Na década de 1970, ao analisar a consolidação do capitalismo no Brasil, o sociólogo Florestan Fernandes mostrou como esse processo não favoreceu o florescimento de uma ordem democrática, ainda que burguesa. Em A revolução burguesa no Brasil, Florestan afirmava que o país parecia estar, assim, sempre sob o encanto permanente da solução autocrática.
Nos anos 1980, Florestan seria um político combativo, participante da Assembleia Constituinte, e um dos pensadores mais críticos, à esquerda, sobre o seu texto final. Lançou um livro chamando-a de A Constituição inacabada, em que apontava as contradições do texto que avançava em termos populares e democráticos em diversos pontos, mas mantinha estruturas estatais autoritárias e que permitiria o retorno de conflitos destrutivos na sociedade brasileira.
Hoje, 22 de julho de 2020, completam-se cem anos de seu nascimento. Opera Mundi publica aqui uma breve biografia de Florestan, editada originalmente pela revista Biblioteca Entrelivros, em 2007.
Sobrancelhas cerradas, olhar firme em direção ao futuro, um sorriso contido com força cuidadosamente controlada dos músculos faciais. A foto não mente: há muita segurança e nenhuma ironia no olhar do jovem Florestan Fernandes, que se formava na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da também jovem Universidade de São Paulo em 1943. Ele completara 23 anos, a universidade não tinha ainda uma década de vida, mas os dois, às vezes unidos, às vezes distantes, tomariam parte nos processos de modernização cultural, social, política e econômica que o país conheceria.
O recém-formado sociólogo, nos anos seguintes, constituiria uma obra que permite incluí-lo no elenco dos grandes intérpretes do país, ao lado de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, graças a seu combativo livro A revolução burguesa no Brasil e a outros que se transformaram em marcos na história do pensamento brasileiro, como A função social da guerra na sociedade tupinambá e A integração do negro na sociedade de classes.
Do ponto de vista do rapaz, aquela formatura tinha um significado especial. Representava a saída definitiva do poço de sua infância difícil, marcada pelo trabalho como ajudante de barbearia, engraxate, auxiliar de alfaiataria e outros bicos que, frequentemente, foram não apenas sinônimo de sustento, mas também de humilhação. A luta da vida, muitas vezes, deixou de ser metáfora para o garoto e se traduziu em embates físicos em que sua força muscular era insuficiente, e Florestan precisou se armar para enfrentar valentões. Contra um engraxate que queria vê-lo longe de seu ponto, Florestan usou uma lata de sapólio; contra outro, enfiou giletes na ponta de uma bota e, com um chute, cortou-lhe a canela.
Quando os operários paulistanos saíram às ruas festejando a vitória da Revolução de 1930, comandada por Getúlio e seus tenentes, Florestan, então com apenas dez anos, juntou-se às manifestações espontâneas e esperançosas. A história, assim, entrava, pela primeira vez, pelo menos de acordo com as memórias do sociólogo, na vida de Florestan Fernandes. Filho de uma lavadeira portuguesa, ele já havia sido obrigado a abandonar a escola para trabalhar. Apesar de apadrinhado por uma família tradicional paulistana, os Bresser, patrões de sua mãe quando nasceu, Florestan teve a sua primeira formação marcada pela experiência lumpemproletária, como ele próprio afirmaria, uma experiência marcante: “Eu nunca teria sido o sociólogo em que me converti sem o meu passado e sem a socialização pré e extraescolar que recebi, através das duras lições da vida”, escreveu certa vez. “Eu não estava sozinho. Havia a minha mãe. Porém a soma de duas fraquezas não compõe uma força. Éramos varridos pela ‘tempestade da vida’ e o que nos salvou foi nosso orgulho selvagem.”
Em 1941, Florestan chegou à universidade depois de se formar num curso de madureza, o equivalente ao que chamamos hoje de supletivo ou ensino de adultos. Antes, trabalhava como garçom num bar do centro de São Paulo, o Bidu, onde discutia história antiga com os visitantes, muitos deles jornalistas ou intelectuais ligados aos dois novos centros de debate que São Paulo construíra: a Escola Livre de Sociologia e Política e a Universidade de São Paulo, cujas fundações ocorreram, respectivamente, em 1933 e 1934. Outro cliente do bar arrumaria um emprego de entregador de amostras de laboratório, o que Florestan podia fazer nas horas vagas, abrindo espaço em seu dia para as horas de estudo.
