta passa necessariamente pelo acesso à educação. No entanto, se, conforme Luena Nunes Pereira (2010), num primeiro momento, o movimento negro se empenhava na luta pelo acesso da população negra à educação formal sem fazer uma crítica ao sistema escolar, a partir dos anos 1970, o fracasso escolar das crianças negras passou a ser atribuído a problemas nesse sistema. Em meados dos anos 1980, quando começaram a ser realizadas pesquisas focadas nesse tema, se começou a apontar a inadequação do currículo escolar, os conteúdos dos livros didáticos – que não condiziam com os valores, conhecimentos e crenças dos alunos negros – e a forma dos professores lidarem com os alunos de origens raciais diferentes como causas de um pior desempenho escolar das crianças negras em relação às brancas.
Assim sendo, ainda de acordo com Luena Pereira (2010), começou-se a considerar a importância da valorização do passado dos alunos negros como um fator de aumento da autoestima desses alunos e, por consequência, de sua permanência no sistema escolar. Diante disso, a história passou a ser vista como um elemento chave para a construção de uma memória positiva. Nesse sentido, a história da África começou a considerada como importante para a compreensão da historiografia brasileira, particularmente no período escravista e de tráfico negreiro, e sua inclusão no currículo passou a ser pauta do movimento negro.
As pressões em torno da inclusão da história da África no currículo escolar brasileiro desembocaram, depois de cerca de vinte anos, na promulgação da lei 10.639/03. É em torno de algumas das consequências desta lei que dois dos capítulos deste livro se debruçam: num, os autores Deivison Faustino e Leila de Oliveira, fazem um relato sobre uma experiência de formação de professores da Rede Municipal de Ensino de São Paulo nos temas referentes às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais; noutro, Patrício Araújo analisa as disputas pelo controle do currículo da Educação Básica no Brasil.
No capítulo 2, intitulado A formação continuada para educação das relações étnico-raciais: um relato de experiência, Deivison Faustino e Leila de Oliveira demonstram a existência de valores bem parecidos àqueles descritos por Luena Pereira (2010) no que concerne à forma como o racismo se manifesta cotidianamente no ambiente escolar. Segundo eles, apesar da maioria dos professores terem ciência da existência da lei 10636/03, poucos eram os que conheciam as prerrogativas desta lei, assim como o conteúdo do documento Orientações Curriculares: expectativas de aprendizagem para a educação étnico-racial na Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio – Educação Étnico-Racial SME/DOT (2008). Assim sendo, coube aos autores a tarefa de buscar sensibilizar os professores participantes da experiência de formação sobre a questão do racismo na sociedade brasileira e o papel deles em sua manutenção ou supressão.
No capítulo 3, O Antirracismo do ENEM e o Racismo do Movimento Escola Sem Partido: Intolerância Religiosa e Racismo nas disputas pelo controle do currículo da Educação Básica no Brasil, Patrício Araújo, ao analisar as disputas em torno da definição do currículo da educação básica aponta para uma das faces do racismo que perpassa a sociedade brasileira, a intolerância religiosa. Nesse sentido, o autor argumenta que a intolerância religiosa perpassa o dia-a-dia das escolas e se constituiu também na propulsora de uma reação antes nunca vista na realização de uma prova do ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio: em decorrência do tema da redação do exame de 2016, Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil, alguns alunos e aplicadores de prova se recusaram a permanecer nas salas de aula. Assim sendo, continua o autor, no Brasil, a violência do racismo está imbricada a outro tipo de violência, a intolerância religiosa.
Embora disputas envolvendo a definição das práticas religiosas afro-brasileiras como religião existam desde o início do século XX a categoria intolerância religiosa apareceu na literatura antropológica mais recentemente, referindo-se a atitudes de rejeição ao outro ou, mais especificamente, às religiões desses outros. Nesse sentido, a intolerância religiosa como propulsora de uma série de atos violentos contra espaços religiosos e pessoas adeptas de religiões afro-brasileiras tem sido apontada por autores tais como Vagner Gonçalves da Silva (2007), Ronaldo de Almeida (2007), Christina Vital da Cunha (2016), Victor Rangel (2016), Lucía Copelotti (2016) e Ana Paula Miranda (2012), entre outros, assim como pela imprensa nos últimos anos. De maneira geral, esses autores apontam o fundamentalismo religioso, sobretudo aquele ligado às denominações neopentecostais, como o motor desses atos. Além disso, a intolerância religiosa é frequentemente associada ao racismo, que é também uma forma de intolerância, que se torna ainda mais forte quando somada à intolerância religiosa.
As discussões relativas às religiões afro-brasileiras, além de constituintes das ciências sociais brasileiras, têm-se mostrado de suma importância tanto no que diz respeito às ações afirmativas quanto no combate à intolerância religiosa. Sendo assim, a inclusão desse tema no curso Políticas de Promoção da Igualdade Racial na Escola e nesta coletânea se mostraram imprescindíveis. Nesse sentido, temos o capítulo de autoria de Patrício Araújo, acima citado, e aquele escrito por Janaína de Figueiredo, intitulado Umbanda e Angola: caminhos entrecruzados, no qual a autora se propõe a analisar como a figura do Caboclo protagonizou certos diálogos entre a Umbanda e o Candomblé Angola no que diz respeito especificamente ao culto aos ancestrais.
A partir de dados etnográficos recolhidos nos terreiros do município de Santos, Janaína de Figueiredo demonstra como a chamada umbanda de raiz, que é um rito relacionado à uma malha cultural negra ligada ao cais do porto santista nos anos de 1950 e 1960, traduzia um momento no qual o culto à ancestralidade se aproximava do Candomblé Angola.
Assim como a religião, a música é um tema que ocupa um lugar de destaque nos estudos afro-brasileiros. Observando as culturas musicais, em função de uma perspectiva fundamentada no reconhecimento da centralidade dos saberes musicais nas sociedades de tradição oral, especialmente entre as sociedades africanas e por extensão, os seus descendentes no “novo mundo”, Salomão Jovino da Silva escreveu o capítulo 5, intitulado Musicalidades afro-atlânticas. Festa da Burrinha Brasil-Benin.
Ligado ao tema da memória negra na cidade de São Paulo a temática da música é tratada por José Carlos Gomes da Silva, no capítulo 6, Territorialidades negras na cidade de São Paulo: lugares de memórias, sonoridades, tempos e pessoas, que nos leva a percorrer alguns caminhos pela cidade de São Paulo nos quais a memória negra é mais marcada. Trata-se de um texto escrito ao ritmo das músicas que marcam os espaços percorridos. Assim, quando o autor descreve os espaços da Barra Funda e Bixiga, por exemplo, ele o faz ao ritmo do samba e seu texto ganha a cadência deste ritmo. Já ao descrever os territórios negros da zona sul é o rap que marca a escrita, a construção das palavras e frases. Depois, quando retorna ao centro, mais precisamente à região de Santo Amaro, o samba de novo invade o texto e este perde as pausas duras do rap e retoma o compasso do samba. Enfim, trata-se de um texto que não pode ser apenas lido, mas ouvido e sentido.
Dito isso, passemos aos textos.
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