Javier Milei acaba de completar dois meses à frente do governo argentino. E desde a sua posse, em 10 de dezembro, três batalhas se desenrolaram em paralelo: a primeira delas é travada no Congresso, onde a extrema-direita acaba de sofrer uma dura derrota, que desencadeou uma crise institucional com consequências imprevisíveis; a segunda está resolvida no campo da economia, e aqui o governo pode sair impune se conseguir durar e se consolidar, ao mesmo tempo em que impõe a dolarização; a terceira disputa acontece nas ruas, entre um protesto social que não cessa e a repressão estatal que se intensifica.
O conflito começou em 20 de dezembro, dia que comemora a queda do mau governo de Fernando de la Rúa em 2001, após uma insurreição democrática contra o neoliberalismo. Na cidade de Buenos Aires, organizações de esquerda convocaram uma manifestação, que para muitos foi prematura. No final da marcha, o governo anunciou o Decreto de Necessidade e Urgência 70/23, um conjunto de medidas de austeridade e desregulamentação, que ao mesmo tempo assume atribuições que pertencem ao Congresso. Em resposta, naquela mesma noite eclodiu um panelaço massivo e espontâneo, que culminou em um comício em frente ao Congresso no meio da noite. Para os oponentes do governo libertário, foi um choque para os seus espíritos.
Também nesse dia, a ministra da Segurança Patrícia Bullrich, estreou seu novo “protocolo para a manutenção da ordem pública em caso de encerramento de vias de trânsito”. Houve duas detenções na marcha matinal, policiais entrando em ônibus para obstruir e filmar a chegada dos manifestantes, uma ofensiva de propaganda contra organizações sociais que visava denunciar a suposta coerção das bases a participarem do protesto. Dois dias depois, as marchas que ocorreram na segunda maior cidade do país, Córdoba, foram alvo de violenta repressão policial.
Uma semana depois, quando Milei já havia enviado ao Congresso o anteprojeto da polêmica Lei Ônibus, a Confederação Geral do Trabalho (CGT), maior central sindical da Argentina, convocou uma mobilização em frente à sede do Poder Judiciário para exigir a suspensão do DNU. Naquele dia, não houve repressão contra os manifestantes, porque as organizações sindicais realizaram a caminhada pelas calçadas e reduziram ao mínimo o tempo de bloqueio das ruas. O objetivo era cuidar de seus integrantes, diante da vocação repressiva de uma administração determinada a disciplinar o protesto. O risco é a introjeção do medo. Mesmo assim, ocorreram espancamentos no momento da dispersão e algumas prisões, com uma demonstração de violência que demarcava a crueldade. No dia seguinte, a CGT convocou greve geral do dia 24 de janeiro.
A mobilização de janeiro diante do Congresso Nacional, para exigir a rejeição da Lei Ônibus, reuniu uma massa contundente. Convocado pelo movimento operário organizado, contou com o apoio dos movimentos sociais e das diferentes expressões políticas da oposição peronista e de esquerda. Naquele dia, houve outra grande operação das forças policiais federais, precedida por declarações da ministra Bullrich chamando os organizadores de “gangsters”. A postura intransigente do governo nacional arruinou qualquer tentativa de coordenação entre os organizadores do protesto e as autoridades locais. Durante o dia, houve momentos de grande tensão, até que, finalmente, um acordo no meio da rua entre os sindicalistas e os chefes de polícia, passando por cima da liderança ministerial, conseguiu descomprimir a situação.
Um relatório da plataforma antirrepressiva Mapa da Polícia analisa o que aconteceu durante o 24 de janeiro. Segundo os dados, a contagem final revela vários itens para questionamento: 1) o custo monetário muito elevado de tal mobilização de recursos estatais, para um protesto puramente pacífico; 2) o desfile de milhares de militares, a exibição de canhões de água e outras viaturas policiais e a prolífica montagem de vedações acabaram por impedir a circulação que pretendiam garantir; 3) em diversas ocasiões, o diagrama e o improviso da operação, obcecados em exibir a saturação policial, deixaram os agentes expostos a situações que poderiam ter terminado mal, não fosse a responsabilidade demonstrada pelos manifestantes, que não se envolveram em provocações.
Movimento Socialista dos Trabalhadores (MST – Argentina)
Governo de Javier Milei na Argentina tem enfrentado fortes protestos nas ruas, mesmo tendo transcorrido apenas dois meses de mandato
Manuel Tufró, que é diretor de Justiça e Segurança do Centro de Estudos Jurídicos e Sociais (CELS, organização de Direitos Humanos com forte presença a nível nacional), considera que “a abordagem do governo aos protestos foi uma mensagem disciplinar, ainda antes de haver manifestações contra o novo governo, na forma de criminalização das decisões regulatórias e das intervenções nos meios de comunicação social. Nesse sentido, creio que condicionou as formas e mensagens dos protestos, não só pelos limites que tentou impor, mas porque deu mais um motivo para protestar. Todas as mobilizações de dezembro e de janeiro tiveram este duplo conteúdo: contra as medidas econômicas, sociais e políticas do governo, mas também em defesa do direito ao protesto e em desafio às medidas restritivas do governo. Isso poderia explicar em parte a violência desencadeada pelas últimas repressões policiais, mas parecia que, no final, o que estava em jogo não era a garantia do trânsito, mas sim a questão simbólica da autoridade da ministra, um traço típico da funcionários públicos com conotações autoritárias”.
