A opção pela luta armada no enfrentamento à ditadura militar no Brasil levou diversos militantes a romper com suas legendas partidárias e seguirem o caminho guerrilheiro e clandestino em meados dos anos 1960. Duas das principais organizações revolucionárias brasileiras, a Aliança Libertadora Nacional (ALN), de Carlos Marighella, e o Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8) organizaram, em 4 de setembro de 1969, uma das ações mais marcantes da história da resistência armada no Brasil: o sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick.
Para Higor Codarin, doutorando em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor do livro O MR-8 na luta armada – as armas da crítica e a crítica das armas, a ser lançado pela Editora Alameda no dia 18 de setembro, embora o sequestro do embaixador dos EUA no Brasil tenha sido uma ação taticamente bem sucedida, foi, ao mesmo tempo, definidora das consequências que a prática guerrilheira trouxe para a resistência armada contra a ditadura.
Em entrevista a Opera Mundi, o autor afirma que o sucesso da ação foi inédito pois “rompeu a censura durante a Semana da Pátria, forçando a divulgação de um manifesto político que lançava luz sobre a guerrilha urbana no Brasil, e libertou os 15 presos políticos solicitados”.
Entretanto, para Codarin, os resultados positivos da ação acabaram criando uma “ilusão” de que a luta armada seria uma prática viável para a derrubada do regime. Enquanto, por um lado, a repressão se intensificou após a operação, por outro, o distanciamento da luta armada se tornou cada vez mais difícil.
“A ilusão da força, construída em parte pela ação do sequestro, aprofunda o imperativo da ofensiva em detrimento de ‘uma análise concreta da situação concreta’, como diria Lênin. O abandono da luta armada fica cada vez mais distante, apesar dos reveses”, afirma Codarin.
Leia a entrevista na íntegra:
Opera Mundi: A operação do sequestro do embaixador foi bem sucedida? O grupo atingiu tudo o que esperava atingir?
Higor Codarin: Há de se dissociar os objetivos táticos e estratégicos da ação para analisar seu sucesso ou insucesso. Do ponto de vista tático, ou seja, dos objetivos imediatos, a ação foi um sucesso incontestável. Rompeu a censura, durante a semana da pátria, forçando a divulgação de um manifesto político que lançava luz sobre a guerrilha urbana no Brasil e libertou os 15 presos políticos solicitados.
Contudo, ao contrário do que se pensava, essa ação, por sua envergadura, não gerou o apoio social que se esperava e, mais, estimulou a fúria repressiva do Estado, que vinha numa crescente desde o AI-5. Vale lembrar que pouco tempo depois da ação, os militares atualizaram a Lei de Segurança Nacional, que, amparada no código penal militar, estabelecia diversas tipificações de crimes que redundavam, na ampla maioria das vezes, em prisão perpétua ou pena de morte, além de fortalecer a estrutura repressiva que já existia. Nesse sentido, a ação de sequestro do embaixador não obteve o apoio social que os militantes esperavam e aprofundou o isolamento social das organizações que propunham a luta armada no Brasil.
Fernando Gabeira, em seu livro O que é Isso, Companheiro? [Codecri, 1979], relata um diálogo com José Roberto Spiegner, que seria assassinado pela ditadura em fevereiro de 1970, demonstrando o isolamento a que estavam submetidos após o sequestro e comparando a situação da organização à situação dos cosmonautas, isolados no espaço: “Muitos intuíram cedo os caminhos que estávamos seguindo. Logo após o sequestro do embaixador americano, fui me encontrar com Zé Roberto, no Leme. Ele sabia de tudo e perguntou como estava a coisa lá na casa. Disse que estava tudo bem, que estávamos tocando o barco. Ele segurou seu cachimbo suavemente, virou-se para mim e disse: ‘Vinha andando para esse encontro e um cara no ônibus me dizia que os sequestradores do embaixador americano eram as pessoas que ele mais admirava. Os sequestradores do embaixador e os cosmonautas.’ Depois disso, Zé Roberto me olhou bem nos olhos e perguntou: ‘Não somos cosmonautas, somos?’.
Por que chamar essa operação de ‘ação de propaganda armada’?
Na linguagem das organizações da autointintulada esquerda revolucionária – em contraposição à esquerda reformista representada pelo Partido Comunista Brasileira (PCB) – havia uma tentativa de mesclar as perspectivas de agitação e propaganda (agitprop) da teoria leniniana às propostas guerrilheiras que partiam, especialmente, da experiência cubana.
Segundo a própria linha política do MR-8, de abril de 1969, ações de propaganda armada visavam “estimular lutas políticas e econômicas locais, propagar elementos estratégicos e fornecer exemplos concretos da viabilidade da luta contra as forças repressivas”. Nesse sentido, portanto, a ação de sequestro do embaixador, com a divulgação do manifesto, foi considerada uma ação de propaganda armada.
O êxito da operação criou uma ‘ilusão’ dentro do grupo de que a luta armada era viável?
Acredito que sim. O sucesso tático da ação dava uma sensação, ilusória, de força, não apenas ao MR-8, mas, de modo geral, às organizações que propunham a luta armada. Contudo, após o sequestro, o MR-8 tem de enveredar, completamente, na clandestinidade. E essa situação, de completo isolamento social, abriu uma discussão no grupo, no início de 1970, sobre o que fazer a seguir. Apesar de algumas poucas vozes dissonantes, que criticavam, de maneira tímida e sem propor alternativa, a estratégia da luta armada, consolida-se a necessidade de se manter na luta armada.