A dedicação de Florestan foi o fator mais importante para a ascensão social e cultural. Mas ele também contou com uma conjuntura bastante favorável. De certa forma, Florestan é um sucesso resultante de alguns fracassos. O mais importante deles ocorrera com a fundação da USP. Os cursos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras criada nos anos 1930, não atraíram os filhos da elite paulistana, para quem a universidade havia sido pensada.
Os jovens poderosos da cidade davam preferência aos cursos tradicionais — medicina, direito e engenharia, de faculdades que foram agregadas à USP, mas mantiveram grande independência. Os alunos dos cursos como filosofia, física e ciências sociais sairiam de camadas menos integradas. Os números dessas primeiras turmas da USP mostram uma grande presença de mulheres e filhos de imigrantes, o oposto do que se podia verificar nas faculdades tradicionais. São razoavelmente comuns as histórias de intelectuais autodidatas nessa época, como Mário Wagner Vieira da Cunha e Maurício Tragtenberg. Tragtenberg, que, aliás, participou, com Florestan, de outro insucesso, o Partido Socialista Revolucionário (PSR), um pequeno grupo oriundo do PCB que se assumiu como uma dissidência trotskista e tinha como principal liderança o jornalista Hermínio Sacchetta, na época diretor de redação da Folha da Manhã.
O PSR tentou organizar, mas não foi muito adiante, uma coligação de esquerda antigetulista em 1946, com um programa bastante avançado. Porém, para Florestan, o partido foi de grande importância, ao lhe encomendar uma tradução da Contribuição à crítica da economia política, abrindo espaço para que o jovem intelectual lesse um autor que ainda não frequentava as aulas da universidade: Karl Marx.
Numa entrevista, publicada no livro A condição de sociólogo, Florestan atribuiu ao amigo Antonio Candido a explicação mais irônica para o talento que demonstrou já durante a graduação. Florestan teria uma bunda grande e resistente, capaz de aguentar tantas horas de estudo quantas fossem necessárias. Essa dedicação seria fundamental para que os novos mestres o vissem como um dos mais fortes candidatos a assumir os postos que os professores estrangeiros começaram a deixar vagos, com o retorno à Europa.
Florestan muito rapidamente seria convidado para ser o segundo-assistente de várias disciplinas assim que concluiu a graduação. Acabou aceitando a vaga oferecida por Fernando de Azevedo e, com Candido, virou assistente de Sociologia II na USP. Florestan não ficou contente com a formação que obtivera como aluno de graduação na USP e decidiu fazer seu mestrado na Escola de Sociologia e Política, considerada mais “prática” e, supostamente, mais afeita às lições da sociologia norte-americana do que à influência francesa. Começa aí a construir uma trajetória intelectual própria, combinando diversas correntes teóricas (marcadas especialmente pela ideia do sociólogo como um planejador social, como queria Karl Mannheim, mas também por Marcel Mauss, Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx) numa reflexão crítica e criativa, muitas vezes acusada injustamente de pouco elegante em termos estilísticos.
Seus primeiros estudos concentram-se nas pesquisas sobre os índios tupinambá, personagens importantes dos primeiros momentos da colonização do Brasil. A organização social dos tupinambá e A função social da guerra na sociedade tupinambá provocaram uma grande virada na antropologia. Até esses estudos, acreditava-se que não era possível estudar com tanta profundidade sociedades que não mais existiam, ou seja, a antropologia estava limitada, de certa forma, à coleta direta e contemporânea de material de campo. Florestan, através da leitura crítica de inúmeras fontes materiais e, sobretudo, de relatos de viajantes, mostrou que era possível compreender o cotidiano e a lógica da sociedade tupinambá séculos após os registros – e, o que é tão importante quanto, por meio de registros não especializados, feito por gente que viveu num tempo em que a ideia de antropologia não fazia nenhum sentido.
Florestan, com outros colegas, assumiu a missão de transformar as ciências sociais em ciência de fato: andava de avental pelos corredores da universidade, estabelecia critérios de avaliação rigorosos, adorava discutir não apenas os objetos de suas reflexões, mas também os métodos utilizados. Quis superar o beletrismo e o ensaísmo que marcavam a produção de muitos de seus colegas de profissão e de universidade. Um colega de departamento, Ruy Coelho, brincava que Florestan era uma ilha de sociologia cercada de literatura por todos os lados. Coelho, como Antonio Candido, se notabilizaria pelos estudos literários, enquanto a erudição de Florestan seguiu outro rumo. Caminhava para a formação do que, depois, convencionou-se chamar de Escola Paulista de Sociologia, em que se destacaram nomes como Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Gabriel Cohn e Maria Sylvia de Carvalho Franco, entre outros.
