Assim como George Orwell – que ia atrás da história onde ela estivesse (fragilizando, inclusive, sua própria saúde) –, Roberto Bolaño era um escritor de alma inquieta, que nasceu no Chile, mas se considerava, antes de tudo, “latino-americano”, tendo vivido no México, em El Salvador e na Espanha (além da França). Premiado em 1999 com o Rómulo Gallegos – que laureou, antes dele, Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa –, Roberto Bolaño tem encontrado finalmente acolhida no Brasil, com as traduções de Os Detetives Selvagens (1998, sua obra-prima); Noturno do Chile (2000, com um crítico literário como personagem); A Pista de Gelo (1993, a estréia de seu alter ego Arturo Belano); Amuleto (2006, uma obra póstuma); e Putas Assassinas (2001, um livro de contos) – todos pela editora Companhia das Letras.
Roberto Bolaño nasceu em Santiago do Chile em 1953. Era filho de um motorista de caminhão, que tinha como hobby o boxe, e de uma professora, que o incentivava no gosto pela poesia, como uma compensação pela dislexia na infância. Embora não existisse esta palavra ainda, é bem possível que Bolaño tenha sofrido bullying na escola, comportamento violento que o converteu, logo cedo, num outsider.
Em 1968, mudou-se com a família para o México e abandonou imediatamente os estudos – para se tornar repórter e ativista de esquerda. Em 1973, abraçando a grande causa política de sua geração, voltou para o Chile, a fim de apoiar o governo de Salvador Allende. Com a deposição do regime por Augusto Pinochet, Bolaño terminou detido, imaginou-se torturado, morto ou, no mínimo, exilado para nunca mais. Contudo – numa reviravolta digna de sua ficção –, terminou resgatado, depois de pouco mais de uma semana, por ex-colegas de escola, que o reconheceram e que haviam se tornado, ironicamente, guardas de prisão.
Retornou, então, ao México e fundou um novo movimento poético inspirado no surrealismo, o infrarrealismo. Depois de vagar a esmo, em ocupações erráticas e alimentando uma existência bastante caótica – alguns dizem que por causa do uso da heroína –, Bolaño fixou residência, em 1977, na Espanha, na costa do Mediterrâneo, quando também se casou. Nessa época, viveu de bicos, lavando pratos e até recolhendo lixo – sempre trabalhando de dia e escrevendo à noite.
De 1990 em diante – data de nascimento de seu primeiro filho –, Bolaño abre mão da poesia e, no papel de provedor, torna-se romancista, participando, inclusive, de concursos. Mesmo com a saúde fragilizada (por conta de uma juventude extravagante), produziu como nunca antes na última década do século 20. É do final dela Os Detetives Selvagens, que Jorge Edwards, uma das figuras de proa da literatura chilena, comparou a O Jogo da Amarelinha, de Cortázar, e que Ignacio Echevarría, crítico de El País, declarou ser “um romance que Borges teria escrito”.
Roberto Bolaño faleceu em 2003, aos 50 anos, por problemas no fígado, à espera de um transplante… Temia, sobretudo, pelo futuro de sua filha menor, de poucos anos, e dizia, no final da existência, que sua única pátria era sua família. A língua também – reconheceria no discurso do prêmio Rómulo Gallegos –, mas essa afirmação, manjadíssima, soava-lhe apenas demagógica naquele momento. Evocaria, ainda, Kafka, pois, consumido progressivamente pela doença, sentia-se, como o autor de O Artista da Fome, cada vez mais unido com sua literatura.
Criticava García Marquez e Vargas Llosa
Nunca regressou ao Chile e, bastante longe do establishment de seu país, não deixou de ser um autêntico rebelde literário. A consagração de Os Detetives Selvagens, nos anos finais, terminaria por convertê-lo numa lenda viva, mas Bolaño renegaria o rótulo. Nunca quis estar perto de figuras como Isabel Allende, por exemplo. E criticou, publicamente, unanimidades da literatura latino-americana, como Vargas Llosa e García Marquez.
Roberto Bolaño, com sua postura inflexível, queria, mais uma vez, dar voz a uma literatura continental, historicamente menosprezada. Não que Bolaño colocasse a produção latino-americana num pedestal – tendo, inclusive, tomado iniciativas educativas de tradução, a exemplo de Borges –, mas lamentava que, esteticamente, continuássemos amarrados a modas como a do “realismo fantástico”.
A crítica internacional, aliás, é praticamente unânime em afirmar que Bolaño rompe com o tradicional esquema da literatura latino-americana, escapando a rótulos, numa sucessão de planos, em romances tomados mais a sério a partir de 1999. Sua compreensão no Brasil também é recente. Bolaño desembarca num momento em que grandes editoras hispânicas se precipitam sobre o nosso mercado editorial. Quem sabe esta nova atmosfera não vai contaminar nossa própria literatura?
* Julio Daio Borges é editor-fundador do site Digestivo Cultural
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