A partir de 31 de janeiro, houve um salto na violência estatal, que teve seu auge de crueldade na noite de 2 de fevereiro. Enquanto o Congresso discutia a Lei Ônibus, a decisão do governo foi evitar protestos fora da sede do Poder Legislativo. Outra vez, houve uma grande operação, que inaugurou o uso de um novo spray de pimenta particularmente forte, que deixa queimaduras na pele. Também foi detectado um agente da Polícia Federal usando distintivo de um movimento libertário normalmente associado a Milei. Houve pancadas, gás, balas de borracha e quatro mulheres foram presas por ousarem sair da calçada e ir para a rua. Entre os cem feridos, cerca de 30 eram trabalhadores da imprensa. A polícia disparou contra os manifestantes na cara e um advogado de direitos humanos, Matías Aufieri, foi atingido no olho por um projétil policial. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos expressou a sua preocupação e exigiu ao governo “respeitar o direito à liberdade de expressão, de reunião pacífica e de trabalho jornalístico”.
Perguntamos à deputada nacional Myriam Bregman, ex-candidata à presidência pela Frente de Esquerda, o que fazer diante de tal escalada de violência. “É inexplicável que nenhum juiz ou promotor, daqueles que às vezes parecem tão corajosos contra as pessoas comuns, se sintam incentivados a agir contra esse funcionário que estão cometendo todos os tipos de violações. Acredito que a melhor forma de enfrentar a violência estatal é a massividade. Quando saímos em mobilizações muito grandes, não há como a Patrícia Bullrich agir. Nosso povo tem um grande espírito de luta e temos que colocar toda essa experiência, esse conhecimento, em prol da organização que nos permitirá não sermos derrotados. Se a Patricia Bullrich conseguir instalar o medo, o plano de Milei terá sucesso. Então, não estamos falando de um aspecto secundário”.
Numa rápida contagem dos setores que estão participando dos protestos, poderíamos citar: 1) a militância de esquerda, que iniciou o ciclo de manifestações e está presente em todas elas, e entre as quais se impõe um critério de tolerância zero por parte das forças de segurança; 2) o movimento operário, organizado em diferentes centrais sindicais, cujas manifestações foram as mais massivas, fazendo com que o governo ceda a um acordo sobre o uso da rua no caso de haver certas diretrizes e a mobilização consiga reunir muitas pessoas, mas sempre rodeado de enormes destacamentos policiais com a intenção de intimidar; 3) trabalhadores da economia popular, organizações territoriais e cozinhas populares, cuja situação se deteriora rapidamente, já que são alvo de estigmatização e ataques – a ministra do Capital Humano, Sandra Petovello, se recusa a recebê-los, sendo que em uma das tentativas, chegou a tratá-los com evidente crueldade, que incluiu repressão com uso de gás; 4) a “gente solta”, que se mobiliza espontaneamente e teve sua maior expressão no panelaço do dia 20 de dezembro à noite, embora também tenham participado da marcha convocada pela CGT e nas demais mobilizações convocadas pela esquerda, mas sempre sem muita violência policial contra seus integrantes.
Com o fracasso da Lei Ônibus na Câmara dos Deputados, chegou ao fim a primeira etapa do governo de extrema-direita. Javier Milei não conseguiu construir uma coligação ampla que apoiasse o seu ambicioso programa de reformas e, pelo contrário, radicalizou o seu confronto com grande parte do sistema político, o que introduziu uma tensão institucional no país. Por um lado, todos os analistas preveem que, a nível econômico, os próximos meses serão de recessão e de inflação muito elevada, o que provocará um declínio violento no padrão de vida das maiorias populares e da classe média. No entanto, boa parte da base social que levou o libertário à presidência continua acreditando em seu discurso. Os representantes do poder econômico, assim como o governo dos Estados Unidos, apostam na normalização de um projeto que, se conseguir se estabilizar, pode ameaçar seriamente o consenso democrático básico. O desfecho desta disputa histórica, na qual o povo argentino arrisca o seu destino, dependerá da eficácia que a mobilização social conseguirá alcançar nas próximas semanas. Ou seja, na capacidade da multidão de evitar o medo que as esferas estatais procuram impor. E não é apenas o povo argentino que está à mercê desse resultado.