Reprodução/Câmara dos Deputados
Hoje, 22 de julho de 2020, completam-se cem anos de seu nascimento; Opera Mundi publica aqui uma breve biografia de Florestan
A influência de Florestan, no entanto, começou a atravessar os muros da universidade em 1950, quando, com Roger Bastide, estuda as relações raciais entre brancos e negros em São Paulo, a convite da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Com um grupo grande de colaboradores, quase todos voluntários, e a participação da comunidade negra da cidade, Florestan e Bastide põem em marcha uma ampla pesquisa que começa a desmontar a ideia de que existia uma democracia racial no país, tão cara à sociologia de Gilberto Freyre e à própria Unesco, que encomendara a pesquisa. Ele e seus alunos organizam reuniões periódicas, fazem entrevistas casuais e outras orientadas e visitam cortiços, aplicando diferentes métodos para dar conta da amplitude da empreitada. Florestan mostra, em Brancos e negros em São Paulo, que as transformações econômicas e políticas ocorridas após o fim da escravidão não “foram suficientemente profundas para desorganizar o sistema de relações raciais, que se elabora como conexão da escravidão e da dominação senhorial”, embora acreditasse que essas mudanças tendiam a criar mecanismos de controle mais identificados com as classes sociais do que com a cor da pele. Essa pesquisa será o ponto de partida para, em 1964, Florestan defender sua tese de livre-docência na USP, A integração do negro na sociedade de classes.
Florestan, ainda nos anos 1950, envolve-se em debates com os desenvolvimentistas do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), especialmente com Guerreiro Ramos, sobre as tendências e exigências que o país impunha à sociologia. De forma simplificada, pode-se dizer que Guerreiro Ramos viu certo diletantismo na produção de São Paulo. Para ele, a sociologia deveria estar subordinada à especificidade nacional, enquanto Florestan defendia que ela precisava ser autônoma para poder ser útil.
Mas é no final da década de 1950 que Florestan ultrapassa os muros da universidade, ao entrar para a campanha em defesa da escola pública. Ele torna-se uma das principais vozes a defender, em palestras, debates e programas de televisão, uma reforma educacional que contrariava os interesses das escolas privadas e, sobretudo, da Igreja Católica, que defendia um projeto substitutivo, apresentado por Carlos Lacerda, à Lei de Diretrizes e Bases da Educação.
Para os integrantes da campanha, que contava com o apoio explícito do jornal O Estado de S. Paulo, só a educação pública, que precisava urgentemente se expandir, deveria receber dinheiro público. O movimento foi parcialmente bem-sucedido e significou, para Florestan, o fim do confinamento dos intelectuais. Essa ruptura ganharia um significado especial após o golpe de 1964. Florestan se tornaria cada vez mais um intelectual engajado, crítico, batendo fortemente nos novos donos do poder.
Ainda em setembro de 1964, é submetido a um inquérito policial que, hoje, pode parecer meio ridículo: foi convidado a cantar o hino nacional num interrogatório, como também o foram outros professores da USP. De fato, não havia subversão suficiente a apurar no Inquérito Policial Militar (IPM) de Florestan, mas sua figura pública, assim como a de outros acadêmicos, era potencialmente perigosa para os militares, devido à independência que a universidade, como um centro de reflexão, tratava de manter. Florestan percebe o sentido da detenção e entrega uma carta ao tenente que presidia a investigação; a carta é tornada pública, chega às redações ainda não submetidas à censura (só seria institucionalizada após o Al-5, de 1968) e ganha grande repercussão nas páginas dos jornais.
Florestan, após três dias, é solto e ganha uma calorosa recepção na rua Maria Antônia, onde ficavam as salas de aula da Faculdade de Filosofia. Sem nenhum planejamento, os alunos foram saindo das salas, ocupando o saguão principal do prédio e, então, finalmente, Florestan cantou o hino, acompanhado por seus alunos.