Um dos documentos desse período, de um militante de codinome José Gonde, é sintomático de como a opção pela luta armada se tornou uma espécie de imperativo categórico após a ação do sequestro e se tornaria, posteriormente, um compromisso com os companheiros presos e/ou mortos: “estamos unidos por uma mesma determinação revolucionária. Isso nos diferencia dos que vacilam e abandonam a prática. Nós nos comprometemos é com a revolução e encontramos na nossa prática a visão político-ideológica que permitirá a consecução desse nosso objetivo. Devemos preservá-la. E para tanto substituir a apatia pela determinação e a desconfiança pela certeza”.
Nessa perspectiva, o sequestro do embaixador norte-americano aprofunda as consequências da opção pela luta armada. A ilusão da força, construída em parte pela ação do sequestro, aprofunda o imperativo da ofensiva em detrimento de “uma análise concreta da situação concreta”, como diria Lênin. O abandono da luta armada fica cada vez mais distante, apesar dos reveses. Vale lembrar que foram realizados outros sequestros nos anos subsequentes e os militantes libertados relatam a euforia em terem sido libertados por imposição dos revolucionários. Os sequestros posteriores foram, gradativamente, relegando sua potencialidade enquanto propaganda armada para segundo plano, tendo em vista a necessidade de libertação dos militantes que, cada vez em maior número, eram presos. Sendo assim, ao contrário de demonstração de força, as ações de sequestro posteriores ao sequestro de Elbrick mostravam a fraqueza das organizações.
Ao contrário da ALN e de outros grupos armados, o MR-8 sobreviveu, em certa medida, às quedas. A que você atribui isso?
Após o sequestro do embaixador, o MR-8, ao contrário da ALN, não foi fortemente afetado pela repressão. Com exceção da prisão de Cláudio Torres, um dos dirigentes àquela altura, o MR-8 passou ileso às investidas repressivas. Isso se devia, em parte, pelo fato de que a organização, até a ação do sequestro, ser praticamente desconhecida dos órgãos policiais.
No entanto, a partir de 1970, o MR-8 sofreria diversas e sucessivas perdas, consequências do processo crescente de marginalização social e das investidas da repressão. Em suma, apesar de um pouco mais tardia, as investidas da repressão atingiram em cheio também o MR-8. Em 1972, por exemplo, restavam apenas 4 militantes no Brasil que buscaram exílio no Chile para reorganizar a organização com os demais militantes já exilados.
Wikicommons
Ação libertou os 15 presos políticos solicitados
Na sua visão, o MR-8 foi mais influente durante a luta armada ou na fase posterior de resistência?
A meu ver, ao longo da luta armada a organização adquiriu certo protagonismo. Além de protagonizar a ação de maior envergadura das organizações que propuseram o enfrentamento armado à ditadura – o sequestro de Charles Elbrick – o MR-8 também se caracterizou pela tentativa de desenvolvimento de um trabalho rural no oeste baiano, para onde se deslocou Carlos Lamarca, que havia se integrado à organização após se desligar da Vanguarda Popular Revolucionária.
No contexto da luta pela redemocratização e até mesmo posteriormente, apesar de já ser uma organização diferente e com outras propostas políticas, não consigo visualizar esse protagonismo no MR-8. Outras organizações e partidos assumiriam esse protagonismo, como foi o caso do Partido dos Trabalhadores a partir de sua fundação, em 1980.
Algum grupo ainda reivindica a existência ou continuidade do MR-8?
O MR-8, no período de redemocratização, aproximou-se do MDB, passando a ser um grupo dentro do PMDB, a partir de 1985. Atualmente, o MR-8 é o Partido Pátria Livre (PPL), fundado em 2009. Inclusive, o presidente do partido, Sérgio Rubens de Araújo Torres, foi um dos militantes que participou do sequestro do embaixador.
Qual o principal legado do MR-8 para as lutas da esquerda no Brasil?
Acredito que o principal legado, não apenas do MR-8 mas, de modo geral, dessa geração que buscou o enfrentamento armado à ditadura, é o imperativo de lutar contra uma realidade que não nos basta. Esses militantes, em sua maioria jovens, vislumbravam que a mudança estava ao alcance das mãos. Jogaram o que tinham e o que não tinham em uma tentativa de transformar o Brasil em um lugar mais justo.
Talvez a maior herança dessa geração de militantes seja fazer com que vislumbremos, em um período tão complicado como o nosso, que a mudança é possível. Apesar do fracasso político e da opção pela luta armada não ter sensibilizado os setores sociais que buscavam mobilizar para transformar o Brasil, o legado não se apaga por isso. Nesse sentido, acredito que a reflexão de Victor Serge, revolucionário belga que participou da revolução russa, sirva também para explicar o legado do MR-8 para as lutas das esquerdas no Brasil. Em seu Memórias de um revolucionário, editado postumamente, diz: “ o futuro me aparece, quaisquer que sejam as nuvens no horizonte, cheio de possibilidades mais amplas do que entrevimos no passado. A paixão, a experiência amarga, os erros da geração combatente podem esclarecer um pouco os caminhos. Sob essa condição única, convertida em imperativo categórico: jamais renunciar a defender o homem contra os sistemas que planejam a aniquilação do indivíduo”.