Rio de Janeiro, janeiro de 2015. Caminhando no sentido da Urca, à procura do endereço que nos tinham dado no dia anterior. Era próximo de um bar famoso, que eu não conhecia por ter estado pouquíssimas vezes naquela região do Rio de Janeiro. Era um apartamento grande, com uma senhora que no dia anterior falara conosco, desconfiada, pelo telefone. “Mais uma vez”, disse ela, “outras pessoas para quem terei de contar a mesma história”. Antes de conhecer uma nova família, eu sempre sentia aquele frio na barriga, um pouco pela expectativa de como seria, sensação gerada pelos anos de negligência do Estado brasileiro para investigar o tema e sua falta de contato e de interesse nos familiares de desaparecidos políticos.
Passamos quase quatro horas no apartamento de Branca, cunhada de Aluísio. No meio da conversa chegou Clarisse, sua neta e sobrinha-neta de Aluísio, e a avó olhava, com orgulho, todo o engajamento da jovem. Uma herança de resistência, militância, de saber que a luta teria continuidade. E mostrava orgulhosa que Clarisse tinha ido para Cuba e apresentado “O companheiro”[1], um documentário sobre Aluísio, no país que o acolheu durante a ditadura militar. Elas contavam o quanto ele era conhecido e lembrado por muitos.
E Branca continuava a mirar orgulhosamente a neta Clarisse, naquele quarto cheio de livros, em frente a uma tela de computador com fotos de Aluísio, certa de que aquela luta teria continuidade.
Conheci a filha de Aluísio e sua família, também no Rio de Janeiro, nessas idas e vindas do que era o trabalho forense para a busca de desaparecidas e desaparecidos na vala clandestina de Perus, em São Paulo. A identificação do Aluísio marca algo fundamental que é acreditar em um trabalho que envolve muito mais do que “ler” ossos. Trata-se de ir contra o desaparecer, trata-se de lembrar sempre que estamos aqui para dar continuidade a essa luta, que pode ser familiar, biológica, herdada, mas que herda também toda a sociedade em seu dever por memória, verdade e justiça. Lembrar, todos os dias, da sua existência e luta.
Diferentemente de outros casos em que se sabia que havia uma entrada no cemitério de Perus, era baixa a probabilidade de Aluísio estar inumado naquela vala clandestina. Porém, o relato de Altino Dantas, que esteve preso com Aluísio em 1971 nas dependências do DOI-CODI em São Paulo, fez com que o incluíssemos no universo de busca que tinha diferentes graus de probabilidade. A vala, como se denomina no forense, é um caso aberto. Uma das estratégias mais terríveis da repressão que ao usar do mecanismo do desaparecimento gera essa dúvida constante de que qualquer pode estar ali entre os mais de mil corpos ocultados: “Aonde foram levadas e levados? O que aconteceu?”
A confirmação de sua possível morte no DOI-CODI de São Paulo e seu destino na vala clandestina de Perus nos dá muitos dados sobre as estratégias da repressão e de como esta atuava. Agora é possível entender o que aconteceu com ele: por meio dos relatos de Altino Dantas, Nelson Rodrigues Filho, Ines Etienne Romeu, sabemos que Aluísio, antes de ser assassinado em São Paulo, havia passado pelo Cenimar-RJ, DOI-CODI-RJ e pela Casa da Morte de Petrópolis. Por isso, uma política nacional de buscas é fundamental e mais que nunca, a necessidade de que investigações, tais como as feitas em Perus, sejam realizadas em todos os outros contextos no Brasil, como demanda a Carta de Brasília (2018), elaborada pelos familiares.
Dessa maneira, a identificação não é só fruto das análises de DNA. Ela só pôde ocorrer graças aos testemunhos de muitos que romperam o silêncio e denunciaram os crimes cometidos pela ditadura militar. Só aconteceu graças a associações como o Grupo Tortura Nunca Mais dos diferentes estados brasileiros e a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos, que protagonizaram, ainda no período ditatorial, a investigação sobre o que havia ocorrido e elaborado dossiês, textos e pesquisas em arquivos. Essa luta, que possibilitou a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, posteriormente impulsionou também a criação de comissões da verdade, não só a nacional (CNV) como as estaduais, municipais e de várias instituições. Foram elas, como a Comissão Estadual da Verdade de São Paulo presidida pelo então deputado estadual Adriano Diogo, que deram fôlego e que possibilitaram a base do trabalho de Perus.
Quem matou Aluísio estava no DOI-CODI de São Paulo: torturando, assassinando e ocultando corpos numa vala clandestina. Era esse lugar chefiado pelo então major Carlos Alberto Brilhante Ustra. O reaparecer do corpo de Aluísio, sua identificação, o estar ali, é mais um símbolo da sua resistência em que “se prende vivo”, e ele, “escapa morto”. De repente, ele de novo, “perturbando a paz e exigindo troco”, como na música de Tapajós e Pinheiro.
A identificação, quarenta e sete anos depois de seu desaparecimento, anunciada em 3 de dezembro de 2018, no I Encontro Nacional de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, contou com a presença da família. Branca faleceu meses atrás, mas certamente olha, orgulhosa, para a neta e a sobrinha que ali estiveram, sabendo que a memória de Aluísio Palhano Pedreira Ferreira segue, mais viva que nunca, ontem, hoje e sempre.
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*Antropóloga forense, coordenou a pesquisa preliminar e de dados ante mortem do GT Perus entre 2014 e 2016
[1] Mantuano, Clarisse e Fernandes, Antônio. Premio Especial Festival Internacional de Documentales Santiago Álvarez in Memoriam – Cuba. 2005. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lwOKN5r-IWc. Acesso em 11 de dezembro de 2018
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