Que atire a primeira pedra quem nunca sonhou com uma América Latina unida, aos moldes que imaginamos fortes e potentes de uns Estados Unidos ou talvez de uma União Europeia. Para alguns, o que vale ao caírem as fronteiras é o comércio, o crescimento, a livre circulação de bens e pessoas, para outros, é a expansão das ideias, uma melhor oferta cultural, ou até mesmo as duas coisas. O fato é que fica impossível privar nossa imaginação de um sonho tão atraente, que tudo pinta de um suave e agradável rosa.
Sou uma defensora do cinema latino-americano, e a primeira reação do mundo frente a isso é esperar que eu acredite que, nós, latinos, somos iguais ou que, se não somos, é porque ainda algo nos impede de sê-lo. Já era hora de dizer: mentira.
Não acho que um país da América Central se pareça culturalmente a um dos andinos, que os processos políticos na região seguem alguma espécie de script que fez todo mundo experimentar golpes, resistências à esquerda e ditaduras, nessa ordem, e nem muito menos que saber português sirva para falar um bom espanhol. Não somos iguais. E quem disse que temos que ser?
Celebrar a América Latina tem a ver com acreditar na qualidade humana, cultural e artística da região. Lembrar a si mesmo e aos que se interessem em escutar que há muita coisa boa circulando por aqui e que, assim como outros lugares do mundo nos oferecem tantas vantagens, cada país latino-americano tem a mostrar uma infinidade de pequenos, médios e grandes tesouros. Tem a ver, e por que não, com promover uma maior aproximação, uma chance de aproveitar as curtas distâncias, e isso não inclui nenhuma tentativa maquiavélica de apagar identidades locais.
Existe, por outro lado, uma dicotomia que já ficou velha e que merece morrer.
Dividimos a América Latina em duas: os brasileiros e os outros latinos (que, no fim do dia, são os latinos e ponto). Em nossas manifestações culturais, sentimos um misto de simpatia e estranheza quando falamos de latinidade. Nos sentimos semiestranhos e nos referimos aos que falam espanhol com um certo “quero-mas-não quero”, tratando-os de “hermanos” sem mesmo pensar que uma palavra tão simpática, que evoca irmandade, na verdade coloque uma barreira transparente entre nós. Do outro lado, o hispânico, a nuvem de estranheza também paira, e não é raro escutar qualquer latino-americano de origem hispânica agregar um “inho” à palavra que usa para se dirigir a um brasileiro, seu “amiguinho”.
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Falemos de cinema. Em filmes que assistimos há décadas, persiste essa mesma retórica da necessidade de uma identidade única aliada a uma prática de desconhecimento e separação. Não é raro encontrar histórias de cá e de lá que mostram o Brasil ainda como a terra da abundância e da liberdade e o resto, os que fazem jus ao título de latinos, como engraçados, melodramáticos e politicamente autoritários. De maneira geral, nos deparamos com uma velha imagem cultivada desde a era de ouro das cinematografias da região, que está ali entre os anos 50 e os 70: em uma face da moeda da personalidade latina estão a pobreza e a confusão e, na outra, a ginga e a alegria.
Mochila movie
Para não dizer que nas telas persiste essa imagem estacionada no tempo, uma safra recente de longas-metragens brasileiros serve de referência. São filmes inspirados pelo fenômeno já muito bem absorvido por nós da globalização, que celebram a estrada e o movimento e tratam do espaço latino-americano como um lugar a ser explorado. Mesmo que sobreviva neles aquela atitude dúbia e confusa de unidade, como fica claro em títulos como os documentários Pachamama e Estradeiros e a ficção Além da estrada. São exemplos do que já se batizou de “mochila movie”.
A análise vai muito além e vale ressaltar que não é minha. Ela só me inspirou a pensar na pergunta: o que significa ser latino-americano? Que alívio concluir que significa muitas coisas e muito além do que eu sou capaz de listar. Quem se interessar pelo tema, que não perca a edição número 57 da revista Filme e Cultura, dedicada a investigar as relações entre latinos no nosso cinema. E viva a diferença.