Com o endurecimento do regime, Florestan assume cada vez mais o modelo fundado pelo escritor Émile Zola com o manifesto J'accuse!, passando a aproveitar todas as oportunidades que surgiam para criticar o regime militar.
Em 31 de março de 1968, quando o golpe militar festejava seu quarto aniversário, os leitores do jornal carioca Correio da Manhã recebiam da sucursal paulista uma reportagem intitulada “Sociólogo analisa violência militar”, em que Florestan é chamado a falar sobre a morte do estudante Edson Luís no restaurante Calabouço, no Rio, que daria início a uma série de protestos estudantis. Nessa entrevista, Florestan afirma que é preciso “lutar contra o comportamento fascista do setor militar que empolgou o Governo”.
Quando chega o Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, Florestan entra na lista dos cassáveis. Em 1969, é aposentado compulsoriamente, como também ocorreria com Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni, entre tantos outros. Florestan é convidado, então, a dar aulas no Canadá (Toronto) e inicia uma nova fase na sua trajetória. A exclusão do espaço que considerava privilegiado, caso da USP, e a interrupção de projetos que lhe davam a sensação de que, ao modo imaginado por Karl Mannheim, um sociólogo podia interferir e ajudar a reformar uma sociedade abrem definitivamente a porta do pensamento radical de Florestan, que se expressaria na publicação de A revolução burguesa no Brasil (1975) e dos ensaios reunidos em Circuito fechado (1976).
Nestes dois livros, Florestan analisa a consolidação do capitalismo no país e mostra como esse processo não favoreceu o florescimento de uma ordem democrática, ainda que burguesa, no Brasil. Como sintetizou Gabriel Cohn, Florestan mostrou que, “deixada a burguesia, numa sociedade como a brasileira, solta e à sua sorte, sua revolução, aquela que a leva a conformar a sociedade brasileira à sua imagem e semelhança, não tem como ser democrática, mas sempre estará sob o encanto da solução autocrática”. Para abrir esse circuito fechado, em que não há avanço autônomo e progressivo das classes burguesas, novas forças históricas teriam de agir.
Em 1972, Florestan volta do Canadá e enfrenta uma crise pessoal que inclui a contaminação pelo vírus da hepatite (durante uma cirurgia, em 1975, no Hospital do Servidor), a separação temporária de Myrian Rodrigues Fernandes, mãe de seus seis filhos, e um ataque cardíaco (1981). O retorno à universidade, como professor da pós-graduação da PUC-SP (1978), não se dá com a mesma intensidade que o sociólogo encontrava na USP. E menos orgânica, até porque Florestan já não acredita tanto na instituição. Está cada vez mais militante, participa de inúmeros projetos editoriais, em que se destacam a edição de textos selecionados da série Grandes Cientistas Sociais e a participação no grupo da revista Contexto (que daria origem à editora Contexto). Estuda profundamente a obra de Lênin e, cada vez mais crítico e militante, chega ao começo dos anos 1980 animado com um partido que começava a entrar em cena, o Partido dos Trabalhadores.
A relação de Florestan com o PT é ambígua. Ele não toma parte do grupo de intelectuais que assina a fundação do partido, entre os quais se incluíam Mário Pedrosa e os mais moderados Antonio Candido e Sérgio Buarque de Holanda. Mas escreve um pequeno texto, O que é revolução, que é, em essência, uma crítica que procura contribuir com os debates em torno do partido. Publicado na coleção Primeiros Passos, é uma crítica a dois rumos que acreditava que a esquerda deveria evitar: partir para um “esquerdismo infantil” ou para uma “socialdemocratização”. O livrinho, que se tornou um sucesso de vendas, e os textos que Florestan passou a escrever na Folha de S.Paulo a partir de 1983, aproximaram cada vez mais o sociólogo do partido, mas é só no último dia permitido pela lei eleitoral para que disputasse uma cadeira de deputado constituinte em 1986 que ele assina a ficha de filiação.
Eleito, Florestan tornou-se uma referência na Constituinte, especialmente nos assuntos relacionados à educação. Defende nas tribunas e dentro do partido, mas é derrotado nas duas instâncias, que as verbas do Estado sejam destinadas apenas às escolas públicas. Mas o capítulo relacionado ao assunto é profundamente influenciado por sua atuação. Durante a Constituinte, Florestan continua sua atividade de publicista, falando nos jornais sobre os bastidores do Congresso e fazendo análises sobre os rumos que a Constituição, que chamaria de inacabada, tomava.
