Poucos romancistas contemporâneos manejam a história como Ismail Kadaré, autor de Dossiê H, reeditado pela Companhia das Letras, com tradução direta do albanês de Bernardo Joffily. Poderia-se atribuir essa característica à sua formação de historiador, mas seria o mesmo que dizer que as faculdades de história formam bons romancistas – um argumento estapafúrdio, portanto. O fato é que Kadaré, assim, transforma-se num romancista do coletivo, o que permite inverter a fórmula tradicional do elogio: em vez de narrar o particular para ser universal, ele parece narrar o universal, para ser particular.
Mitologia, passado, presente, conflitos entre o Estado, o coletivo e o indivíduo são a matéria-prima de Kadaré. De certo modo, problemas assim podem ser encontrados em quase todos os seus livros, boa parte deles traduzida para o português. Em A Ponte dos Três Arcos (Objetiva), o conflito modernizante se coloca no final da Idade Média, quando a construção de uma ponte faz confrontarem-se um antigo (sistema de travessia do rio por balsas) e um novo modelo econômico. A saída para o confronto se dá com o emparedamento de um dos operários em uma das colunas da construção, simbolizando o custo humano da vitória do novo e a permanência do mito na história.
O Kanun, um código legal não escrito, que inclui a vendeta (o pagamento de sangue com sangue), forma o eixo de Abril Despedaçado (Companhia das Letras) e As Frias Flores de Abril (Objetiva). Mas a obra de Kadaré que mais se aproxima, do ponto de vista temático, de Dossiê H, é Três Cantos Fúnebres para o Kosovo (Objetiva), em que rapsodos sérvios e albaneses se unem durante uma breve aliança militar dos dois povos contra o avanço turco. Apesar do inimigo comum e da aliança, os rapsodos só conseguem cantar uns contra os outros, revelando a força da rivalidade e da tradição.
Dossiê H, embora não seja seu melhor romance, ajuda ainda mais a pensar o autor dessa forma, como um escritor do coletivo. Primeiro, porque o agá do título refere-se a Homero, autor grego das epopeias Ilíada e Odisséia, das mais universais referências literárias do planeta. Segundo, porque na obra se encontram dois mundos: a força modernizadora, representada por dois etnógrafos irlandeses (Max Roth e Willy Norton) que realizam pesquisas na região, e a força da tradição, que é a dos rapsodos albaneses que mantinham viva a complexa epopeia albanesa, herdeira das epopeias gregas, assim como a epopeia sérvia, que está do outro lado da fronteira.
Quem domina a narrativa universal, portanto, é a aldeia. Ou melhor, parte dela, porque, para outra, mais citadina e civilizada, a poesia épica já perdeu sentido. E quem parte em busca dessa aldeia, em busca da própria identidade e também de interesses mais mundanos e individualistas, como a notoriedade acadêmica, é a modernidade. Os habitantes locais não conhecem a língua dos visitantes, que, no entanto, podem entender a dos hospedeiros.
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(Foto: Arquivo Estatal da Albânia / Wikicommons)
Mais uma vez, está posto o conflito: o indivíduo pode tentar entender o coletivo, enquanto o coletivo nutre profundas suspeitas com relação aos indivíduos.
Claro que o local vai reagir à estranha presença. O Estado albanês suspeita que os etnógrafos são espiões, mas tem dificuldades em realizar a “contra-espionagem”: falta quem entenda o inglês. Os contraespiões também têm problemas para compreender o que os etnógrafos trazem numa caixa imensa, um grande gravador para registrar as vozes dos rapsodos – e, especialmente, as pequenas alterações que ocorrem na epopeia, entre uma passagem e outra dos poetas populares pela estalagem em que se hospedam. Se o indivíduo e a modernidade causam estranheza no coletivo portador do passado, também seduzem. A mulher do subprefeito se apaixonará por um dos etnógrafos.
Além dessa trama digna de um livro de detetives, Dossiê H traz pequenas histórias paralelas, revelando muito dos personagens desse pouco conhecido país que é a Albânia, metido não apenas entre o moderno e o antigo, entre o indivíduo e o coletivo, mas também entre o Oriente e o Ocidente.
O subprefeito, por exemplo, sente um enorme ciúme do “estilo” retorcido de seu espião, Dull Baxhaj, que escreve quase sempre dessa forma: “Ouso incomodar o senhor subprefeito com essa lembrança unicamente por julgar que eventualmente seria mais fácil compreender a conversa na Gruta do Mocho quando confrontada com a daquele dia. Outrossim, antes ainda de relatar o último diálogo, desejaria chamar a atenção do senhor subprefeito, de forma nenhuma pensando em eludir minhas limitações na atividade de escuta ou minhas deficiências no cumprimento do dever, mas em atenção à verdade, etc.”
A questão nacional surge quando os estrangeiros são interpelados por um monge sérvio, que sugere que os irlandeses, em vez de estudarem a epopeia albanesa, deveriam buscar a epopeia sérvia, que também advoga sua primazia – revelando, em 1981, ano em que o romance foi concluído, toda a rivalidade que explodiria no conflito do Kosovo, no fim dos anos 90.
Na conclusão, uma morte revelará, ao mesmo tempo, a força criativa, mas também totalizadora e demolidadora da epopeia. Dossiê H, assim, compõe, “organicamente”, a coerente obra de Kadaré, em que indivíduo e coletivo se enfrentam continuamente. E em que a força de um é incorporada à do outro, num final nem sempre feliz – mas sempre verdadeiro.
Livros de Kadaré mencionados
Abril Despedaçado
Tradução: Bernardo Joffilly
Companhia das Letras
As Frias Flores de Abril
Tradução: Ana Luísa Dantas Borges
Objetiva
Três Cantos Fúnebres para o Kosovo
Tradução: Vera Lucia dos Reis
Objetiva
A Ponte dos Três Arcos
Tradução: Adalgisa Campos da Silva
Objetiva
Publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo, 5/1/2002, e incluído no livro Trinta e tantos livros sobre a mesa (Oficina Raquel). Título original: “Um elogio às avessas a Ismail Kadaré”.