Apesar da saúde debilitada, em 1990, ele voltaria a se candidatar a deputado. Achava que deveria participar da revisão programada (mas não realizada) para 1993, quando apresentaria, de forma simbólica, uma emenda defendendo políticas afirmativas de recorte racial. Reeleito, foi um dos nomes de maior destaque na discussão da Lei de Diretrizes e Bases da Educação. O projeto, quando Florestan já não era deputado, chegaria ao Senado, mas Darcy Ribeiro apresentaria um substitutivo que, apoiado pelo governo Fernando Henrique Cardoso, seria muito mais conciliador com os interesses das escolas privadas. Florestan critica Darcy na Folha, e este responde de forma rude, especialmente considerando as décadas de amizade e dedicação ao ensino que os uniam.
Em 1994, Florestan não se recandidata à Câmara. A saúde já cobrava mais descanso, mas ele continuava a escrever nos jornais regularmente. Durante a campanha que opôs seu aluno predileto e grande amigo, Fernando Henrique, e Lula, manteve-se coerentemente ao lado do petista, mas se recusou a criticar FHC: seu alvo era sempre o PSDB e as alianças que o partido fez com o PFL. Florestan lamentava que o PSDB e o PT estivessem separados, mas também batia duramente no processo de socialdemocratização do Partido dos Trabalhadores.
Após um transplante de fígado mal sucedido, em agosto de 1995, Florestan morre, deixando uma obra enorme e apaixonante, que marcou o pensamento brasileiro na sociologia, na política, na antropologia, na educação e na história. Apesar de vindo “dos de baixo”, como gostava de dizer, sabia que sua trajetória era incomum e que muito mais gente como ele havia sido engolida pelo poço da pobreza, da ignorância e da miséria do que vencido a máquina de moer gente que era – e é – o capitalismo à brasileira.
Trecho de A revolução burguesa no Brasil
No caso brasileiro, o desenvolvimento capitalista significou coisas distintas, em cada uma das três fases que marcam a evolução interna do capitalismo. Em nenhuma delas tivemos uma réplica ao desenvolvimento capitalista característico das nações tidas como centrais e hegemônicas (quanto à irradiação e à difusão do capitalismo no mundo moderno). Ao contrário, nas três situações sucessivas, o desenvolvimento capitalista apresenta os traços típicos que ele teria de assumir nas nações tidas como periféricas e heteronômicas, fossem ou não de origem colonial. A indirect rule não se configura como uma realidade histórica passageira: ela surge como uma condição estrutural permanente, que iria assumir feições históricas mutáveis de acordo com a evolução do capitalismo nas nações que exerceram algum tipo de dominação imperialista sobre a América Latina. Por isso, considerando em termos das motivações e dos alvos coletivos dos estamentos dominantes (sob o regime de trabalho escravo), ou das classes dominantes (sob o regime do trabalho livre), em nenhuma das três fases o desenvolvimento capitalista chegou a impor: 1 – a ruptura com a associação dependente, em relação ao exterior (ou aos centros hegemônicos da dominação imperialista); 2 – a desagregação completa do antigo regime e de suas sequelas ou, falando-se alternativamente, das formas pré-capitalistas de produção, troca e circulação; 3 – a superação de estados relativos de subdesenvolvimento, inerentes à satelização imperialista da economia interna e à extrema concentração social e regional resultante da riqueza.
Linha do tempo de Florestan Fernandes:
1920 – Nasce em 22 de julho, em São Paulo
1943 – Forma-se em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (USP)
1952 – Publica A função social da guerra na sociedade tupinambá
1953 – Recebe o título de professor livre-docente da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letnzs da USP
1964 – Lança A integração do negro na sociedade de classes
1969 – Aposentado de forma compulsória pelo governo militar do cargo de professor titular de sociologia
da USP; começa a dar aulas na Universidade de Toronto, no Canadá, onde fica por três anos
1975 – Publica A revolução burguesa no Brasil; no ano seguinte sai Circuito fechado
1978 – Torna-se professor-titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
1986 – Eleito deputado federal por São Paulo, pelo Partido dos Trabalhadores (PT); quatro anos depois é reeleito
1995 – Morre em São Paulo
*Publicado originalmente na revista Biblioteca Entrelivros, em 2007